Ah cara...

Já devo estar no banheiro observando meu corpo há umas duas horas... Fazem 2 anos que Tadashi morreu naquele incêndio e... não é que cheguei a ficar parecido com ele? Tá, pode ser só impressão minha, ou até, apenas um desejo meu. Mas e daí?

Vesti a camisa novamente e observei uma foto sua. Não, eu não fiquei parecido com ele. Certo, tenho 16 anos e ainda pareço um moleque magrelo e, às vezes tenho que fazer a barba (que mal tenho). Pois é, Hiro Hamada não mudou muito.

Felizmente, hoje é domingo, ou seja, é dia de sair pra festas, pegar umas meninas... Não, mentira. Na real, hoje é um daqueles dias em que você acorda mais cansado do que quando foi dormir, toma café ainda com sono, e á noite, liga o seu robô médico e sai por aí fazendo coisas de herói. Só isso.

Saí do meu quarto e desci para o café com a tia Cass. Eu já tinha ativado o Baymax, e logo o pessoal chegaria pra conversar sobre os novos projetos pra facú, as coisas de herói e o que mais que fosse.

I see trees of green
Red roses too
I see them bloom
For me and you
And I think to myself
What wonderful world

Aquela música... Olhei pela janela e vi, do outro lado da rua a dona da voz que adentrava o estabelecimento de tia Cass. Ela cantava enquanto um homem ao seu lado tocava violão. Era uma coisa... bem legal!

—Eu vou lá ver!- avisei tia Cass, que também olhava pela janela, curiosa.

I see skies of blue
And clouds of white,
The bright blessed day,
The dark sacred night
And I think to myself
What wonderful world

A menina sorria para as poucas pessoas que pararam suas vidas por breves momentos para assisti-la. Ela tinha uma voz e uma graciosidade bem incomuns.

The clors of the rainbow
So pretty in the sky
Are also on the faces
Of people going by
I see friends shaking hands
Saying:"How do you do?"
They're really saying
"I... I love you"...

De repente uma das garotas que assistia começou a cantar "roubando" o lugar daquela menina. Ao invés de ficar ofendida, as duas continuaram a cantar como num dueto. Pareciam estar se divertindo. Quando terminaram, as duas se abraçaram.

Espera aí...

Eu já vi essas duas, eu as conheço!

Umas duas semanas atrás... Enquanto eu e o resto da turma estávamos "sendo heróis", vi essas duas dormindo no beco. E instantaneamente me lembrei do Tadashi.

Olhei pro Baymax, que estava ao meu lado:

—Parece que já acabou. Vem, vamos embora.

Enquanto o restante das pessoas se dispersava, consegui ouvir como num sussurro:

