Aquele mesmo rio foi desenhado na mente de Livia. Literalmente, desenhado. O traço tão cinza quanto o de um lápis criava, lentamente, a paisagem tão surrealista quanto pontilhista à sua frente. Tudo parecia ser nada mais que uma junção de pontos. O que lembrava, sutilmente, as aulas de química em que Livia dormira, com umas poucas diferenças insignificantes. Os pequenos peixes que nadavam no rio ainda sem cor eram formados não por carbono, nitrogênio ou outros combostos orgânicos, mas de pedaços de pensamentos, como se era de se esperar, já que não estamos retratando a realidade e sim a consciência de um ser já sem pulso.

Havia uns fragmentos de instinto (que assumiam logo a coloração vermelha e faziam os peixes quererem fugir da moça), uns de calma (que ganhavam cor azul e garantiam que os animais conseguissem continuar respirando) e ainda uns de cobiça (que eram já amarelos e garantiam que eles tentassem se abastecer de quanto alimento fosse possível, mesmo que não fosse necessário). Os peixes, porém, não tinham apenas essas três cores. Eram tão coloridos quanto o arco-íris, em sua mistura de tons, em vibrações quentes e frias que abandonavam logo o preto-e-branco. As nadadeiras, por exemplo, vistas de longe na cor laranja, faziam com que eles nadassem depressa à procura de mais comida, por tanto sobrevivência quanto cobiça.

Todo o resto do cenário também era composto por esse tipo de mistura de pequenos pontinhos coloridos. A brisa azul tinha uns tons de roxo, ganhos do poderoso vermelho. Os raios de sol amarelo se misturavam com o marrom da terra e com o azul do céu... Em uma obra pontilhista, surrealista e expressionista.

A única coisa que se mantinham totalmente monotona (com apenas um tom) era o rio vermelho, pulsando de instintos. Como em tantos outros sonhos, o rio e sua coloração sanguínaria chamavam Livia, sem que ela fosse capaz de fugir. Ela, então, tocava os pés na água e se deliciava com um poderoso banho de sangue, sentindo o cheiro da morte invadir-lhe as narinas e a alma.

Passava o líquido sobre os cabelos e os lavava com o sangue alheio. Mergulhava nas armaguras do instinto e sofria com as consquências disso. Sua pele logo começava a ficar enrugada, como se tivesse passado horas dentro daquele rio. Talvez, realmente tivesse, se fossem somadas todos os minutos de todas as noites de todos os seus sonhos. Mas a pele se enrrugava com rapidez demais. Em pouco tempo, sua mãos já não eram mais as mesmas. Estavam trêmulas como as de uma senhora de mais idade.

Seus olhos de tão cansados se fechavam e não conseguiam se abrir. De repente, Livia sentia uma tontura, seguida de uma falta de ar terrível. Perdia, então, a consciência dentro de seu próprio inconsciente. Desmaiando sob as águas vermelhas de seus sonhos...

Quando retomava a si, sentia apenas uma mão firme batendo-lhe o rosto e uma voz, desesperada, pedindo para que acordasse, e que acordasse depressa, pois tinham chegado para busca-la.