— Acho que pegamos o caminho errado. – Disse Xena para a estrada vazia a sua frente. – Já deveriam ter aparecido pessoas, e até agora nada.

— Relaxe. – Respondeu Gabrielle ao seu lado. – Claro que estamos na estrada certa. Só estamos longe ainda da cidade.

Haviam chegado naquela estrada só depois de seis dias perguntando a todas as pessoas que encontravam pelo caminho sobre a mensageira de Eli. Nos primeiros cinco dias, nada, então ao final do sexto dia encontraram uma velinha de bochechas rosadas que lhes apontou o caminho. Desde então seguiram aquela estrada com poucas paradas.

Xena estava extasiada de rever a filha novamente, diferente de Gabrielle, que temia toda vez que pensava no reencontro.

Há meses, quando voltou para a Grécia, Gabrielle soube que Eve também havia voltado, então procurou por ela. Depois de quatro meses o boato de que a princesa guerreira havia morrido já se espalhara por todos os cantos do mundo, mas, até então, eram apenas boatos. Quando se reencontraram, foi a primeira coisa que Eve perguntou, para logo em seguida desabar em lágrimas quando ouviu a verdade. Gabrielle tentou conforta-la, mas Eve estava irreconciliável. Depois de ofensas, gritos de raiva e ataque com objetos – o que rendeu à Gabrielle um corte feio no meio da testa –, ela expulsou Gabrielle do acampamento onde estavam, e nunca mais uma viu a outra. Agora as duas se reencontrariam de novo, e Gabrielle não fazia ideia do que esperar.

Apreensiva, encolheu os ombros e suspirou. A paisagem a sua volta também não a estava ajudando muito a se distrair. A mesma área plana, com nada mais do que árvores de médio porte cobrindo o horizonte e rochas enormes dos dois lados, a grama rala que mais parecia uma pintura na terra. A única emoção eram as curvas que a estrada fazia em volta de uma pedra ou outra.

Terminaram de virar mais uma curva quando Argo II – que andava no meio das duas guerreiras – relinchou e deu um passo para trás.

No meio da estrada – ocupando uma linha reta de largura – estavam oito homens encarando-as.

— Finalmente temos companhia. – Comentou Xena observando a cena. Ela largou Argo II onde estava e começou a andar calmamente, seguida de Gabrielle. Com seis passos parou a uma distância de um braço daqueles homens.

Sem armadura, apenas uma espada na mão e vestindo roupas simples cor de areia, pareciam todos camponeses. Todos carregavam um olhar de gozação e um sorriso malicioso no rosto.

— Está um belo dia hoje. – Disse um deles, o do meio. Tinha o rosto redondo, a barba malfeita e o corpo bem queimado do sol. Aliás, todos pareciam iguais. Feios e maus cheirosos.

— De fato. – Respondeu Xena com a voz seca. Ela cruzou os braços casualmente.

— Não estamos com paciência para essa conversinha de pré-luta, ok? – Cortou Gabrielle quando outro homem fez menção de dizer alguma coisa.

— E quem disse que vamos lutar contra vocês? – Perguntou outro, o da ponta esquerda. Xena riu. Um ruído seco e oco.

— E não vão?

O primeiro homem que havia falado levantou a espada, mas logo caiu no chão quando Xena socou sua cara em cheio.

No mesmo instante, todos os outros se afastaram, formando uma meia roda em volta das duas mulheres.

Xena sacou o chakram e lançou-o na vertical. O chakram cortou o ar com um ruído metálico e partiu ao meio todas as lâminas das espadas antes de voltar para a mão de sua dona.

Isso não pareceu intimar os camponeses nem um pouco, já que avançaram do mesmo jeito com suas lâminas pela metade.

Gabrielle defendeu o primeiro golpe com seu braço direito – usando o protetor de prata -, seguido de um soco bem dado na cabeça. O homem cambaleou um pouco para frente e essa foi a deixa para Gabrielle derruba-lo com um chute na altura do peito. Ouviu o som pesado do corpo batendo contra o chão enquanto se abaixava para evitar outro golpe de uma meia espada. Gabrielle pegou impulso e se lançou para cima – chutando o queixo do adversário no caminho -, aterrissou no chão e terminou com uma rasteira bem dada. O homem caiu desmaiado com o sangue fluindo livremente do nariz.

Terminara de derrubar outro com um soco de cotovelo quando ouviu um barulho estranho - um grunhido masculino. Mas o choque veio ao se virar e reconhecer o rosto a sua frente.

Xena pareceu ter ouvido também, já que desceu de cima do peito do homem desacordado e lançou um olhar de descrença para onde Gabrielle também olhava.

— Virgil? – Disseram as duas em uníssono.

Um camponês caído no chão murmurava algo impossível de se ouvir enquanto Virgil passava por cima dele – o que fez o homem soltar um barulho parecido de vomito – e caminhava em direção as duas guerreiras com um sorriso tímido.

Depois da súbita surpresa, Xena foi a primeira a se manifestar. Ela e Virgil andaram até se encontrarem e um abraçar o outro.

— Há quanto tempo, Virgil. – Xena disse depois de se afastarem. – Como tem estado?

— Bem – Virgil tomou uma respiração pesada. – E você está... Viva.

Xena soltou uma risada pelo nariz.

— É uma longa história.

— Disso eu não duvido. – Mesmo falando com Xena era em Gabrielle onde os olhos de Virgil estavam, durante todo o tempo, desde que ele apareceu no meio da luta. – Gabrielle... – Disse ele relutante.

— OI... – Respondeu Gabrielle. Sua voz saiu abafada, e só então percebeu que estava todo esse tempo prendendo a respiração. Ela deu um passo involuntariamente para trás quando Virgil fez menção de se aproximar, e cruzou os braços sobre o peito. Xena – é claro – percebeu a tensão que se instalava entre eles.

Pela primeira vez, Virgil desviou o olhar e encarou o chão antes de se virar para Xena novamente.

— Vocês estão indo para a cidade mais próxima, certo? – Ele tentava disfarçar, mas pela voz via-se que estava magoado.

— É. – Respondeu Xena. – Gabrielle e eu estamos procurando Eve. Achamos que ela pode estar lá.

— Que ótimo. Porque eu estava indo para lá também. – Informou com um sorriso discreto. – Vou acompanhar vocês.

Xena sorriu em concordância enquanto chamava Argo II para os três poderem seguir viagem. É claro que iria saber o que havia de errado com Gabrielle e Virgil, mas, primeiro, precisava encontrar Eve.

Gabrielle continuou lá parada, encarando tudo que antes julgava entediante, só para não ter que olhar para ele. O que ele está fazendo aqui? Não estava em seus planos reencontrá-lo, pelo menos não agora.

Gabrielle amaldiçoou a si mesma.

*******

A viagem foi, em uma palavra, desconfortável.

De um lado de Argo II estavam Xena e Virgil conversando pacificamente. Do outro lado estava Gabrielle, alisando a crina macia do cavalo com os dedos. Tentava pensar em qualquer coisa, mas era impossível com Virgil tão perto dela. Sua voz, a textura dos fios de cabelo na palma da mão, a sensação de encarar profundamente aqueles olhos verdes, o corpo quente e musculoso embaixo do couro preto... Pare com isso, Gabrielle Repreendeu a si mesma, Concentre-se. Concentre-se em qualquer outra coisa.

Xena. Isso precisava se concentrar em Xena. Mas... Que droga, disse mentalmente. Xena havia percebido a tensão entre os dois ainda há pouco. É claro que ela perguntaria sobre isso depois, e Gabrielle não tinha certeza se deveria lhe contar agora. Não queria contar sobre ela e Virgil com Virgil ali presente.

Agora não era só com Eve que Gabrielle teria que lidar, mas com Virgil também.

Desanimada, mordeu os lábios em desespero. O seu dia não poderia ficar pior.

*******

Não mais do que cinquenta casas de madeira se juntavam em duas linhas retas para formar a cidade. No meio das fileiras paralelas de casas uma fonte adorável de mármore branco enfeitava o local, com Afrodite em pé segurando um pequeno vasilhame por onde a água saía e continuava seu percurso por entre as pernas da deusa.

Aquilo era o local exato para nada mais do que paz e tranquilidade, se não fosse o caos instalado ali presente.

Quando chegou a tal cidade Xena não sabia para onde olhava primeiro.

Haviam carroças com mantimentos tombadas ou simplesmente largadas pelo caminho, homens bêbados com espadas na mão assustando pobres moradores que corriam em ziguezague pela larga praça; rizadas maldosas e azedas eram ouvidas por todo o lugar. O ar seco misturando a luz do Sol e a areia que subia e descia no chão só ajudava a caotizar o lugar.

Três homens, cada um com uma garrafa de bebida numa mão e uma espada na outra, se aproximaram assim que os três guerreiros chegaram. Mas Xena não estava com paciência para isso agora. Derrubou o primeiro que alcançou com um soco no queixo e continuou a andar, deixando os outros dois para Virgil e Gabrielle.

Ela correu mais adiante, onde um grupo de senhoras estava sendo roubado por quatro homens armados.

Xena sacou a espada e avançou. O primeiro golpe veio seco e rude quando as duas lâminas se chocaram. Veio o segundo golpe, depois o terceiro, quando a lâmina do rapaz escapou de sua mão, fincando no solo seco e batido. Xena então o socou na cabeça com o lado não cortante da espada.

Os outros dois se afastaram das senhoras e vieram de encontro com Xena. Nos primeiros golpes ela apenas defendeu com a lâmina no alto, até que chutou o joelho do homem da esquerda, fazendo-o cair, e com outro chute na cabeça o derrubou de costas no chão. O homem da direita, enquanto Xena se ocupava do da esquerda, tentou ataca-la desprevenida, mas Xena saltou para cima do exato momento que ele veio, fazendo-o ir de cara ao chão.

As senhoras haviam parado de gritar e chorar quando a luta começou, e aproveitaram para escapar, o que foi um alívio para Xena.

