Papoula

“A sabedoria com as coisas da vida não consiste, ao que me parece, em saber o que é preciso fazer, mas em saber o que é preciso fazer antes e o que fazer depois.” – Leon Tolstoi

Imagine Dragons – Warriors

Märeen estava preparada para começar a sua carnificina. Não por ela, é claro, para a Mãe. Olhou ao redor, sentindo todos os sentidos se apurarem. Quando chegasse ao solo da Arena, poderia tocar o chão e receber as coordenadas para as oferendas. Não importava qual arma ela receberia, não importava como iria matar, só tinha de fazê-lo. Märeen sentia-se estranhamente vazia hoje, como se algo faltasse em seu peito. Um grande buraco formado pela ausência da Mãe Vermelha, sim, hoje ela estaria sozinha, pois assim devia ser. Apenas ela podia pagar por todo o sangue já derramado em seu favor. Quando o elevador começou a subir, sentiu também um ímpeto de coragem. Iria arrancar o coração de todos aqueles que se colocassem em seu caminho, que se colocassem no caminho da Mãe.

Afinal, “todos morrem”. A velha filosofia da vida, a única verdade existente em toda a humanidade. Nós morremos, mas os imortais são venerados, pois eles são superiores. Tudo aquilo que não possui vida, já é imortal, então. Qual o sentido de chamar deuses de imortais, se eles nunca viveram? A Mãe Vermelha não era imortal. Ela era imutável. A fonte da verdade. Märeen olhou para o derredor. Grandes carcaças e esqueletos metálicos jaziam entre tufos de mato e hera.

Era impossível ver a Arena, ou senti-la. O chão ao seu redor era fraco, era débil. Era um chão desanimado, sem estímulo para viver. As árvores cobriam todo o terreno há quilômetros de distância. As colinas e dunas formadas por terra e pedaços de ferro retorcidos e corroídos pelo tempo deixavam o terreno ainda mais oscilante. Entretanto, diante dos vinte e quatro meninos e meninas que ali estavam em pé, estava uma pequena barraca de cachorro quente, fechada a cadeado e tábuas de madeira, com suas janelas quebradas, suas máquinas enferrujadas e pilhas de comida vencida. Ao lado, lia-se a grande placa de saudação aos visitantes do Parque de Diversões, cujo nome estava ilegível pois os letreiros caíram há muito.

Não havia mochilas. Não havia armas. Não havia nada além daquilo, e no centro do círculo, o cronometro contando dez segundos para o início dos Jogos. Teria de matar com as próprias mãos? Ou poderia encontrar alguma peça de metal entre a grama e assim começar a chacina? Märeen olhou para as presas. Eram tantos, poderia escolher a quem quisesse. Não exatamente qualquer um, mas aqueles que se encaixavam nas descrições da Mãe. O mais fácil seria o tolo, o pagamento por Vanutya, a menina que morreu por ela nos Jogos. Tinha de matar antes que este a percebesse, pelas costas. Märeen encontrou seu aliado com os olhos. Ele estava radiante, com seus cabelos dourados refletindo aos raios solares.

– Bem vindos, tributos, a décima primeira edição de Jogos Vorazes.

O cronometro chegou a zero. Porém ninguém correu. Não havia para onde correr, não havia Cornucópia. Olhavam ao redor, desorientados, todos, menos Märeen. Ela olhava para o chão, pois sabia que lá estaria sua resposta. Encontrou o que precisava: a trava de segurança de algum brinquedo daquele parque de diversões, uma trava que fora lançada longe, resultando na queda de alguém por vários metros de distância. Correu, ignorando os olhares assustados dos outros tributos, agarrou a ponta e arrancou a barra do meio da grama, erguendo-a alto o suficiente para que todos a vissem com sua nova arma. A trava era pintada de cor-de-rosa e tinha desenhos de ursinhos coloridos. Sorriu. Aos poucos, os tributos compreenderam. Alguns fugiram sem se dar ao trabalho de procurar por algo em meio a terra, outros, os Carreiristas, se ajoelharam e começaram a caçar. Märeen, no centro de tudo aquilo, achou patético. Caminhou até o tolo, e acertou-lhe a nuca.

