Terminei de tocar as últimas notas desafinadas do teclado junto ao resto da classe. Estávamos na aula de música e apesar de eu gostar muito de ouvir outras pessoas tocando devo admitir que eu mesma sou um desastre quando o assunto é música, e com os meus colegas de classe não é muito diferente exceto por algumas poucas exceções. Suspirei aliviada por finalmente aquela tortura sonora ter acabado.

Alguns alunos deixaram a sala enquanto outros foram falar com Masada Sensei para tirar duvidas e pedir concelhos sobre seus instrumentos ou coisa parecida.

Poniko que manuseava um violoncelo em uma das primeiras fileiras colocou-o em seu lugar com cuidado e ficou encarando Masada Sensei por um tempo daquela forma enigmática e inexpressiva que faz às vezes. Depois de um tempo ela piscou algumas vezes como se estivesse saindo de alguma espécie de transe, eu não sei exatamente o que pensar quando isso acontece, mas não acho que seja uma boa ideia questiona-la sobre isso.

– Você não parece estar muito satisfeita – disse ela subindo os degraus em minha direção.

– Bom, não é todo dia que você descobre que pode fazer um surdo chorar– Proferi debochando de meu próprio “talento”.

– Ah não foi tão ruim, espera vou te mostrar - Ela deu a volta no instrumento e posicionou-se ao meu lado em frente ao teclado. Atentei-me a seus movimentos vendo-a deslizar seus dedos com destreza pelas teclas monocromáticas fazendo uma melodia suave ecoar pela sala.

Masada Sensei e os alunos com quem estava conversando pararam o que estavam fazendo e prestaram atenção nas notas harmônicas que a loira produzia. Eles pareciam estar tão fascinados com seu talento quanto eu.

Ela mantinha seus olhos fechados, como se estivesse imersa na melodia de forma profunda. Depois de um curto período de tempo ela lentamente os abriu e respirou fundo, depois olhou pra mim com um sorriso estreito porém cálido e com suas orbes refletindo a luz da janela atrás de mim.

– Viu, só tem que deixar fluir - Disse Poniko retirando seus dedos de cima das teclas.

Eu abri a boca para falar algo, mas as palavras recusavam-se a sair. Eu não sabia o que dizer estava encantada com a música. Ouvi aplausos na outra extremidade da sala, os alunos que presenciaram o que acontecera não paravam de aplaudir a breve apresentação de Poniko – que agora se encontrava completamente vermelha –.

Masada Sensei se aproximou de nós, eu desviei meus olhos para a janela. Não sei como encara-lo depois do que aconteceu não faço ideia de como agir. Ele também não me encarou ele estava focado exclusivamente em Poniko no momento, ou pelo menos era como aparentava estar.

– Magnifico Poniko-san, simplesmente esplendido – Disse ele apertando levemente a mão de Poniko - que se mantinha vermelha como um tomate -.

– O-obrigada, é gentileza sua - A loira gaguejou e entrelaçou seus dedos nervosamente. Eu não sabia que ser elogiada por seu talento poderia deixar uma pessoa tão sem graça, principalmente Poniko que está sempre cercada de pessoas que devem elogia-la o tempo todo.

– Imagine, eu realmente gostei muito - Continuou o mais alto ainda falando de forma clama – Você deveria investir nesse talento.

– O-o senhor gostou mesmo? - Os olhos da loira cintilaram ao ouvir as palavras de Masada, ela não parece ter dado muita importância a segunda parte.

– Sim – Masada ofereceu a ela um de seus sorrisos que devo admitir fez meu coração saltar.

– Mu-muito obrigada Sensei – Poniko curvou-se e segurou meu pulso com um pouco mais de força do que o necessário – N-nós iremos agora, ou chegaremos atrasadas na próxima aula.

Ele abriu a boca para dizer alguma coisa, mas a fechou rapidamente, ele simplesmente assentiu com a cabeça e virou-se novamente para o restante dos alunos que haviam permanecido na sala. Olhei para Poniko e ela parecia estar voando em algum lugar distante em sua mente, mas ao contrário da maioria das vezes ela não tinha em seu olhar um vazio escuro como os olhos de Monoe e sim um brilho mais forte que o normal.

Nós íamos nos dirigindo a saída com o restante dos outros alunos quando uma voz atrás de mim chamou por meu nome, era Masada Sensei.

– Madotsuki-san será que pode esperar um minuto? - Droga eu sei sobre o que ele quer falar, mas eu não sei o que dizer ou como agir sobre o acidente de ontem. Espera acidente? Isso foi mesmo um acidente? E foi mesmo algo ruim assim ou eu apenas estou tentando me convencer disso?

Saí de meus pensamentos quando notei que fiquei muito tempo em meus devaneios e não lhe dei uma resposta.