O quarto homem, aparentemente, também havia aproveitado a luta dos companheiros para fugir. Xena o avistou a uns dez metros de distância. Ela sacou o chakram e lançou-o em direção a ele. Foi bem na cintura da calça, onde o tecido caiu e fez o homem tropeçar na própria roupa. Xena pegou o chakram de volta e o prendeu na cintura enquanto corria na direção do homem caído.

Ao vê-la se aproximando ele tentou se levantar, mas sem sucesso. Xena se aproximou ao seu lado e o puxou pela gola empoeirada da camisa, levantando-o sem jeito até sua altura.

— Quem está no comando por aqui? – Xena surpreendeu-se por não estar gritando, mas estava muito perto disso.

O homem não respondeu, apenas continuou olhando para os pés com uma mistura de medo e vergonha. Ele parecia estar ao ponto de chorar.

— Quem está no comando? – Xena rugiu, sacudindo-o. Nesse momento, Virgil e Gabrielle aproximaram-se, cada um ficando de um lado.

— O comandante... – Choramingou o homem. – Ali. – Disse apontando para uma cabana grande de madeira na frente de uma fonte.

Xena descartou o homem, que saiu correndo desesperado. Ela começou a andar com Gabrielle e Virgil ainda silenciosos atrás dela.

Quanto mais se aproximavam, mais o som do caos da cidade se acalmava e uma música alta de vários instrumentos ao mesmo tempo era ouvida. Os três chegaram a uma grande cabana de palha e madeira – provavelmente a maior ali -, com uma enorme porta de três metros fechada com uma travessa de madeira no meio. Xena reuniu toda a força que tinha nas pernas e chutou a porta, quebrando a travessa e abrindo as portas para dentro.

Dentro do recinto, a música era alta e intoxicante. Em um palco improvisado do lado esquerdo, próximo à porta, um grupo de cantores cantava uma música alegre sobre os deuses enquanto moças alegres dançavam no meio do salão. Do lado direito um bar improvisado com tábuas de madeira e barris não parava de servir cerveja aos ali presentes. Conversas e risada altas se misturavam em meio à música e a cantoria, tornando o ambiente o mais amigável possível.

Quando os três guerreiros adentraram ali, a música, a dança, a cantoria e a conversa se cessaram. Apenas a respiração pesada dos bêbados era ouvida. Xena sacou a espada e andou até chegar ao meio do salão.

— Quero ter uma palavrinha com o comandante. – Disse firme, encarando todos com os olhos cerrados. A maioria, ao ouvir o que ela disse, virou a cabeça para o fundo da cabana, chamando a atenção de Xena.

Ao fundo, um trono improvisado com penas e pedras era possível ser visto sobre três pequenas escadas no caminho. Alguém estava ali sentando, calmo e silencioso, enquanto três homens estavam parados na frente, tampando a visão. Xena se aproximou e a pessoa sentada fez menção de se levantar, fazendo os três homens se retirarem para o lado. Na mesma hora Xena parou congelada onde estava, a respiração presa na garganta. Não poderia ser real quem ela estava vendo. Estava sem reação, com o cabo da espada frouxa na mão e a voz fraca e trêmula quando disse:

— Eve?

Ao passo que Xena estava perplexa, encarando a filha como se estivesse vendo um fantasma, Eve não estava muito diferente. Levantou-se, mas não saiu do lugar, apenas ficou encarando a mãe como uma criança confusa em meio a um mundo de adultos. Por um momento pareceu querer dizer alguma coisa. Estufou o peito e a entreabriu os lábios, mas nada saiu. Então muito vagarosamente, com muito receio, quase como se tivesse medo de dar um passo e o chão rachar a sua frente, Eve veio em sua direção.

Xena ainda continuava estática. A espada havia sido deixada no chão, algo que Xena em meio à confusão, não havia percebido ainda. Estava confusa e não fazia ideia de por onde começar as perguntas. Por que Eve estava ali? E vestida assim?

Depois do susto súbito, Xena direcionou seus olhar para as vestes da filha, e não ficou satisfeita. Eve estava com um top de alça e uma saia que ia até o meio das coxas, tudo em vermelho, contrastando com a pele pálida. Um tecido fino e verde começava cobrindo a lateral do quadril esquerdo, subindo diagonalmente até terminar no ombro direito. Mas o problema foi quando percebeu que a armadura cobrindo o braço esquerdo, a bota prateada e um punhal preso em cada lado do quadril faziam parte da vestimenta. Para piorar, seu cabelo estava jogado e preso para o alto, fazendo com que o resto do longo cabelo caísse em volta de sua cabeça como uma fonte expelindo água para cima. Ela era uma mistura de Eve e Lívia, o que fez Xena suspirar nervosa.

As pessoas que ainda estavam paradas no meio do salão se afastavam apressadamente e se esgueiravam nas paredes enquanto Eve passava. Sua expressão mudando drasticamente de confusão para irritação e fúria, travando o maxilar enquanto encarava a mãe. Estavam as duas agora próxima uma da outra, o rosto a trinta centímetros do outro.

— Eve... – Sussurrou carinhosamente Xena, erguendo o braço para abraçar a filha, mas só recebeu um olhar ainda mais irritado de Eve, e seu afastamento repentino.

Mas as coisas só pioraram quando Eve lançou um olhar atrás de Xena, para onde Gabrielle estava parada respirando pesado, o peito subindo e descendo rápido de nervosismo. A raiva de Eve pareceu triplicar e com isso seu rosto endureceu ainda mais, o azul de seus olhos se intensificando junto com a raiva se instalando em seu corpo.

Ela ignorou Xena e a empurrou com o ombro, então sacou o par de punhais e se jogou em cima de Gabrielle. As duas foram parar fora da cabana, com Eve atacando e Gabrielle só defendendo os golpes enquanto andava apressadamente para trás involuntariamente.

Xena, ainda dentro da cabana, balançou a cabeça desvencilhando-se do transe antes de seguir as duas para fora. Mas antes puxou a espada caída no chão com o pé para cima e a guardou de volta na bainha nas costas. Por cima do ombro viu alguns dos camponeses erguerem a espada, mas Virgil sacou a sua também, mantendo-os lá dentro, e Xena agradeceu-o com um leve aceno. Já teria o trabalho de separar Eve de Gabrielle antes que uma machucasse a outra, e não poderia ter um bando de amadores com espada atrás dela.

Lá fora, o caos que Xena presenciara há alguns minutos havia cessado, como se nunca nem tivesse existido, agora apenas pessoas caídas ou encostadas nas portas das casas eram vistas. A poeira havia abaixado, mas o ambiente continuava abafado. Eve e Gabrielle estavam no meio da grande praça.

— Parem com isso! – Berrou Xena. – Parem com isso agora! – Mas em nada adiantou, era como se nenhuma das duas, tão envolvidas na luta, tivessem ouvido. Xena bufou e criou mentalmente uma imagem dela enforcando Eve até ela voltar como antes.

De costas no chão seco, Gabrielle usou a perna esquerda para chutar Eve de cima dela antes de se levantar novamente. Eve grunhiu e se jogou de novo sobre ela, desta vez com os punhais, que Gabrielle defendeu com um golpe dos sais cruzados. Estavam as duas forçando metal contra metal na altura da cabeça quando um brilho prateado passou por entre elas. O chakram de Xena. As duas foram praticamente jogadas no chão, mas Eve não estava determinada a permanecer lá, então ela se jogou, de novo, em cima de Gabrielle, de novo. O primeiro golpe veio na direção de seu rosto, mas Gabrielle segurou seu punho a tempo. Eve grunhiu ainda mais em irritação, então aproximou seu rosto ao de Gabrielle, quase tocando seu nariz com a aproximação.

— Qual... Foi a parte que você não entendeu... – Sussurrou perigosamente, como uma cascavel chacoalhando o guizo. – Sobre eu nunca mais querer ver a sua cara... Na minha frente? – Dando ênfase na ultima palavra, forçou mais o punho interrompido.

Gabrielle estava pronta para sussurrar um pedido de desculpas quando viu duas mãos seguraram o ombro de Eve e jogarem-na para trás. Gabrielle olhou para frente e Xena estava lá, ao lado de Eve, que a encarava perigosamente por entre as sobrancelhas escuras. Xena então estendeu a mão para ajuda-la, mas Eve a ignorou completamente e se levantou sozinha. Gabrielle tateou o chão em busca do par de sais, guardou-os na lateral das botas e se levantou.

— Agora – Começou Xena – Vamos todas nos acalmar e resolver a situação.

— Cala a boca. – Respondeu Eve virando seu corpo em direção a Xena. – Quem você pensa que é para vir aqui e me dar ordens? E desde quando você voltou à vida? Achei que estava morta – Ela cruzou os braços sobre o peito e acenou com o queixo em direção a Gabrielle. – Não vá me dizer que a loirinha vadia mentiu sobre a traíra estar viva. Típico.

— Loirinha vadia? – Repetiu Gabrielle exaltada.

— Não sou nenhuma traíra. – Defendeu-se Xena. – Eve, me deixe explic...

— Eu não quero explicação nenhuma! – Interrompeu Eve – Na verdade, eu não quero nem que você fale comigo. – Ela descruzou os braços e deu um passo para trás. – Vocês duas, nunca deveriam ter voltado. – Então se virou e continuou andando. Xena tentou ir atrás dela, mas foi interrompida pelos braços de Gabrielle.

— Espere. – Ela disse. – Não irá adiantar nada irmos atrás dela agora.

— Gabrielle, não era... Não era ela. Não era minha filha. Não era Eve. – Xena disse mais para convencer a si mesma do que a outra pessoa. – Alguém deve estar por trás disso. Eu tenho certeza.

— Alguém em mente? – Perguntou Gabrielle.

Xena então memorizou a única coisa que poderia fazer Eve ficar assim, e sentiu adrenalina ferver em suas veias.

— Eu tenho uma ideia. E é melhor eu estar errada. – Disse.