Ele estava ajoelhado, como os outros, procurando com as unhas na terra. O sangue explodiu sobre a grama, e o canhão disparou alto. A cabeça de muitos se voltaram para ela, e Märeen apenas continuou correndo, em direção a mais alta estrutura que conseguia ver dali: a roda gigante. O caminho que percorreria era difícil, haviam outras peças no chão, algumas escondidas pela grama, e que a obrigavam a pisar com firmeza e visualizar bem onde colocaria o próximo passo. O Sol não era forte, e a brisa era fria. Os céus pareciam nublados, embora nenhuma nuvem caminhasse por eles.

Olhe.

A voz da Mãe Vermelha era inconfundível, preenchendo-a novamente, exilando aquele vazio de dentro dela. A deusa dizia para olhar e Märeen por isso olhou. Mas antes de ver, ela ouviu, a respiração ofegante de alguém que parecia não querer ser visto. Depois, viu a parte da grama amassada, onde provavelmente a pessoa havia caminhado. Logo em seguida, ela caminhou pela mesma parte da relva e encontrou, escondido atrás de uma das cabines da roda gigante, a cabeça ruiva e o rosto pálido.

Um presente.

Era óbvio que aquilo era um presente. A Mãe lhe estava dando uma ajuda, talvez para matar, talvez para sobreviver, ou ambos. A cabeleira ruiva era um sinal claro, o vermelho sempre presente. O sangue, o entardecer, o vinho, e o beijo. A Mãe beijava os escolhidos. Aqueles que ela agraciava com um dom em particular. A Mãe o queria vivo, e sozinho ele pereceria.

– Qual seu nome?

– Não me mata, por favor, não em mata. – ele murmurou, assustado. A criança parecia controlada, embora dissesse implorando para que não o matasse. Ele não parecia prestes a chorar. Märeen seguiu o caminho dos olhos dele, estava encarando a barra em suas mãos, manchada de sangue. – Aquele canhão, foi você?

– Sim, fui eu. – ela concordou, ajoelhando-se – Mas eu só mato pessoas más. Más o suficiente para morrerem.

– Ninguém merece morrer. – ele discordou e em seguida ergueu a cabeça para ela, as sobrancelhas eram graciosamente vermelhas. – Eu sou Peter, sou do Distrito Doze. E você?

– Märeen, Distrito Oito. – ela olhou ao redor – Peter, você já tem alguma aliança?

– S-sim. Mas eu não sei onde elas estão. É a menina que veio comigo do Doze e a garota do Cinco.

– Agora você também está comigo. Tem alguma ideia de onde elas possam estar? – perguntou com simplicidade. Peter parecia já confiar nela o suficiente para tirar os olhos da barra de metal e erguer até a roda gigante.

– Acho que vi Melody correr para esta direção. Mas eu me perdi. Na verdade eu caí e machuquei meu... – então ele se calou. Parecia uma criança que havia acabado de contar uma travessura sem querer.

– Deixe-me ver. – ela exigiu. Porém Peter continuou sem responder. – Eu quero ver. Se não fizer algo é capaz que infeccione. Se você se cortou em algum desses brinquedos enferrujados, estará com sérios problemas.

Peter entregou-lhe seu pé direito, puxando a barra do agasalho preto e de tecido grosso que usava. Seu tornozelo era fino e os ossos apareciam bem através da pele branca. Um leve corte manchava de vermelho a sua panturrilha. Era pequeno e indigno de atenção. Sorriu e olhou para ele da forma mais amigável possível. Märeen não sabia como lidar com crianças, mas sabia que sorrir era o melhor partido para se relacionar com qualquer pessoa.

– Não é tão ruim. Você consegue andar?

– Sim. – ele afirmou, levantando-se. Sua cabeça batia em seus seios, e ela achou aquilo engraçado, porém não riu. Olhou ao redor, teriam de continuar indo para a roda gigante, pois era o local mais seguro para correr. Märeen queria subir e olhar para toda a Arena, Peter queria encontrar sua outra aliada.

– Eu vou carregar isso, para caso nós encontremos algum perigo. – ela balançou a barra e começou a andar. Peter veio logo atrás. Ele parecia receoso de dizer algo, por isso continuaram em silêncio, caminhando juntos. O mato aumentava quanto mais a fundo eles entravam no parque de diversões. Os céus permaneciam brancos, e o único som que era ouvido, vinha dos pássaros que voavam pelas árvores. Volta e meia, encontravam um formigueiro ou outra peça irreconhecível do parque de diversões. A Arena parecia estranhamente monótona, diferente de todas as outras, onde nos primeiros dez minutos havia muito sangue e canhões.