—Seremos felizes, eu prometo!

~~~

—Hiro, como foi hoje?- tia Cass pergunta ao ver-me na garagem com a galera.

—Hum... até que foi bem agitado, eu acho...- pra falar a verdade eu só voei no Baymax, enquanto o resto do pessoal também só curtia. -Querem alguma coisa pra comer?

—Uhuulll! Se for de graça eu tô na área!- respondeu Fred. Wasabi, Gogo e Honey concordaram. Que povinho mais mão-de-vaca, hein?

Chegando lá, acendi a luz e...

—Mas o que é isso?- ouvi a tia Cass gritar.

Tinha alguém roubando os doces que tia Cass vendia no café. O ladrão tentou fugir pela janela, mas Gogo ainda estava com seu equipamento, e foi mais rápida. Quando o trouxe para a luz, para que pudéssemos ver quem era, uma surpresa:

—Mas... você?- Tá, isso realmente foi chocante!

"O ladrão" tratava-se da garotinha metida que se intrometeu na apresentação daquela outra menina hoje mais cedo. Parece que não são só os meus amigos que querem comida de graça... E ela também não era exatamente uma "garotinha", devia ter a minha idade.

Wasabi tomou a palavra:

—Por que você estava roubando, menina?! Não sabe que é errado?

Ela continuou em silêncio, olhando para baixo, enquanto tia Cass recolocava os doces nas prateleiras.

—Ok, então você pode pagar e levar os doces que deixamos a polícia fora disso.- tia Cass falou dessa vez, enquanto Baymax a escaneava.

—Diagnóstico: depressão.

—Ah, você jura mesmo?- Ela disse, revirando os olhos como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.

—O diagnóstico também indica que não come há dois dias.- essa notícia também não parecia novidade pra ela.

Tia Cass suspirou pesadamente. Fui até as prateleiras, peguei um doce mais gordinho e ofereci a ela. Estava escrito na sua cara que não queria aceitar, mas pegou o doce da minha mão com cuidado, e ficou olhando pra ele.

—Obrigada.- disse numa voz baixa e seca. Estava com vergonha.

—Quem é você?- Honey perguntou.

—Não posso dizer.- falou, ainda olhando pro doce em suas mãos -Sinto muito.

A garota se levantou, como se preparando para ir embora, agradeceu novamente, e saiu pela porta. Fui até ela. Qual é? Eu ia deixar uma moça faminta andar na rua sozinha depois das dez da noite? Não, né?!

—Espera, não quer uma carona pra casa?

Ela olhou pra mim com uma mistura de ironia e curiosidade, e respondeu:

—Claro!- Em seguida deu mais dois passos e alcançou a calçada. -Muito obrigada, sua companhia foi um imenso prazer!

Eu fiquei ali parado por um tempo, pensando no que aconteceu...

—Ah, entendi, você mora na rua!- Disse alcançando-a novamente -Peraí! você mora na rua?

—Sim. Dá pra acreditar que cheguei a esse ponto? De querer roubar alguma coisa?

—Não se preocupe com isso. Não contaremos a ninguém.

—É... há uns dois anos eu tinha tudo. Sei que não acredita, mas... nem sempre fui tão pobre assim.

—O que não acredito é que se considere indigna de ajuda, numa situação assim.

—Qual seu nome?

—Hiro Hamada.

—Pois é, Hiro. Algumas coisas acontecem e... numa fração de segundo sua vida vira de ponta cabeça. Eu estou longe dos meus amigos, e nem sei se eles vão querer me ver depois de tudo o que houve comigo.

Ela dobrou a esquina, que reconheci como o mesmo beco de duas semanas atrás. Ouvimos um barulho, e a outra menina que também cantou hoje mais cedo apareceu e a abraçou.

—Você está bem? Se machucou? Onde estava? Fiquei muito preocupada com você!

Que cena familiar! Enquanto ela respondia aquele interrogatório, não pude segurar uma risadinha. A garota mais alta olhou pra mim, assustada e piscou duas vezes antes de perguntar:

—Você trouxe estranhos à nossa casa, Kátia?- Kátia! Era o nome da garota a quem eu estava acompanhando.

—Não compramos a calçada, Spencer! Qualquer um pode entrar e sair da "nossa casa" quando quiser.- O nome da outra era Spencer. Que gracinhas! Lembram muito a mim e meu irmão.

—Oi, eu sou Hiro.

—Olá, e desculpe por isso- falou Spencer -Acho que já está mesmo na hora da Kátia fazer novos amigos, e, por favor- Ela continuou, baixando o tom de voz como que para me contar um segredo -me ajude a colocar juízo na cabeça dela!

Sorri pra ela. Realmente lembrava muito o Tadashi.

—Então- comecei, tentando ajudar -Tem uma escola pública aqui perto, eu não estudo mais lá, só que... Há muitas pessoas da sua idade lá, Kátia. Qual sua idade?

—15 anos.

—Pois é! Acho que é uma boa oportunidade de fazer amigos.

Kátia ficou pensativa por alguns instantes.

—Eu nunca fui à uma escola pública, Hiro. Tenho medo. Mas... Também... Esperança...- disse olhando para Spencer.

Seu silêncio era conformada. Mais tranquilo que uma nuvem acima do céu. De certa forma, aquilo me trazia... paz! Estranho, não é?

Mais estranho impossível! Eu estava no meio da rua contemplando o modo de viver da assaltante da minha tia, e de algum modo, admirando-a. Em outras circunstancias seríamos amigos... talvez.

—Me desculpe, Kátia, mas eu tenho que ir.

—Imagine, foi um prazer... Hiro.

Me virei, respirei fundo e voltei pra casa.