*******

Eve entrou na primeira casa que viu em sua frente. Tudo o que queria era sumir de vistas daquelas duas. Precisava pensar com calma, e sabia que nunca conseguiria com aquela traíra e a vadia ao seu lado.

O lugar não tinha nada mais do que uma mesa de madeira barata com uma jarra em cima dela, e algumas cadeiras espalhada pela sala. Eve expulsou um homem que estava escondido ali por entre as cadeiras antes de se dirigir a mesa e levar o conteúdo da jarra até a garganta. Mas o líquido mal se encostou à língua e ela virou a cabeça de lado para cuspir. Água? Sério?

Ela apoiou as mãos na borda da mesa, a respiração um pouco falha e as unhas trincadas no barro. Eve trincou os dentes antes de sentir a raiva tomando conta de si novamente e ela levar a mesa ao chão; o móvel se desintegrou por inteiro, deixando pequenos fiapos voando pelo ar. Eve precisava se acalmar, precisava socar alguém no meio da cara, precisava...

— Eu prefiro quando você desconta sua raiva toda em mim. – Disse a voz grave e baixa propositalmente atrás dela.

Na mesma hora Eve sentiu um calor infiltrando-se em todo o seu corpo, sua respiração se aquietou enquanto sentiu as batidas de seu coração aumentar. Ela se virou eufórica enquanto encarava o Deus com um sorriso malicioso. Ela não conseguia resistir quando ele aparecia assim de surpresa. E já faziam mais de duas semanas que não se viam.

Ares estava parado a menos de dois metros dela, sua mão apoiada casualmente no cabo de sua espada bem presa na bainha no quadril. Sua expressão era de divertimento enquanto encarava de cima a baixo a morena a sua frente.

— Toda essa raiva descontada nesses móveis. Especialmente na mesa. – Continuou ele debochado, aqueles olhos grandes e negros brilhando em divertimento.

Eve lançou um olhar rápido para a mesa em pedaços.

— O quê? Queria que fosse você jogado no chão?

— Só se você ficasse por cima.

Eve estufou o peito e torceu os lábios para não abrir um sorriso de orelha a orelha com aquele comentário. Por algum motivo, seus olhos não conseguiam parar de encarar o peito grande e musculoso coberto por couro do Deus; ela podia tentar desviar o olhar, mas seus olhos sempre eram arrastados de volta. Não que ela estivesse reclamando, é claro. Mas então se lembrou do porque estava naquela cabana horrível, e desanimou completamente.

— Não posso agora. – Sussurrou, xingando a si mesma por estar dizendo aquilo.

— Por que não? – Apesar do tom de ofendido, Eve sabia que Ares não estava realmente ofendido. Tudo era sempre mais uma brincadeira para ele.

— Por que... – Ela não queria dizer que não conseguia pensar em mais nada além de se livrar daquelas duas lá fora, mas isso implicaria em contar a Ares quem estava lá fora, e a última coisa que Eve queria era dizer a ele que a mulher que ele perseguiu por anos estava viva e bem atrás dela.

— Por que... – Ele repetiu, mas então riu divertido, e Eve não sabia onde esconder sua cara. – Eu sou um Deus, Eve – ele continuou agora um pouco mais sério –, eu sempre sei o que acontece a minha volta.

— Então você sabe que...

— Xena está viva? – Ele cortou-a no meio – Sim, claro que eu sei. Aliás, achei que fosse ficar feliz em rever sua mãe, já que... Você sabe... Ela estava morta e tal.

Eve teve vontade de chutá-lo naquele exato momento.

— Feliz? Eu devo estar feliz por ver a pessoa que preferiu morrer para salvar uns idiotas a continuar viva para a filha dela? Por que eu faria isso? Foi você mesmo que disse que eu deveria odiá-la para sempre. Então...

Mas Ares colocou um dedo sobre seus lábios, impedindo-a de continuar. Apesar de não se importar com o contato entre eles, Eve estava se irritando com essas interrupções.

— Shhh... – Disse Ares. – Você entendeu errado. Veja, o que eu disse foi para você odiar a outra amiguinha dela, Gabrielle. – Ele puxou Eve em seus braços, apertando sua cintura enquanto enchia seu pescoço de beijos e mordidinhas. – Agora, vê se fica mais calma.

Eve se segurou com uma mão em volta do pescoço do Deus, enquanto a outra arranhava de leve o seu peito, sentindo o calor que emanava de seu corpo. Quando menos esperava, estava sorrindo como uma garotinha.

— Sim... – Suspirou sentindo os beijos se intensificando do pescoço para o colo do peito. – Sim...

*******

O mármore era frio contra a pele, enquanto o barulho de água sobre água era tão reconfortante quanto uma fonte no meio do nada poderia ser. Gabrielle encarava a estátua enquanto Xena dava voltas e mais voltas ao redor dela.

Eve havia desaparecido por entre uma das casas do vilarejo fazia agora quase meia hora, e há meia hora Gabrielle tentava em vão tranquilizar a amiga – não que ela estivesse muito calma, já que ainda pouco havia lutado para não levar uma facada no olho e, para ficar ainda pior, era obrigada a ficar perto do homem com quem tinha assuntos inacabados. É. Ela não estava nem um pouco calma.

— Xena pare de andar em voltas e sente-se. – Disse calma – Você vai ficar com tontura se continuar assim.

— Onde está Virgil? – Perguntou Xena ignorando Gabrielle – Ela já deveria ter voltado! – Disse dessa vez com a voz mais grave.

Gabrielle olhou para o outro lado, para o celeiro ao longe e as pequenas casas que se seguiam ao lado dele. Xena havia mandado Virgil atrás dos seguidores de Eli que poderiam, hipoteticamente, estar ali, para poderem explicar o que estava acontecendo. Quando chegaram à aldeia, não havia sinal nenhum deles, apenas dos próprios moradores, então os três suspeitavam que eles estivessem escondidos ou aguardando Eve em algum lugar.

Gabrielle suspirou pesado e estava quase se virando quando avistou Virgil correndo em direção a ela. Ele parecia assustado e um pouco surpreso, o que preocupou a loira. Xena também percebeu a movimentação, porque tratou logo de parar de dar voltas e ficou ao lado de Gabrielle. Virgil parou próximo a elas e apoiou as mãos nos joelhos, embora não parecesse nem um pouco cansado.

— Virgil... – Começou Xena apreensiva. – O que foi?

— Estava procurando por algum seguidor de Eli, como você mandou. – Disse ele. – E eu os achei. Vários, na verdade.

Ambas as mulheres sorriram. Isso era um bom sinal, exceto de que Virgil não aparentava achar o mesmo.

— Que ótimo... – Sussurrou Gabrielle para si.

— Nem tanto. – Respondeu Virgil. – Eu também encontrei... Bom, eu encontrei uma coisa que eu não deveria ter encontrado. Tipo... – E encarou as duas mulheres com os olhos arregalados e os lábios franzidos. – É impossível!

— O quê? – As guerreiras perguntaram em uníssono.

Virgil ponderou tempo demais antes de responder.

— Venham comigo. – Então se virou e começou a andar rápido em direção ao celeiro. Xena e Gabrielle não tiveram tempo de dizer nada, apenas partiram as duas em direção ao mesmo lugar.

*******

Lá dentro, o aglomerado de bêbados, cantoria e risos havia dado espaço para um silêncio aconchegante apenas com murmúrios suaves aqui e ali. O lugar, que antes parecia pequeno de tão lotado de pessoas para lá e para cá, agora parecia enorme em volta das poucas pessoas reunidas ali dentro. Xena os reconheceu logo que entrou: seguidores de Eli. Estavam todos reunidos em pequenas rodas divididas harmoniosamente pelo salão de madeira. Alguns estavam em pé enquanto outros estavam sentados, uma ou outra cabeça se virou quando Xena a Gabrielle entraram.

Virgil, aparentemente, já havia sumido por entre a multidão, o que fez Xena bufar asperamente. Ele podia ao menos ter esperado por elas. Gabrielle parou bem ao seu lado, cruzando os braços sobre o peito. Ela parecia um pouco incomodada com as pessoas que passavam ali perto, por isso, esfregou os braços diversas vezes enquanto apertava os lábios em uma linha fina. Só então Xena foi entender o porquê daquilo. Era uma festa de cores: vermelho, amarelo, verde, azul. As mulheres com vestidos presos nos ombros e saias longas, os homens com blusas e calças largas, ambos com cedas presas no quadril, postas sobre os ombros ou cobrindo a cabeça. Não usavam adornos, mas a beleza daqueles tecidos era como se tivessem joias encrustadas nas roupas. Xena estava se sentindo como se estivessem no camarim de um desfile de moda na Índia.

Virgil emergiu do meio dessas pessoas puxando duas garotas junto de si, uma em cada mão. Por andarem o tempo todo olhando para o chão para não tropeçarem na barra do longo vestido, presumiu Xena, ela não conseguiu ver o rosto das garotas até que elas pararam em sua frente e ergueram o rosto. Foi então que Xena travou os braços onde estavam, sua respiração ficando presa na garganta como um nó. O susto foi tão repentino que as quatro mulheres deram um passo para traz simultaneamente. Teria sido uma cena engraçada de se ver para quem estava observando de longe.

Elas eram iguais. Não como gêmeas, mas como... Duplicadas. De novo duplicadas, não, não. Apesar de estar visivelmente chocada, Xena ficou mais curiosa com a que se parecia com Gabrielle do que a outra versão de si mesma na sua frente. Já conhecera várias outras iguais a ela, mas iguais a Gabrielle só havia... Hope, e não, aquilo não tinha sido uma boa coisa.

— Em nome de Eli – Disse a cópia de Gabrielle, e Xena se surpreendeu com quão calma e inocente a voz soou, como a voz de uma garotinha. – Somos iguais!

Virgil se virou para Xena e Gabrielle e abriu os braços como alguém quando diz o óbvio do óbvio.

— Eu disse que havia alguma coisa errada! – Exclamou.

— Na verdade... – Disse Xena – Não há nada de errado nisso. Já encontramos com duplicadas antes.