Märeen fechou a gola de sua jaqueta e colocou os cabelos crespos para trás dos ombros. Olhou algumas vezes para Peter, por cima do ombro, para ter certeza de que ele a estava seguindo, em uma dessas vezes, não o encontrou. Parou de andar no mesmo segundo, virando-se para procurá-lo.

– Peter? – chamou. O silêncio a respondeu.

Virou-se novamente. Via apenas o matagal e a roda gigante, agora muito mais próxima. De repente o ruído de mato se movendo chegou a seus ouvidos e Märeen se virou para o local de onde viera o som. Visíveis pegadas deixavam o rastro e ela seguiu o caminho até alcançar um destroço grande e largo, que possivelmente fazia parte dos trilhos de uma montanha-russa. Lá, viu as pernas de Peter e as costas de um rapas moreno ato e forte. Parecia asfixiar o pequeno garoto. Märeen lançou a barra contra as costas dele, que soltou Peter e se levantou estabanado. O menino encarou-a e então trincou os dentes, partindo para cima dela.

Ele tinha um punho enfurecido vindo a seu encontro, por isso se esquivou, abaixando-se, e com a ponta da barra fincou-o no estômago. Ele tossiu e vomitou algo que deveria ter comido, porém logo recobrou os sentidos. Peter correu para longe, para trás dela, e Märeen continuou a encarar o garoto grandalhão. Por Shaniqua, você matará alguém que a subestime.

Ele rugiu de ódio e com as grandes mãos agarrou a barra e a arrancou de Märeen lançando longe o instrumento de matança. Desarmada, Märeen recuou alguns passos, porém ele a segurou pela cabeça com uma das mãos e socou-lhe o peito com a outra. Sentiu a intensidade tremer a caixa torácica e o ar desaparecer dos pulmões, enquanto se curvava para a frente, completamente sem forças.

– Märeen! – ouviu Peter gritando, porém isso não chamou a atenção do rapaz maior. Ele a havia pego com o braço, enforcando-a do mesmo como que fizera com Peter, e agora a matava, pouco a pouco. Märeen cerrou os punhos e trincou os dentes, tentando colocar a mão por dentro do braço dele e evitar que a asfixiasse. – Märeen! – Peter gritou, e então ela o viu, segurando a barra. Parecia não saber o que fazer com ela. Märeen ergueu uma mão, tentando ser furtiva e movimentou-a no sinal de “jogue”. Peter era inteligente, ao menos, e o fez.

Porém no mesmo instante o rapaz se levantou e a ergueu junto, tirando Märeen do chão e fazendo-a ficar de frente a Peter. O menino estava com os olhos arregalados e ela pensou que talvez seu rosto não estivesse com a melhor das expressões. O fato é, a barra acertou-o na cabeça, pois a mira de Peter era realmente horrível, porém sua sorte grande, pois ele era um escolhido da Mãe Vermelha e assim, quando a barra acertou o rapaz, ele cambaleou, como Golias fez ao ser atingido por Davi, e caiu de costas, soltando Märeen. Ela sorriu, quase cheia de euforia, enquanto se colocava sobre ele apertava-lhe a garganta com todas as forças. As unhas penetraram sua pele e ela esmagou sua traqueia, engasgando-o na própria saliva. O menino abriu a boca, buscando golfadas de ar, mas sem conseguir engoli-las. Ele a empurrou e se agarrou a grama, arrancando tufos inteiros, contorcendo-se, com as mãos ao redor da garganta ou os pés batendo contra o chão. Quando finalmente o canhão soou, seus olhos estavam quase saltando para fora das órbitas, seu rosto estava negro e as unhas desapareciam, deixando apenas a carne viva.

Märeen se levantou e buscou a barra, voltando para junto de Peter.

– Bom trabalho – ele disse, embora não sorrisse. Parecia perturbado pela morte do rapaz.

– É, bom trabalho – Märeen abriu um sorriso largo demais, que fez Peter a encarar por tempo demais, até que eles voltassem a olhar para a roda gigante e reformulassem o objetivo principal do momento: encontrar as outras aliadas de Peter e conseguir um bom abrigo. Märeen notou que dois nomes na lista da Mãe Vermelha já tinham sido riscados. Agora só faltavam mais três.