Calor

“A minha alegria é a melancolia” – Michelangelo

Emilie Simon – Chanson de Toile

Deslizou para o outro lado da cama, enquanto fechava os olhos fortemente. Levemente, o suor começava a escorrer pela testa e a nuca, e suas pernas se enroscavam aos lençóis com desespero. Mordeu os lábios, tentando não soltar ruídos, enquanto piscava ligeiramente seus olhos amarronzados, para que as lágrimas não descessem. O quarto estava gelado, mas mesmo assim ela ardia em febre. As luzes todas apagadas e da janela a possibilidade de ver os prédios imponentes da Capital, onde sempre havia alguém ainda acordado. Letreiros grandes e brilhantes chamavam a atenção de quem quer que vislumbrasse-os. Era tudo muito bonito visto dali de cima, o último andar. A cobertura tinha essa vantagem. Abriu um leve sorriso de lado, enquanto as lágrimas molhavam seu travesseiro.

Achava ridículo o modo como se apegava tanto a apenas uma ideia, desde que chegara ali. Mas de repente aquilo se avolumou em seu peito, como se uma semana segurando tudo fosse demais para ela. Sim. Era demais. Esperar a morte pacientemente era pedir demais a uma menina que tinha certeza que quando crescesse se tornaria uma enfermeira e ajudaria o hospital local.

Era idiotice. Planejar um futuro naquele país, completa perda de tempo. E existiam pessoas que passariam pela Colheita e se tornariam homens adultos e mulheres adultas. Essas pessoas eram as piores, pois a sorte estava mesmo a seu favor. Odiava-as com toda as forças de sua mente. Por sorte, tinha uma mente bem forte. Quando não aguentou mais ficar deitada, abandonou o colchão, quase em um salto, enquanto ignorava os chinelos e o roupão e partia porta afora, em direção à sala. Havia duas Avox paradas diante do corredor.

– Por favor, um copo de água. – pediu, e ela saiu apressada para buscar aquilo que queria. A segunda permaneceu imóvel e muda. Como sempre. Melody não gostava delas também, pois eram sempre tão obedientes e fracas que só a faziam imaginar o que será que a Capital teria feito com elas para ficarem assim.

Melody odiava praticamente tudo aquilo que gostava. E quanto mais gostasse de algo, mais odiava. Era um reflexo que tinha para se manter afastada das coisas que poderiam machucá-la. Havia um grande círculo de imaturidade e inocência ao seu redor, ainda, pois mesmo com toda a racionalidade que tinha e toda a maturidade, ela possuía doze anos, e não podia muito mais que entender parte do mundo adulto. Ela nem mesmo queria entender. Só queria participar. Isso com certeza não seria possível, afinal roubaram sua vida adulta assim que criaram os Jogos. Culpar a Capital era fácil, todos a culpavam, e continuavam imóveis perante o poder imposto. Aquilo deixava-a desconcertada. Estavam matando a todos, escravizando-os, empobrecendo-os, e as pessoas abaixavam suas cabeças ao invés de lutar, como fizeram no passado. Ela havia nascido logo que a guerra terminou, e sua mãe às vezes comentava a época.

– Também não consegue dormir? – ouviu a voz sonolenta atrás de si. A criada voltou com o copo de água, pegou-o e se virou para vê-lo. Era o outro tributo, também com doze anos. Era um infortúnio que ambos naquela idade tivessem sido sorteados para os Jogos, mas o Distrito Doze tinha a fama dos “doze anos”, pois até o momento, 5 tributos de todos já enviados tinham doze anos. Era o Distrito do Azar. Peter vestia seu pijama, os cabelos estavam bagunçados e o rosto marcado pelo local onde havia dormido sobre o braço.

– Sim – concordou, tentando esconder o rosto para que ele não visse seus olhos vermelhos. Porém a escuridão já fez este serviço para ela. Peter sorriu, como ele sempre fazia. Era uma das coisas que mais odiava nele. Entregou o copo agora vazio à Avox.

– Pesadelos?

– Não. – respondeu, enquanto caminhava para voltar para o quarto. Peter, por algum motivo, a seguiu. Diante do batente da porta, virou-se para encará-lo, esperando que seus olhos frios o enxotassem, porém o menino apenas estava com as mãos dentro dos bolsos da calça do pijama, descontraído, enquanto oscilava para a frente e para trás, deixando o peso do corpo oscilar junto. – Quer algo?

– Se não conseguimos dormir, poderíamos conversar. – ele deu a ideia, que Melody descartou imediatamente. Ela não queria conversar, queria continuar na cama, deitada, bem quentinha debaixo dos lençóis. Mas apenas continuou imóvel, olhando-o, com o rosto inexpressivo. – Nossa aliança, nós podemos combinar de sair correndo todos juntos pra pegar as mochilas e fugir.