— O quê? – Virgil parecia estar com o cérebro entrando em combustão. – Como assim já encontraram com duplicadas antes? Têm mais? Como assim tem mais? Não tem que ter mais!

— Tem mais? – Perguntaram a cópia de Gabrielle e Xena em uníssono. Xena parou para olhar as duas mais uma vez, e suavizou o olhar ao perceber a forma como estavam vestidas: a cópia de Gabrielle estava com um longo vestido branco com tiras verdes que saiam da linha da cintura e acompanhavam o vestido até o chão, já sua cópia vestia um conjunto de saia e blusa branca com uma seda trabalhada em verde presa nos ombros que ia até o chão. As duas combinavam encantadoramente.

— Por que está assim, afinal? – Exclamou Xena. – Sua mãe é uma duplicada minha.

— Tá, mas eu achei que... Bom, eu achei que ela não... Você sabe, fosse tão parecida assim com você, só um pouquinho. Um pouquinho só. Não é como se eu tivesse uma foto dela na sua idade ou coisa do tipo.

— Então tem mais de nós duas além de vocês? – Perguntou a cópia de Xena com um sorriso. – Uau!

— Na verdade – Respondeu Gabrielle – Só de Xena. Eu nunca tive uma duplicada exceto... – Terminou franzindo a testa, e Xena soube que era hora de mudar de assunto.

— O quê? – Insistiu a cópia de Gabrielle.

— Longa história. – Gabrielle respondeu rispidamente com um sorriso amarelo.

— Oh, céus – Murmurou Virgil. – Eu preciso... Andar um pouco. – E saiu do celeiro em passos rápidos.

— Então, quais são os seus nomes? – Perguntou Xena.

— Oh, claro! – Disse a cópia de Gabrielle – Eu sou Sara, e essa é Sofia – Disse apontando para a cópia de Xena ao seu lado.

— Sara e Sofia – Repetiu Xena testando os nomes em seus lábios. – Desculpem por isso, mas podem nos ajudar com Eve? Se tiverem alguma informação ou algo do gênero.

As duas desfizeram o sorriso e se entreolharam com uma expressão de pena e tristeza antes de se voltarem para Xena e Gabrielle.

— As coisas não andam muito bem com ela. – Disse Sofia. – E o pior é que não sabemos o que fazer. Tudo que nos resta é segui-la aonde quer que ela vá e orar para que Eli a preteja e a salve desse caminho.

— É tão triste... – Lamentou Sara baixinho.

— Conte-nos tudo. – Disse Xena.

— Começou pouco depois de Sara e eu nos juntarmos a ela. – Começou Sofia. – Era de manhã e praticávamos nossas orações quando Eve apareceu estranha. No começo, achamos que era só um pouco de mau humor dela, até que as coisas pioraram.

— Foi depois de eu contar a ela sobre Xena. – Confessou Gabrielle envergonhada. Xena ergueu os braços para a amiga e a abraçou forte. – Não foi sua culpa. – Disse.

— É provavelmente pela raiva de vocês duas que Eve tem nos tratado assim. – Disse Sara. – Eu sabia que tinha alguma coisa! Eu sou uma ótima companhia para conversar. Não tinha o porquê de ela me tratar assim.

— Eve a machucou? – Perguntou Xena preocupada.

— Não, não. – Respondeu Sara tranquilizando-as – É só que ela nos ignora e nos empurra bem forte quando estamos perto dela. Bom... Nas poucas vezes que ficamos perto dela depois que ela ficou assim.

— Depois daquele dia – Continuou Sofia – Eve só piorou. Parou de fazer as orações e trazer os ensinamentos para novas cidades, começou a se envolver com homens a ensina-los a lutar e agora só festeja, bebe e espalha o caos para onde ela vai. E agora inventou de andar com aquelas coisas prateadas no corpo.

— Armadura? – Sugeriu Gabrielle.

— Isso! – Disse Sara.

— Obrigada por tudo. – Agradeceu Xena desanimada. – Nos vemos depois então.

— Claro. – Responderam as duas e sumiram no meio de um grupo de verde e azul.

Gabrielle puxou Xena de ombro cabisbaixos e as duas saíram do recinto, dessa vez, com muito mais falatório atrás delas.

*******

Alguma coisa estava errada com aquela estátua, ponderou Gabrielle, afinal, toda vez que passava por ela não conseguia não encara-la. Não que não fosse bonita – e era -, mas Gabrielle já havia visto várias outras fontes bonitas em sua vida, e nunca havia ficado tão fascinada por uma como estava por essa.

— Pare de olhar para essa fonte, Gabrielle! – Reclamou Xena ao seu lado, despertando-a de seu devaneio. – Está começando a me dar os nervos. Eu vou ir atrás de Eve – Continuou, descruzando as pernas e começando a andar em direção ao lado esquerdo da fonte, para o começo da cidade.

Gabrielle desencostou-se do parapeito gelado e foi atrás de Xena com passada largas e pesadas.

— Ficou maluca? – Perguntou puxando o braço da amiga, fazendo-a parar. – Se for atrás de Eve ela vai fazer o mesmo que fez quando nos encontramos. Antes de a vermos de novo precisamos encontrar uma solução.

— E o que você sugere, Hein? – Perguntou Xena apoiando as mãos na cintura impaciente. – Sério, Gabrielle, por que eu não sei!

Gabrielle suspirou alto e massageou a têmpora com a mão direita. Ela olhou em volta enquanto tentava minimizar a dor em sua cabeça. Tudo que via eram casas acabadas, casas, a fonte, o celeiro, mais casas, o celeiro, a fonte de novo, mais casas, Afrodite, mais casas, o celeiro, Afro...

— Afrodite! – Exclamou no mesmo instante. Sentiu na mesma hora uma sensação de alivio invadir seu corpo. Finalmente algo de bom nesse dia.

Xena ergueu as sobrancelhas escuras e curvou os lábios ligeiramente.

— Afrodite? – Perguntou com a voz arrastada.

— Sim! – Continuou Gabrielle em êxtase. – Afrodite pode lançar um feitiço, uma magia cor de rosa ou... Sei lá! Mas tenho certeza que ela vai nos ajudar. Ela é a deusa do amor! E pelo que vi de Eve hoje, amor é exatamente o que está precisando.

Xena estalou a língua e cruzou os braços sobre o peito.

— Tudo bem. – Ela disse ao final. – Mas...

Gabrielle nem esperou ela terminar. Voltou correndo em direção à fonte e parou a centímetros de bater contra o mármore branco. Ela estendeu o braço em direção a uma das pernas da deusa, sentindo pequenos respingos de água em seu braço. Nesse momento, Xena se aproximou e apoiou as mãos no parapeito, observando tudo silenciada. Gabrielle continuou esticando seu braço até sentir o gelado do mármore em seus dedos e a água corrente e gelada molhando da ponta de seus dedos até o pulso.

— Afrodite... – Sussurrou. – Se estiver ouvindo, por favor, venha? – Terminou se sentindo um pouco idiota de estar fazendo isso. Ela virou a cabeça em direção a Xena que olhava ao longe. – Ficou estranho? – Perguntou, mas antes que Xena pudesse responder alguma coisa, Gabrielle sentiu um perfume forte de rosas e um puxão de cabelo.

Gabrielle se virou e colocou a mão no cabelo soltando um gemido de dor. Não havia nada e nem ninguém atrás dela. Ouviu outro barulho, dessa vez Xena tinha uma mão apertada sobre o braço onde alguém tinha dado um soco. Um punhado de pétalas brancas caiu aos seus pés quando Gabrielle sentiu um beliscão na coxa; de novo, não havia mais ninguém além dela e Xena ali. Gabrielle estava a ponto de perguntar bem alto que era o engraçadinho quando ouviu um risinho fino e agudo vindo atrás dela. O som de alguém que estava comemorando sua pegadinha bem sucedida.

Gabrielle se virou mais uma vez e lá estava ela: Afrodite em toda a sua glória de deusa. Sentada de pernas cruzadas no para peito de mármore de sua própria fonte, a deusa mantinha um sorriso sacana enquanto passava a língua por cima dos dentes; aquela brincadeira havia despertado demais o humor dela. Afrodite tinha uma mão apoiada no mármore branco enquanto a outra descansava sobre sua coxa. As unhas em rosa chock combinando com seu top de alça e minissaia trabalhados em ouro, além da seda quase transparente enrolada em volta dos braços. Ela balançava confortavelmente um dos sapatos rosa de felpudo no pé.

— Vocês ficam tão fofas quando estão zangadas! – Exclamou Afrodite enquanto encarava as duas.

Fofinhas? Ah... Ela vai ver a fofinha daqui a pouco, pensou Gabrielle.

— Isso... Não teve a menor graça. – Disse Xena retirando uma pétala vermelha do seu cabelo, claramente se segurando para não gritar com Afrodite.

A deusa descruzou as pernas e pôs-se a andar em direção a Xena e Gabrielle.

— Claro que não teve. –Disse. – A brincadeira foi para mim! Acordei tão entediada hoje... – Terminou fazendo um biquinho com os lábios.

— Tudo bem. – Disse Gabrielle. Ela precisava ir logo ao assunto antes que Afrodite inventasse de sumir para outro lugar. – Agora que já brincou e se animou, precisamos da sua ajuda. Agora.

Afrodite parou a dois metros das duas e apoiou as mãos na cintura. Ela deu um sorriso sem graça e passou a palma da mão no cabelo, apesar dele estar impecável como sempre.

— Qual é o problema? – Perguntou.

Xena e Gabrielle responderam ao mesmo tempo:

— Eve.

— A sua filha Eve? O que é que tem com ela? Já sei! Ela viu que essa baboseira de ir para lá e para cá com a roupa toda rasgada vivendo na pobreza era idiota e caiu na real! Eu sabia! Finalmente ela começou a ter senso de moda! – E bateu palma três vezes com a mão aberta.

Xena arregalou os olhos em descrença.

— O quê? Não! Minha filha Eve que deveria estar pregando a palavra de Eli não está mais fazendo isso. Ela está... Diferente, e isso é ruim. Muito ruim.