– A-ah s-sim claro Sensei – Respondi e olhei para Poniko para dizer que depois a encontraria, mas as palavras morreram quando vi sua expressão mudar drasticamente. Os olhos semelhantes aos de Monoe haviam retornado, mas logo ela sorriu e a cor vivida de seus olhos também como se aquilo não tivesse sido nada.

– Eu vou te esperar no corredor – Disse a loira e saiu finalmente da sala deixando eu e Masada sensei sozinhos. Meu coração está batendo tão rápido que não sei como ele não explode, dei alguns passos me aproximando de Masada Sensei. Ele não estava mais com uma expressão neutra que apresentava a seus alunos e sim uma expressão triste e preocupada.

– Madotsuki-san eu... Eu queria me desculpar mais uma vez - Disse ele coçando a nuca nervosamente, pude notar um rubor leve em suas bochechas.

– A-ah não foi nada - Disse. “Não foi nada”? É isso mesmo que eu queria dizer?

– E-eu só queria ter certeza de que estava tudo bem mesmo, eu estou verdadeiramente envergonhado do que fiz – Prosseguiu o mais alto se aproximando de mim, mas com cautela. Eu não estava com medo, eu acho até que quero que ele chegue mais e mais perto até que a distância entre nós deixe de existir – Não irá se repetir.

– E-eu realmente não me importo Sensei – Continuei, mas não é o que eu quero dizer! Eu me importo, mas as palavras parecem sair automaticamente.

– E-eu só queria pedir que esquecesse o que aconteceu - Suas palavras fizeram com que meus olhos antes focados ao chão encontrassem-se com os seus. Esquecer? Eu quero mesmo esquecer?...

... Não eu não quero!

– E-eu sinto muito Sensei, mas acho que não posso fazer isso – Eu gaguejei, mas mesmo assim falei com firmeza.

– H-hã? – Ele parecia confuso – C-como assim?

– E-eu não quero esquecer – Continuei, sentia minhas bochechas esquentarem e desviei novamente meu olhar para o chão – Eu não quero esquecer o que aconteceu!

– M-mas Madotsuki-san isso é errado - Ele se aproximou de mim mais ainda e colocou seus braços em meus ombros - E-eu sou seu professor, A-aquilo foi um momento de fraqueza, esse tipo de coisa não pode acontecer e - O barulho do sinal tocou interrompendo sua fala e fazendo meu coração bater mais rápido que nunca.

– Eu não vou me esquecer – Eu aproximei-me mais ainda de seu rosto e dei um beijo rápido em seus lábios. Ele não fez nada para me separar dele então presumi que ele também queria fazer isso. Me soltei dele e virei de costas saindo o mais rápido possível da sala.

Eu fiz isso! Eu não acredito que fiz mesmo isso!

O que ele queria? – Ouvi uma voz familiar a meu lado quando sai no corredor, Poniko. Meu sorriso se desfez quando a vi, esqueci que ela estava a minha espera.

– A-ah ele – Pense em alguma coisa, rápido – E-ele queria conversar sobre minhas notas, elas não estão muito boas sabe.

– Mado-chan – Ela desencostou-se da parede onde estava e veio ao meu encontro, seus olhos não estavam vazios, mas ela carregava uma expressão séria - Você não está mentindo pra mim não é mesmo?

– C-claro que não, por que eu faria isso - Ela se aproximou mais e olhou no fundo de meus olhos, eu fiz esforço para não desvia-los, isso só me entregaria.

– Apenas me preocupo com você - Ela me abraçou, parecia ter acreditado – Você sabe disso não é mesmo?

– S-sim, eu sei!

[...]

Depois da aula me separei de Poniko e fui andando sozinha em direção a saida. Estou começando a me acostumar a ficar sozinha novamente, cada dia que passa as mortes de meus amigos se tornam menos dolorosas e passo a vê-las apenas como boas recordações, de um tempo em que fui verdadeiramente feliz. Claro que meu peito ainda aperta ao pensar neles, mas não mais de culpa e sim de saudades, agora eu consigo ver isso.

Fui andando lentamente pelo corredor, ao vira-lo parei de andar imediatamente. Monoe estava cercada por um grupo de alunos que pareciam ser do concelho, pareciam estar discutindo assuntos importantes.

Monoe ao contrário do restante dos alunos não tinha folhas o uma pasta em mãos. Ela apenas andava com a mesma postura que aprendi a temer, braços cruzados e olhos vazios. Ela passou por mim e me lançou um olhar frígido, mas não parou continuou andando sendo seguida pelos membros do concelho.

Eu abri minha boca para falar alguma coisa, mas fui interrompida.

– Olha só se não é a Mado-chan – Senti alguém jogar seu peso em meu ombro impossibilitando-me de me mover. Essa voz, isso não pode estar acontecendo.