– Lizbett está dormindo, e ela provavelmente irá nos matar enquanto dormimos. Ela é cinco anos mais velha, não tem como “confiar” ou “escolher” a gente, se ela tem muito mais vantagem sem dois pesos mortos em suas costas.

– Mas ela é uma boa pessoa. Liz gosta de ajudar, embora não demonstre. Você também gosta de ter uma aliança, mas não demonstra. Vocês duas são assim. Eu sei disso – Peter enrolou uma madeixa ruiva no dedo fino e ossudo. – E nós não somos inúteis. Liz é mais forte e poderia se dar melhor em combates, porém você é muito inteligente, Mel, e eu posso fazer o trabalho de colher galhos, montar a fogueira, buscar água...

– Você morreria se perambulasse por aí sozinho buscando água. – Melody revirou os olhos castanho-dourados, à luz da Lua que entrava pelas janelas do quarto. Embora fosse ainda escuro, era facilmente perceptível que ela estava levemente ruborizada, pelo modo como movia os pés e como o peso de seu corpo também passou a oscilar de um lado para o outro. Numa música desalinhada, uma melodia desafinada, desencontrando-se, eles bailavam, oscilando, oscilando, oscilando. É uma boa palavra, esta, não?

– Não está com medo? – ela perguntou, abaixando os olhos para o chão. - ... de morrer?

– Somente os Carreiristas não têm medo de morrer. – Peter sorriu.

– Eu discordo. – ela voltou a erguer os olhos. – Todos têm esse medo, a Capital se assegura de que todos tenham. Você gostaria de ser o quê, quando crescer?

– Eu não sei... Provavelmente mineiro. Ou funcionário de alguém. Eu queria ser Pacificador, manter a paz, mas me disseram que isso era o oposto de manter a paz, por isso desisti da ideia. Eu também já quis ser corredor. Gostava de correr no colégio, mas isso não é uma profissão. Na verdade, eu não quero ser algo que me prenda a um posto, eu gostaria de ser livre para fazer o que eu gosto, quando quero, como quero.

– Então você poderia ser um Idealizador. – Melody sorriu de lado. – Poderia mudar os Jogos. Mudar tudo.

– Mas eu não sou tão inteligente – Peter deu de ombros – Você conseguiria isso.

– Nós vamos ambos morrer antes que pensemos na próxima coisa que gostaríamos de fazer fora da Arena. – ela disse, com convicção. – Ninguém nunca passou de uma semana, nosso Distrito.

Peter não respondeu, continuou oscilando.

– Mas tudo bem. Todos vão morrer, e isso me consola. – Ela sorriu – Uns mais cedo, outros mais tarde. Mas vão todos morrer. Mortinhos. Debaixo da terra. Ninguém vive para sempre.

Peter ergueu seus olhos cristalinos.

– Não é incrível? – ele disse, o entusiasmo de repente se apoderando de seu ser – Toda essa coisa da vida? Nós nem mesmo sabemos por quê, mas existimos. Poderíamos ser matéria morta ou inanimada, como as pedras e a água, mas nós vivemos, e ainda por cima nós pensamos. E podemos falar. Isso é incrível. – Melody prendeu a respiração. – É um milagre isso. Todo o caos queria que não existisse vida. Mas aqui estamos, vivinhos. Todas as coisas são mortas, ou inanimadas, todas as coisas não podem pensar, falar ou tomar decisões. Os planetas, e o céu, e o Sol. Eles não têm a nossa vida. Eles já são apenas matéria. Mas nós não. Nós temos órgãos, sangue e DNA. Temos um código genético que nos permite evoluir, temos pés para correr e mãos para segurar coisas. E conseguimos conversar por meio de gestos.

– Você não acha incrível como alguém pode não ter uma consciência e não distinguir o certo e o errado? Há pessoas assim, pessoas que matariam pensando que isso não tem valor algum. Pessoas cujas vidas foram arruinadas desde pequenas.

– Essas pessoas são coitadas, caso estivessem perto de mim, inundaria todas de carinho. – Peter sorriu. E em seguida bocejou. – Parece que o sono voltou...

– Temos Arena amanhã. Vá dormir – Melody disse com firmeza, e entrou no quarto, fechando a porta até a metade. Peter acenou e foi em direção ao próprio quarto. Com isso, voltou para cama e se cobriu, não sentindo mais o suor.

Melody não queria pensar, queria dormir. Adormecer profundamente, sem sonhar com nada além de dormir. Se é que era possível dormir dormindo. Ou dormir dentro de um sonho. Ou dormir e sonhar que se está dormindo. Acho que você entendeu como os pensamentos de Melody estavam desconexos e entediantes e por isso ela queria dormir. Pensar era algo fácil, mas extremamente complicado quando feito com sono. Assim como caminhar em cima de um muro. É fácil, se você não estiver bêbado.

Então Melody adormeceu, pouco a pouco. Oscilando.