Afrodite revirou os olhos.

— E o que você quer que eu faça? A menina decidiu escolher o caminho dela. Pare de ser egoísta, Xena! Deixe a menina fazer o que ela quiser da vida. Já terminaram? Porque eu preciso urgentemente de uma manicure.

Gabrielle viu o rosto de Xena ficar roxo.

— O QUÊ? – Ela berrou. – Você está brincando, não é? Diz que está brincando.

Gabrielle segurou o braço de Xena antes que esse fosse em direção ao rosto de Afrodite.

— Xena, calma aí... – Gabrielle respirou fundo antes de continuar. – Afrodite, suas unhas estão perfeitas, então deixa isso de lado um pouco e se concentra aqui. Só aqui.

— Perfeitas? – Repetiu a deusa. – Esse não é problema, é só que agora eu quero um tom mais claro de rosa. Sabe... Pra não ficar sempre a mesma cor.

— Deuses... Deem-me paciência. – Suspirou Xena ao lado de Gabrielle.

Foi a vez de Afrodite ficar roxa.

— Hei! Isso é importante para mim!

— E minha filha é importante para mim! – Retrucou Xena.

Afrodite bateu o salto no chão produzindo um som baixo e oco na terra.

— Tudo bem! – Disse. – Eu te ajudo com sua filha e vocês duas me deixam em paz com minhas unhas. Fechado? – E empinou o nariz enquanto torcia levemente a boca.

Finalmente, pensou Gabrielle.

— Claro que sim. – Respondeu Xena de cara fechada. – E o que vai fazer? Eu pensei que tal...

— Não se preocupem meus amores! – Interrompeu Afrodite dando um tapinha com a mão no ar. – Tia Afrodite está aqui, como sempre. Até o fim do dia a fofinha de vermelho estará tão calma quanto... Quanto... Ah, esquece isso! – Terminou sorrindo tanto que a fenda dos olhos quase desaparecia por entre as bochechas dela.

Gabrielle nunca se acostumaria com o quão rápido mudava o humor da deusa. Afrodite continuava com seus planos como se nada tivesse acontecido até segundos atrás, ignorando totalmente as duas guerreiras em sua frente.

— Primeiro a troca de visual, sem dúvida. Um roxinho ou um verde claro? Como eu sou tonta, será rosa, é claro! E talvez uma sandália ou uma bota curtinha, vai ficar linda...

Afrodite desapareceu continuamente numa nuvem de fumaça rosa e brilhante como se fosse uma projeção, até que não restasse nada além de um punhado de pétalas rosa e um cheiro doce de perfume no ar.

— Fizemos a coisa certa? – Perguntou Gabrielle depois de alguns segundos em silêncio, mas não obteve resposta.

*******

Com um leve aceno a porta de madeira se abriu e Afrodite entrou. Jamais tocaria numa porta de madeira suja e, provavelmente, com germes espalhados em toda a sua superfície, isso ela garantiria.

Ainda estava zangada por Xena ter feito desfeita dela. Unhas são importantes! Todo mundo ligado ao mundo da moda sabe disso! E sim, Afrodite estava cansada daquela cor; afinal, passou os últimos meses pintando sempre a mesma coisa. Ela queria variar de vez em quando.

Ao passar o batente da porta, Afrodite torceu o nariz bruscamente.

— Pelos... Meus irmãos e irmãs. – Ela tampou o nariz com a palma da mão e deu mais um passo. – Esse ar está cheio de ácaros!

Além de um monte de móveis sujos em pedaços espalhados pelo chão, Afrodite não viu nada além de paredes nuas e Eve deitada no chão.

— Você enlouqueceu garota? – Perguntou Afrodite abanando o ar com as mãos. – Saia logo daí! Tenho muito trabalho para você ainda. Quero dizer, com você. Deixe para lá, só saia daí.

Eve levantou-se num pulo e apertou as mãos no quadril. Seus olhos pareciam querer perfurar o rosto perfeito de Afrodite.

—Você também aqui? – Cuspiu Eve. – O que é isso? Por acaso fizeram uma convenção de pessoas para me irritar hoje? – Eve bateu o pé no chão duro e fechou ainda mais o rosto. – Não importa. Saia logo da minha frente. – Ela então desviou o olhar e deu um passo em direção à porta, mas foi barrada por Afrodite. Uma Afrodite meramente zangada.

— Nã na ni na não! – Afrodite apontou o dedo até quase encostar ponta do nariz de Eve, que encarou como se o dedo estivesse com uma verruga enorme e verde na ponta. – Você eu temos coisas a acertar, mocinha! E eu não tenho o tempo todo, então vamos logo.

Eve bufou alto e murmurou algo para si mesma.

— Porque não vai procurar alguém que consiga aturar você me deixa em paz? – Eve praticamente gritou, indicando a porta com a mão erguida acima da cabeça.

— Quer saber? – Afrodite ergueu as sobrancelhas perfeitamente desenhadas. – Estou farta disso! – E bateu palma.

Em questão de segundos o ambiente ao redor de Afrodite e Eve tremeluziu como uma miragem no meio do deserto, que em um segundo está bem na sua frente e no outro desapareceu por completo. As paredes cruas, o chão sujo e empoeirado e todos os móveis destroçados jogados nele logo desapareceram, e foram substituídos por uma visão bem mais convidativa.

Na verdade, Afrodite havia escolhido a primeira sala que lhe veio à mente, mas por sorte, essa servia perfeitamente para o que ela havia planejado. Sorriu enquanto começou a andar pelo longo corredor, o salto alto fazendo clac clac clac contra o mármore branco a cada passo.

O corredor era longo e largo o suficiente para seis pessoas caminharem tranquilamente por ele. Ambas andavam lado a lado, com Afrodite apoiando uma mão na cintura toda orgulhosa de seu trabalho, e Eve encarando tudo como uma mendiga no meio de um palácio.

As paredes eram todas rebuscadas em ouro, contrastando com o branco. De ambos os lados abriam-se aberturas de partes superiores abobadadas, tão altas quanto o teto que as cobria, separadas em intervalos largos e iguais, com nada mais do que estátuas douradas de bebês cupidos no meio. Afrodite gostava que essas portas ficassem todas cobertas com tecidos cor-de-rosa trabalhados em dourado, para que nenhum intruso ficasse bisbilhotando os bastidores do lugar – o que era o caso agora.

Chegaram ao final do corredor, onde ele se abria para uma enorme sala quadrada. Afrodite foi logo à frente e abriu a cortina rosa que separava o corredor da sala, correndo para dentro logo em seguida. Eve, parada atrás dela, estava de queixo caído e os braços colados ao corpo, e parecia que não iria sair disso tão cedo.

O chão era todo coberto com tapete branco felpudo, e para cada canto da sala havia uma estátua dourada de cupido. As paredes e o teto – coberto com tecidos cor-de-rosa formando uma figura abobadada – permaneceram iguais, enquanto o que chamava a atenção naquela sala era a monstruosidade no meio dela. Centralizada em cima do tapete e tão branca quanto o chão e as paredes, a enorme fonte de três andares ocupava quase o recinto inteiro. Lá no alto, quase cutucando o teto, estava uma enorme estátua de Afrodite. A água brotava silenciosa no topo da cabeça da estátua, descia pelo seu corpo e ia caindo de andar em andar, até desabar no enorme circulo embaixo, que refletia de forma turva o teto acima dele.

De frente para o corredor e encostado de costas para a fonte, estava um enorme e luxuoso divã com estofado cor-de-rosa e detalhes dourados, rodeado com mesinhas de centro, baixinhas e de vidro. Afrodite estava sentada na ponta do divã, as pernas cruzadas e o pé balançando o sapato.

Afrodite sorriu quando viu que parte do seu trabalho estava feito: Eve estava tão impressionada com o lugar que deixou a chatice de lado. Agora ela precisava da segunda parte do plano pronta. Ela já podia até ver a cena em sua cabeça, Eve cairia tão fácil e ao final do dia tudo estaria resolvido. Afrodite soltou um risinho baixo com o pensamento.

— Leonard! – Disse em voz alta. Se havia alguém que pudesse ajudar Afrodite em seus planos, esse alguém era Leonard. Também, ela se lembrava da primeira coisa que disse ao contemplar seu Leonard, segundos depois de tê-lo criado: ''Eu criei o homem perfeito'', dissera. Os anos haviam se passado e Afrodite ainda mantinha sua palavra. Ela mal podia esperar para ver a cara da ranzinza ao vê-lo.

O som do salto ecoando no corredor veio antes do próprio Leonard aparecer. Na mesma hora Eve se virou em direção ao corredor preenchido por ecos, e não podia acreditar no que via. O tamanho da boca que abriu era tão grande que Afrodite podia jurar que se ela abrisse só mais um pouco a pele rasgaria.

Com um pulinho Afrodite pôs-se de pé, apertando as mãos na frente do peito com bastante ansiedade. Ela mal conseguia conter o sorriso em seu rosto. Eve se virou para ela, para o corredor, e para Afrodite de novo, e sua voz saiu num som fino e agudo quando ela berrou:

— MAS QUE PORRA É ESSA?

*******

Gabrielle jamais achou que fosse chegar a este ponto, até que não teve alternativa. Entre um segundo e outro, suas pernas simplesmente desabaram. Talvez fosse o calor agindo em seu sistema, ou o resultado catastrófico de sua ultima luta com Eve. Aquele tombo contra o chão duro não iria lhe escapar com tanta facilidade sem umas boas massagens antes, disso Gabrielle tinha certeza. Ela pediria para Xena massageá-la, mas querendo ela não levar um soco da amiga no nariz, sabia que agora não era hora e nem o momento. Então resolveu seu problema do jeito mais fácil: se jogou no chão duro e lá ficou. Os braços e pernas estendidos, enquanto o único movimento visível era o do seu peito, que subia e descia tranquilamente acompanhando sua respiração.