Olhei para o ser que estava me segurando, aqueles cabelos ruivos e o nariz fino e pontudo eram inconfundíveis, Toriningen Gou. Olhei para a direita e Manchú estava do meu lado. O que está acontecendo? Pensei ter me livrado delas. Sinto o suor frio escorrendo por minha testa e acumulando-se na palma de minhas mãos.

– Gou não a assuste dessa maneira – Ouvi Manchú repreender a irmã como normalmente faz. Sua voz gélida atravessou meu corpo me fazendo ter arrepios da cabeça aos pés.

– O que querem comigo? - Minha voz saiu mais travada do que desejava.

– Não precisa ficar assustada não vamos fazer nada com você – Disse Manchú arrumando os cabelos com um espelho na mão.

– Isso mesmo Mado-chan - Completou Gou aproximando-me mais ainda de si. Eu quero gritar, mas a voz não quer sair – Nós só queremos nos desculpar.

– Exato. Poniko nos repreendeu muito em conta do que fizemos a você – Continuou Manchú jogando o espelho de volta em sua bolsa, mas ela ainda mantinha seus olhos longe de mim – Então viemos aqui para resolver as coisas.

– E como oferta de paz nós vamos te levar para um lugar muito divertido – Disse Gou animadamente, ela começou a me empurrar escola a fora e me guiando por um caminho completamente oposto ao de minha casa.

Isso só pode ser brincadeira, elas jamais iriam querer fazer as pazes comigo mesmo que Poniko as dissesse para fazê-lo. Ao virarmos a esquina elas me colocaram em um carro azul esportivo com as janelas escuras, eu fui colocada entre as duas. Eu estou com medo! Quero ir para casa!

[...]

Estou novamente no carro de janelas escuras usando um vestido ridículo curto de mais na minha opinião e que fica grande na região dos meus seios, sinto meu rosto pesado em conta da maquiagem que colocaram em mim e meus pés doem com esses sapatos de salto. Pelo menos minhas tranças continuam intactas.

As irmãs me levaram para sua casa dizendo que fariam com que eu ficasse “bonita” para podermos ir ao lugar divertido. Agora estou parecendo uma vadia como elas duas, o que não diminui meu medo em relação a para onde estão me levando.

As duas estavam sentadas entre mim novamente com roupas mais curtas que a minha. Eu optei por não dizer nada o trajeto todo. Tentei ver pela janela escura o máximo possível para tentar descobrir onde estão me levando, mas a claridade do dia já se foi há muito tempo e não reconheço esse lugar, eu não faço ideia do que vou fazer.

– Não se preocupe Mado-chan você vai gostar do que faremos - Gou sorria pra mim de forma maliciosa, eu tento me convencer de que seu sorriso não significa nada, que é apenas seu jeito de sorrir, mas ao vê-lo sinto um nó na garganta tão apertado que parece que nem mesmo a saliva seria capaz de atravessar. Manchú não olha pra mim ela apenas se concentra na tela de seu celular com olhos mortos. Ao olhar para eles eu me lembro da sensação de estar encarando Monoe e de seu surto. afasto esses pensamentos negativos tentando me concentrar apenas no trajeto.

O carro finalmente parou e o motorista abriu a porta de Gou, ela saiu e me arrastou junto com ela pelo punho como se estivesse se assegurando de que eu não fugiria. Nós paramos na frente de uma construção escura com um letreiro neon, eu podia ouvir musica vindo de dentro dela.

Olhei para trás para ver se reconhecia onde estava, mas a iluminação da rua também não ajudava. Eu só era capaz de enxergar alguma coisa graças aos faróis do carro. Manchú estava falando com o motorista e Gou estava enviando uma mensagem para alguém com a mão que não estava me segurando. Eu estou com medo estou presa aqui com duas pessoas perigosas sem nem ao menos saber onde estou.

– Certo, Vamos – Manchú se aproximou de nós e foi em direção a uma porta de metal a baixo do letreiro neon.

– Q-que lugar é esse? - Perguntei na esperança de que alguma das duas me desse uma informação útil para que eu pudesse sair de lá.

– Você vai ver – Gou sorriu mais uma vez daquela forma estranha e me puxou em direção a porta fazendo com que eu cambaleasse com aqueles sapatos de salto.

Ao entrar no prédio apertei meus olhos com força, as luzes não paravam de piscar e eu conseguia ver através delas apenas silhuetas escuras do que pareciam ser pessoas dançando. A música era muito alta e fazia meus ouvidos pulsarem, parecia que havia tambores dentro da minha cabeça. Gou disse alguma coisa para mim, mas a música não me permitiu ouvir o que era, só senti ela me arrastar novamente para dentro daquele caos.

As duas pararam em frente a uma escada onde havia um grupo de garotos cercados por muitas garotas vestidas de forma similar as das irmãs Toriningen.

– Viemos buscar o combinado – Disse Manchú mais alto do que jamais ouvi ela falar em conta da música.