A área ao redor da fonte era a única área fresca por ali, por isso Gabrielle não teve problemas com temperatura, não mais. Até podia sentir, ás vezes, uma ou outra gotícula de água respingar em sua pele.

Xena estava bem ao seu lado, sentada na ponta do mármore e balançando as pernas cruzadas num ritmo constante como o de um pêndulo de relógio. Mas não olhava para ela. Seu olhar, e parte do seu corpo, estavam concentrados em outra direção.

— Elas estão bem. – Confortou Gabrielle quebrando o silêncio. – Tudo bem que Eve está com Afrodite, mas as duas estão bem.

Xena se virou para ela. Alguns raios de Sol batiam direto em seu rosto, tonalizando ainda mais o azul profundo que eram seus olhos. As palavras de Gabrielle pareceram ter feito efeito, mas não muito, levando em conta que a expressão de preocupação não deixou o rosto de Xena nem por um segundo. Pelo menos agora Xena estava prestando atenção nela.

— Mas eu deveria estar fazendo alguma coisa. – Protestou Xena, com a voz firme. – Eu sou a mãe dela!

— Mas não pode. – Gabrielle retrucou. Ela se apoiou nos dois braços e ergueu sua cabeça no nível mais próximo que conseguiu ficar com o de Xena. – Eve só vai querer lutar com você, assim como fez comigo. – Foi a vez de Gabrielle direcionar seu corpo na direção oposta, para qualquer coisa, menos para Xena. – Olha Xena, eu me sinto tão culpada por tudo isso. É tudo minha culpa. Se eu não tivesse... Se não tivesse contado a Eve, nada... Nada disso teria acontecido. Eu estraguei tudo, eu sei que estraguei. – Sentiu o choro se formar em sua garganta, e se esforçou ao máximo para não derramar uma lágrima sequer. Comprimiu os lábios até formarem uma linha fina e reta.

Xena se desgrudou da parede circular da fonte e se jogou em cima de Gabrielle, abraçando a amiga de forma carinhosa com os dois braços, como uma mãe faria com a filha assustada. Gabrielle se soltou nos braços fortes de Xena, sendo a única coisa que não a impedia de cair com as costas no chão duro, de novo. Ela se permitiu soltar um suspiro trêmulo que nem percebeu que estava segurando até há pouco tempo. Sentiu seu corpo aumentar bruscamente de temperatura enquanto Xena lhe afagava os cabelos curtos.

— Está tudo bem. – Disse-lhe Xena. – Não foi sua culpa. Não foi. – Gabrielle virou seu rosto, sentindo a respiração de Xena em seus cabelos enquanto falava. – Você fez a coisa certa contando sobre mim à Eve. Foi a coisa certa, Gabrielle. Você não fez nada de errado... Não fez.

Gabrielle parecia ter se acalmado. Seu rosto não estava mais quente quanto antes, o choro entalado na garganta havia ido embora, e sua respiração estava normal de novo.

Ela colocou a palma das mãos no chão de terra e voltou a se apoiar sozinha. Xena a soltou e se sentou ao lado, com as pernas sobradas de lado. Ela não parecia estar brava, muito menos preocupada com algo. Seu olhar direcionado a Gabrielle era somente de carinho.

— Você está melhor? – Ela perguntou.

— Claro. – Gabrielle respondeu com um meio sorriso. – Obrigada.

— Ei! – Xena sorriu. – É para isso que servem as amigas.

Gabrielle riu.

— Mas agora eu quero saber o que foi aquilo com você e Virgil agora a pouco. – Disse Xena bruscamente.

Gabrielle parou de rir na mesma hora, e por pouco não se engasgou com o tanto de ar que engoliu de surpresa.

— Não tem... Aquilo... Entre mim e Virgil. – Começou Gabrielle apreensiva. Droga, Xena. Por que tocou nesse assunto? E justo agora! – Nunca teve... Teve nada... Entre mim e... E Virgil.

Xena ergueu uma sobrancelha.

Gabrielle começou a esfregar a terra abaixo dela com a palma da mão, que estava começando a ficar grudenta com o suor.

— Gabrielle...

— Xena... Eu já... Já disse. Não aconteceu na... Nada.

Xena bufou em descrença e revirou os olhos.

— Por favor, né... – Acusou. – Quando o encontramos você ficou parada igual uma múmia. Se alguém tocasse em você, cairia para trás. E por coincidência do destino, ele agiu estranho igual você. Uau... Muito estranho, não acha?

Gabrielle deu de ombros e olhou para baixo, fitando o cinto prateado de sua saia.

— Eu tenho olhos! – Continuou Xena. – Eu vi!

— Xena, eu...

— E depois teve você dois no meio do caminho. Não se olhavam, não trocavam nem sequer uma palavra. O que era aquilo?

— Xena, me deixa...

— É sério! O que foi isso? Quer dizer que agora você implicou de vez com Virgil e inventou de não olhar mais na cara dele? Que tipo de desculpa é essa? Por que...

Gabrielle juntou as forças que tinha nas pernas e se levantou num pulo, sofrendo um pouco para manter o equilíbrio.

— Eu transei com ele! – Gritou. Pareceu a coisa mais lógica a se dizer naquele momento, mas agora Gabrielle estava torcendo para que ninguém mais tivesse ouvido.

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Xena precisou de um segundo para processar tudo, e quando a compreensão ficou estampada em seu rosto, foi ela quem precisou apoiar as duas mãos no chão atrás de si para não cair de costas.

— Você... Você o quê? – Ela embolou palavra em cima de palavra. Fez menção com a boca de que iria falar alguma coisa, mas foram só suspiros e sussurros confusos. – Você... E Virgil... Virgil e... E você... Ju, Juntos? Tipo... Juntos?... Hã? – Xena terminou torcendo o lábio superior e o nariz para cima, fazendo uma careta que, em outras circunstâncias, faria Gabrielle rir.

— Calma... – Disse Gabrielle. Ela percebeu que estava ofegante; nervosa com a reação de Xena. – Calma... – Eram palavras mais para ela mesma do que para qualquer outra pessoa. – Eu não deveria ter dito isso desse jeito, e nem muito alto... Mas é que você ficou falando e falando... E falando.

Xena se levantou subitamente e puxou Gabrielle junto de si. A loira mal teve tempo de respirar e já estavam ambas com o rosto praticamente colado um no outro; Xena a encarava com curiosidade e incompreensão, os dedos enterrados em seu ombro.

— Como aconteceu? – Perguntou apressadamente. Gabrielle sabia que não conseguiria pensar direito com o olhar incrédulo de Xena colado nela, então deu um passo para trás involuntariamente, desvencilhando-se do aperto nos ombros. – Explique-me. – Não falou em tom bravo, apenas firme e convidativo.

— Eu conto. – Gabrielle respondeu. E foi o que fez. – Meu confronto com Eve não foi a única burrada que eu fiz nesse ultimo ano. – Ela deu uma pausa para respirar fundo. Xena não mexeu um músculo. – Minha... Pequena aventura no Egito não me ajudou a me conformar com sua morte como eu achava que iria. No começo eu achava que conseguiria passar um longo tempo lá sem pensar em você, sem chorar à noite, ou até mesmo procurar uma solução em livros antigos de magia para trazer você de volta. Mas cada dia que eu passava no Egito era um dia que eu lamentava estar longe da Grécia. Então eu voltei. E... Depois de... Bom, depois de eu contar a Eve a verdade de toda situação e ela me expulsar de onde nós estávamos a pontapés e socos, eu me afastei de todos. Até... Até que eu encontrei Virgil. Ele, claro, assim como toda a Grécia, já sabia de sua morte. Mas no começo até que foi legal ter ele comigo. Ele me ouvia e nos divertíamos juntos, sabe... Só como amigos. Até que um dia passamos a noite toda bebendo num bar qualquer.

— Sempre começa com a bebida. – Xena resmungou.

— Pois é. – Gabrielle concordou. – Bom, depois de sairmos tarde de lá, fomos até a estalagem mais próxima, onde nós dois estávamos instalados. Tudo que lembro é de ter acordado no outro dia no quarto dele, deitada nua com ele na cama.

Xena engoliu um suspiro.

— O que você fez?

— O quê você acha que eu fiz? – Disse Gabrielle. – Eu saí de lá no segundo seguinte. Claro que no outro dia eu me senti muito mal por ter feito aquilo, mas já era tarde demais. Não era como se eu fosse encontra-lo de novo... Até agora. É, obrigada, Xena.

— Não fui eu quem colocou Virgil na nossa frente! Culpe o universo, Gabrielle, não a mim.

— Mas foi você quem decidiu puxar assunto com ele no caminho inteiro! – Defendeu-se Gabrielle. A culpa não havia sido inteiramente dela, não mesmo.

— Com licença. – Xena respondeu irônica. – Não fui eu quem transou com o cara e nem olhou na cara dele no dia seguinte. Se você fez burrada não culpe os outros.

Gabrielle quase engasgou. Ela estava falando sério?

— Isso foi tudo culpa sua! – Disse irritada. – Se não tivesse morrido, nada disso teria acontecido.

Xena soltou um risinho forçado.

— Desculpa mesmo... Da próxima vez eu vou tentar me controlar antes de morrer.

Gabrielle estava prestes a dar uma resposta equivalente quando ouviu um pigarro atrás dela. Ela se virou num giro de calcanhares e quase tombou para trás.

Virgil estava parado a menos de cinco metros de onde Gabrielle estava. Com o canto do olho ela o viu apertar as mãos nervosamente ao lado do corpo. Pela expressão desconcertada estampada em seu rosto, era óbvio que havia ouvido a conversa, ou melhor, a tentativa de conversa intima, em tom baixo, sem escândalos dela e Xena. Naquele momento Gabrielle não sabia quem ela queria socar mais vezes no meio da cara: Ela mesma ou Xena, que estava agora ao seu lado, encarando Virgil, enquanto tentava segurar uma risada.

Virgil deu um passo, depois outro, tão devagar e cauteloso como se estivesse se aproximando de um leão na arena. Depois do que pareceu uma eternidade, ele parou novamente em frente a elas, dessa vez com um metro separando das duas, o que deixou Gabrielle um pouco desconfortável com a aproximação. Virgil estava tão focalizado em seu rosto que Gabrielle sentiu na hora vontade de baixar a cabeça e se esconder dentro de uma caixa; e foi o que ela fez – menos a com a caixa.

— Você ouviu a conversa, – Perguntou Xena, quebrando o silêncio bruscamente. – Não foi?

Virgil desviou seu olhar e encarou Xena envergonhado. Gabrielle reuniu o pouco de coragem que ainda lhe restara naquele momento e levantou a cabeça, evitando olhar para sua frente a qualquer custo. Ela esfregou as mãos úmidas de suor na saia de couro.

Virgil não sabia o que responder, ficou balbuciando enquanto abria e fechava a boca repetidas vezes, até que por fim disse um curto ''sim''.

— Então... – Começou Xena, balançando seu peso de um pé para o outro.

— Você... Você sabe... – Concluiu Virgil. Ele se apoiou numa perna e apertou os braços sobre o colete de couro.

— É. Eu sei. – Xena respondeu. A única descontraída por ali. – Você tem que saber Virgil, que esse ano sem mim a mudou demais, e...

Foi quando Gabrielle deu uma cotovelada nas costelas de Xena, que se afastou aos risos. É, com toda a certeza era Xena quem Gabrielle queria socar mais vezes no meio da cara.

— Agora é sério. – Disse Xena por fim, quando voltou a ficar ao lado de Gabrielle, dessa vez com a expressão séria. – Acho que vocês precisam conversar seriamente.

Gabrielle estava prestes a balbuciar a primeira desculpa esfarrapada que lhe viesse à mente para sair dali quando ouviu o barulho áspero da bota de Virgil raspar no chão. Ela olhou para ele.

— É tudo que eu mais quero. – Ele disse. Gabrielle não conseguia mais desviar seus olhos dos dele, aqueles doces olhos que ela temeu tanto reencontrar nos ultimo meses.

Xena se aproximou dele e apertou com dois dedos a bochecha direita de Virgil, que ficou com uma marca quase invisível vermelha. – Bom garoto. – Xena disse. – Vocês dois. – E apontou um dedo para Gabrielle. – Quando eu voltar eu quero ambos de volta ao normal. Nada de um evitar o outro. – Disse a ultima frase com um tom mais sério, mas logo piscou para Gabrielle, que sorriu em resposta.

Xena saíra dali como um borrão, e antes que Gabrielle a notasse já estava longe, seguindo a passos firmes a longa fileira de casas até o final da cidade.

Só quando a imagem da amiga diminuiu consideravelmente no horizonte foi que Gabrielle voltou a olhar em direção à Virgil, que a estudava silenciosamente. Ela se perguntava se ele estaria achando que ela fugiria no meio da conversa.

Virgil se mexeu e Gabrielle temeu que ele fosse começar a falar ali mesmo, mas ele apenas foi em direção à fonte e se recostou na parede sólida de mármore. Gabrielle fez menos ainda do que isso. Ela apenas se virou para ele e continuou com os pés onde estava. Ainda estavam próximos, mas para Gabrielle qualquer distância – mesmo mínima – já valia.

Tudo bem. É agora, pensou Gabrielle consigo mesma. Você já transou com o cara, conversar é o de menos. Vamos lá... Vamos lá.

— Me desculpe. – Gabrielle disse. Sua voz saiu mais fina do que gostaria, mas pelo menos conseguiu falar, o que já era alguma coisa. Virgil ainda não havia dito nada, tinha apenas apertado os braços sobre o peito de novo, e agora a encarava com a testa enrugada. Gabrielle engoliu em seco e continuou. – Eu não deveria ter... Passado a noite com você e depois sumir daquele jeito, eu sei disso agora. Mas você precisa entender que... Eu naquela época... Eu estava um desastre, eu era um desastre. – Ela esqueceu de vez o nervosismo e se moveu em direção à Virgil, praticamente colando-se nele em um segundo. Virgil se encolheu com esse movimento, deixando os braços caírem ao lado do corpo. Essa foi a deixa para Gabrielle apoiar as mãos em seu peito para olhar melhor seu rosto. – Você sabe disso, Virgil, você estava lá comigo. – Ela podia sentir o hálito quente de Virgil em seu rosto, aquele par de olhos doces e gentis a olhando com um misto de dúvida e compreensão. – E mesmo eu sabendo que aquilo não era motivo para fazer o que eu fiz com você... Eu peço desculpas.

Virgil não se moveu por um longo tempo depois que Gabrielle parou de falar. Ela estava quase achando que ele não iria dizer nada quando ele deu de ombros e abriu a boca:

— Não precisa se preocupar. – Ele disse com a voz suave. – Eu acho que nós dois cometemos um erro naquela noite. Tudo bem que eu fiquei só um pouco assustado quando não achei você em lugar nenhum no dia seguinte, mas não tem nada que se culpar por isso. Era muito álcool e... Nossa, mas era muito álcool.

Gabrielle passou seu peso de um pé para o outro umas três vezes e passou a língua nos lábios ressecados. Ela não sabia se estava feliz por Virgil não estar com ressentimento por ela ou triste por ele nem ter ligado sobre o fato de que os dois dormiram juntos. Ela concordava que não deveriam exatamente ter feito aquilo, mas não foi a pior noite da vida dela.

— Então estamos... Bem? – Ela perguntou.

Virgil soltou uma gargalhada. – Sim, claro que estamos.

Gabrielle também riu, e estava pronta para se afastar dele quando ele uniu seus lábios com o dela. Foi apenas um selinho, rápido e gentil.

Quando se separaram, ele sorriu para ela.

*******

Se houvesse algum material pontudo na sua frente, Eve não pensaria duas vezes em enfia-lo em seus dois olhos ali mesmo.

Pareciam horas em que ela estava ali trancafiada com a deusa cor-de-rosa que não sabia nada além de bater palmas, comer docinhos postos na mesa à sua frente e ficar dando em cima de todos os homens sem camisa que entravam na sala. Mas o problema não eram os homens, e muito menos os doces. O problema era aquilo parado na saída do corredor. Eve não sabia se ria ou ficava apavorada.

Leonard – ou, como Afrodite às vezes o chamava, Belo Leonard – era uma das poucas pessoas que poderiam facilmente ser confundidas com um boneco, pensou Eve. Ele não era exatamente alto, mesmo o salto do sapato afivelado ficando evidente à distância. Usava uma peruca comprida, branca, com rolinhos presos acima da orelha, e sua roupa, Eve notou, era justa e muito rebuscada para ela (uma blusa branca com um colete rosa brilhante e uma calça, também rosa, que ia até abaixo do joelho). Em nenhuma época que ela havia estudado as pessoas usavam esse tipo de roupa, o que fez Eve se perguntar de onde Afrodite havia tirado aquilo tudo.

— Outro! Outro! – Pediu Afrodite ao seu lado, apoiando o cotovelo no joelho e o queixo entre as mãos. Eve piscou e descruzou as pernas sobre o divã. Quantos anos ela tinha? Perguntou-se Eve, dezesseis?

Leonard arrebitou o nariz e bateu palma.

Eve estava a ponto de revirar os olhos – de novo – quando o peito bronzeado e musculoso entrou. Ouviu Afrodite suspirar trêmula ao seu lado. O par de músculos pedindo para serem apertados e rosto digno de uma estátua de mármore virou a cabeça em direção à Eve e piscou para ela, arrancando um sorriso de canto da boca dela.

Leonard abanou o rosto branco de pó com as duas mãos.

— Nosso próximo modelo gosta de caminhadas na praia – Descreveu Leonard com o sotaque arrastado. – Longas cavalgadas... Céus... E beijo na chuva... Deuses, sacudam-me! – E apertou com a ponta do dedo a enorme pinta falsa colada na bochecha esquerda, que, para Eve, poderia muito bem ser confundida com uma espinha pendurada para fora.

Essa foi a gota d’agua. Eve reuniu o pouco de paciência que ainda lhe restava e destruiu tudo. Do P até o A. Ela se levantou e chutou uma mesa cheia de pudins com o pé. A mesa caiu com um baque oco no chão, o amarelo ouro dos doces grudando no branco.

— Eu quero sair. – Eve disse. A voz firme o suficiente para ser considerada uma ordem. – Agora!

Afrodite se virou para ela e se levantou, com seu sorriso se desfazendo aos poucos de seu rosto.

— Eve, querida, ainda restam vá...

— Não interessa! – Interrompeu Eve. – Me tira daqui agora!

Como Afrodite não fez nada nos segundos seguintes – apenas ficou parada com cara de desentendida –, Eve foi até uma das estátuas douradas e empurrou com força contra o chão, fazendo um amasso considerável na superfície plana.

Ela ouviu Leonard gritar, um som mais fino do que uma gaivota, e quando se virou, viu o cara gostoso jogado em cima dele. Ela voltou até as mesinhas de centro e chutou uma por uma com a ponta da bota. Afrodite se distanciou para trás arrastando os sapatos nos pés. Doces e vidros voaram por sobre a fonte, se chocando na água que assumiu uma coloração esverdeada. O resto grudou na parede e partes do teto, formando cortinas de gosma cor-de-rosa. Vermelho, verde, azul, marrom... Parecia uma obra de arte.

— Você está estragando tudo... Tudo... Tudo estragado... Você está arruinando tudo... – Afrodite choramingava.

— Me tira daqui agora! – Grunhiu Eve. – Agora! Eu quero sair daqui! – E então estava de volta à cidade cor de marrom. As mesmas casas, a mesma fonte, o mesmo chão de terra e o ar seco.

Tudo isso... E uma Afrodite emburrada.

*******

A altura da grama aumentava consideravelmente na área plana atrás das casas, a ponto de cobrir as pernas de Xena quase até a batata da perna. Ela não se lembrava exatamente quando havia se desviado do caminho, mas cá estava ela, parada ao lado de uma parede desbotada arrancando matinhos com a mão.