– Claro lindinha, mas antes o dinheiro – Um garoto alto e magro também com *feições que lembravam um pássaro respondeu e levantou-se da escada ficando em frente à Manchú.

Manchú tirou de dentro de seu sutiã uma quantidade grande de dinheiro. Eu sabia o que estava acontecendo, mas é melhor ficar calada.

– Tudo certo – Disse o garoto e tirou um pacote de dentro do bolso, cheio de coisas parecidas com comprimidos que Manchú pegou e colocou no lugar do dinheiro – Ué vocês andam com animais de estimação agora? – O garoto olhou para mim como se finalmente tivesse notado minha presença.

– Essa aqui é a Mado-chan - Disse Gou colocando as mãos sobre meus ombros - Nós a trouxemos aqui para se divertir.

– Ah estou vendo - Ele andou em passos largos em minha direção e aproximou seu rosto do meu, podia sentir o cheiro de álcool forte – Eu posso ajuda-las nisso se quiserem - Disse se afastando para meu alivio.

– Não é má ideia - Manchú coloca os dedos sobre o queixo e deu um sorriso que me arrancou mais arrepios – Cuide bem dela certo.

Manchú me deu um tapa nas costas e o garoto me segurou de forma brusca. Eu sabia que tinha algo errado, alguma coisa assim iria acontecer nunca que aquelas duas iriam querer se dar bem comigo.

– Pode deixar eu vou fazer ela se divertir como nunca – O sorriso dele era mais malicioso do que o de Gou. Eu tenho que sair daqui e agora!

As Toriningen foram para o centro da pista de dança, desaparecendo dentre as outras dezenas de pessoas. O som da música confundia-se aos batimentos acelerados do meu coração fazendo meus ouvidos chiarem. O garoto me puxou a força para um canto perto dos banheiros, eu tentei me soltar mais ele era mais forte e me pressionou contra a parede de tijolos atrás de mim.

– Ei relaxe gracinha vai ser divertido – Seu sorriso me assustava, e ele estava prendendo meus pulsos à parede. Eu tenho que fazer alguma coisa, qualquer coisa! Eu olhei para suas pernas, elas estão afastadas o suficiente para que eu arrisque fazer isso, mas só terei uma chance. Eu puxei minha perna o máximo que consegui para trás e dei uma joelhada em sua virilha fazendo-o arquear de dor. Eu tentei escapar depois de ele ter soltado meus pulsos, mas só consegui dar poucos passos até sentir algo segurar meu cotovelo.

– Vadia! – Disse o garoto me puxando para perto de si novamente, seus olhos agora estavam raivosos – Isso vai fazer você ficar mais mansa.

Ele tirou alguma coisa do bolso que não consegui ver direito, então segurou meu rosto com força e me abrigou a abrir a boca, senti ele colocar alguma coisa lá dentro. Eu não posso engolir isso de jeito nenhum ou estará tudo acabado, mas ele tampou meu nariz também, tive que engolir de qualquer maneira para que ele me soltasse.

– Isso mesmo, boa garota!

Eu via seus lábios se moverem, mas não conseguia processar o que dizia tudo dentro da minha cabeça começou a girar e comecei a ficar zonza, a música do lugar parecia ter entrado em meus ouvidos e começado a chacoalhar meu cérebro.

Eu não me sentia mais presa, tentei andar o mais rápido que podia para sair dali, mas cambaleei e caí no chão. Eu não sinto o impacto como deveria, é quase como se eu não sentisse mais dor. As luzes *neon estão deixando minha visão confusa.

Ouço uma risada ecoando em minha mente, olho para cima sem ainda me levantar e vejo o garoto se agachando e vindo em minha direção. Minha visão turva não me permite ver com clareza onde ele está, mas eu preciso fazer alguma coisa pra sair daqui. Ao ver um borrão se aproximando de mim eu começo a chutar o ar na esperança de acerta-lo. Depois de alguns chutes sem resultados eu escuto algo que parece o grunhido de um animal ferido, não tento ver se o acertei mesmo apenas rastejo entre os pés das pessoas. Sou pequena o suficiente para passar entre elas. Eu não sei exatamente para onde estou indo as varias pernas passando diante de mim só me deixam mais confusa.

Eu parei quando sinti algo contra meus dedos, uma parede. Levantei-me com dificuldades e arrastei meus dedos pelos tijolos até encontrar uma saída. Bingo! Uma maçaneta. Não quero saber aonde essa porta vai dar só quero sair daqui.

Abri a porta e corri o máximo que conseguia mesmo que ainda cambaleando, eu não consigo ver direito para onde estou indo a paisagem está girando tanto que sinto como se o mundo fosse virar de cabeça para baixo a qualquer instante.

Mas não importa eu tenho que correr, correr e não parar mais.