A esse ponto, pensou Xena consigo mesma, Afrodite já deveria estar terminando o que quer que ela tenha tido como ideia para fazer com Eve, e Gabrielle deveria estar, no mínimo, beijando Virgil de novo. Xena sorriu com o pensamento, mas logo voltou a ficar séria ao pensar na filha de novo.

Tudo que Xena queria era ter vindo até este ninho de cidade e abraçar Eve, conversar com ela, e até se explicar pelo o quê fez e por que fez. Claro que seu simples plano havia ido por água a baixo assim que pôs os pés ali.

Ela jogou a grama que estava segurando fora e puxou a espada das costas, cortando o resto do mato à sua volta. Grama voou aqui e ali como respingos de água ao vento. Xena fazia força com o braço enquanto descia e subia a lâmina, embora, obviamente, não precisasse; ela só precisava descontar seu descontentamento em alguma coisa.

Quando terminou, havia um círculo médio descoberto de vegetação à sua volta. Ela baixou o braço e apoiou a ponta da espada no chão nu, enquanto com a outra mão passou pelo corpete da armadura e o topo do seu cabelo para tirar alguns matinhos invasores. Ela estava a ponto de avançar e recomeçar seu desmatamento quando ouviu a voz grossa e predadora atrás dela:

— Guarde um pouco dessa raiva para mim.

Xena sentiu sua mão apertar o punho da espada involuntariamente antes de se virar, embora não precisaria disso para saber quem era. Já tinha ouvido esse tom de voz centenas de vezes antes.

— O que você está fazendo aqui? – Xena perguntou no mesmo tom ameaçador, embora não conseguiu conter sua curiosidade de seu rosto.

Ares estava parado a dois metro dela, com os braços parados ao lado do corpo, os olhos predatórios avaliando cada centímetro do corpo dela e um sorriso que dizia que estava gostando do que via.

— Só dando uma volta. – Ele se aproximou e começou a dar voltas ao redor de Xena, que nem se deu ao trabalho de se mover, apenas mover a cabeça quando ele passava ao seu lado.

— Uma volta? – Xena bufou. – Olhe, não estou com paciência para seus joguinhos, Ares.

— Eu não disse que estava jogando. – Ele passou mais perto dessa vez, roçando de leve o braço direito no dela. É claro que ele fez isso de propósito, mas Xena fingiu não perceber nada. A última coisa de que ela precisava agora era ter o Deus da Guerra com brincadeirinhas para cima dela.

— O que é que você quer, então? – Sua voz saiu mais séria do que ela queria. Ares havia agora parado definitivamente de dar voltas, e estava novamente de frente para Xena. – Se você ainda não percebeu, eu estou um pouco ocupada.

— Cortando matinhos. Sim, eu percebi.

— Não. É a minha filha, ela... – Então Xena se conteve. Eve já estava com problemas demais para adicionar Ares no pacote. Mas Ares não pareceu surpreso, nem ao menos curioso, notou Xena. Ele apenas a olhava como se dizendo para ela continuar o que estava falando. A menos que...

— Filho da puta. – Sussurrou Xena. Ela então levantou a espada na direção da garganta do Deus a tempo de ouvir sua gargalhada alta e ritmada.

A ponta metálica da espada estava rente ao pescoço de Ares, tanto que se Xena a movesse um centímetro a mais uma linha fina de sangue apareceria – se ele fosse humano, claro.

— O que você fez com ela? – Xena berrou em tom acusatório. É claro que Eve só poderia estar com problemas por causa desse sádico, egoísta e trapaceiro. Xena quase sentiu raiva dela mesma por não ter percebido isso antes.

— Eu não fiz nada à Eve. – Ele respondeu.

Xena trincou o maxilar.

— E eu esqueci que as vacas voam.

Ares soltou um risinho nervoso e fez menção de se mover, mas Xena virou o braço, pondo ainda mais força no punho pesado da espada. Ele não fez nada, apenas se recompôs e deu de ombros.

— Olhe, eu sei que você está nervosa, confusa e talvez um pouco estressada demais. – Ares a olhava com a cabeça levemente inclinada para esquerda, seu olhar era voraz e ao mesmo tempo de compreensão. Xena quase se sentiu tentada a acreditar em tudo que ele falou. – Mas não precisa colocar todo esse peso em seus ombros. – Ele se esquivou da ponta afiada da lâmina e com um só movimento estava atrás de Xena, com suas mãos grandes e fortes massageando seus ombros endurecidos. – Olhe só como está tensa. – Xena ficou em dúvida se o mandava parar ou o deixava continuar. Mas, pelos Deuses, aquilo estava muito bom. – Não se preocupe amor, eu vou dar um jeito nisso.

Xena suspirou e relaxou seus membros, concentrando-se em nada além de sua própria respiração e nas mãos calejadas – mas gentis ao mesmo tempo – de Ares em seus ombros. Mas ela sabia que eles não poderiam ficar assim por muito mais tempo.

— Agora vai me dizer por que realmente está aqui? – Ela quebrou o silêncio entre eles.

— Por que você acha que eu estou aqui? – Ares desceu um pouco suas mãos, indo parar na parte de trás dos ombros.

Xena torceu o nariz.

— Você é o Deus da Guerra que só se preocupa com o caos, e essa cidade está em um total caos ultimamente... Eu só precisei fazer a ligação.

Ela ouviu Ares rir atrás dela, um som abafado ressonando em seu peito.

— A ligação, minha querida Xena... Nem em um milhão de anos eu trocaria um minuto com você pelo resto da vida com Eve... – Então Xena congelou onde estava e arregalou os olhos em surpresa. Ela sentiu as mãos fortes se afastarem no ombro dela enquanto se virara para encarar um Ares que havia percebido a besteira que fez.

— Não estava fazendo nada com Eve, não é? – Sua voz saiu baixa e sombria que até Ares pareceu surpreender-se. Em um segundo ele estava uns bons três metros de distância dela, com a mão de relance no punho da espada presa em sua cintura.

— Em minha defesa – Ele disse – Eu só estava com ela porque eu não tinha você.

Ele está de brincadeira comigo...

Xena lançou um golpe árduo com espada em direção de Ares, que defendeu o golpe no mesmo instante. Ele havia empunhado a espada tão rápido quanto um raio. O segundo golpe veio por baixo, o qual Ares esquivou-se e deu meia volta ao redor dela.

— Você não faz ideia do quanto eu senti sua falta, sua raiva – Xena se lançou para frente de novo a travou sua espada com a de Ares num X a centímetros do rosto de ambos. – Sua fúria enquanto luta. – Ele estava com a voz um pouco ofegante, embora Xena soubesse que ele não estava nem um pouco cansado.

— Cala a boca – Ela atacou com a espada acima da cabeça e defendeu outro golpe vindo de lado. Ela sabia que Ares não estava lutando para valer – e nem ela estava –, mas ela só queria ataca-lo, apenas isso.

— Vem calar. – Ele lançou um olhar selvagem para ela que se remetia a quatro letras: sexo. Xena respirou fundo e atacou com sua lâmina, dessa vez de frente. Ares defendeu empurrando sua espada para o lado com o braço flexionado, enquanto Xena foi de encontro com ele. Ela conseguiu parar a centímetros de colidir contra ele e levantou sua outra mão livre. Seu punho foi em cheio no rosto de Ares, que saltou cambaleando para trás, com mão tocando seu queixo recém-socado.

— Você é uma fera.

— Você não faz ideia. – Ele havia se recomposto no segundo seguinte, com um sorriso mais arrogante ainda no rosto.

— Vamos ficar nessa agora? – Ele balançou a cabeça em falsa repreensão. – Não quero te cansar a toa.

A respiração de Xena estava acelerada agora, seu peito comprimia-se contra solidez da armadura cada vez que ela respirava.

— Como pôde fazer isso comigo? De novo? – Ela voltou a ficar em formação de combate e reergueu a lâmina junto ao corpo. – Como pôde fazer isso com a minha filha? De novo?

— Caramba, mulher. – Ares falou irritado com a acusação. – Eu já falei que eu não fiz nada com ela.

— Então ela simplesmente mudou de um dia para o outro?

Xena deu um passo mais próximo de Ares, que erguer a espada, ansioso, pronto para lutar outra vez.

— Talvez se a mãe dela estivesse aqui para ajuda-la... – Ares sustentou seu olhar de pena. – Quem sabe...

Xena engoliu em seco e tentou não parecer hesitante. Não poderia ter sido culpa dela, não, não poderia... Ela havia feito o melhor para salvar todos que ela pôde. Eve entenderia, Eve entenderia...

Como Xena demorou a dizer alguma coisa, Ares deve ter notado a dúvida e angústia em seu rosto. Ele colocou a mão no peito e abriu um sorriso sacana.

— Eu te deixei na dúvida, Hein? – E voltou a rir.

Xena estava preparando seu punho para outro soco bem dado quando ouviu um grito de horror vindo do outro lado da vila. Ela olhou para trás, mas sua visão estava bloqueada por várias e várias paredes desbotadas e sem graça. Segundos se passaram e mais um grito – dessa vez mais longo e desafinado.

Ela se virou e olhou de novo para Ares. Ele havia parado de rir, e agora sustentava um olhar de gozação enquanto mantinha os braços apertados casualmente sobre o peito.

Xena apontou o dedo para ele em tom de ameaça.

— Depois nós continuamos essa conversa. – Ela disse.

— Hm... Eu mal posso esperar.

Xena revirou os olhos, guardou a espada e saiu correndo em direção aos gritos.

O caminho de volta passou como um borrão. Ela só conseguia pensar se algo tivesse acontecido com Eve, com Gabrielle ou com Virgil.

Ela avistou um aglomerado de pessoas – algumas com vestes coloridas como os seguidores de Eli e outra parte com roupas simples surradas – paradas próximas à fonte. Essa maldita fonte que está em todas também, pensou. Também pensou em outra coisa: Onde essas pessoas se escondiam e reapareciam do nada?

Voltando sua atenção para a aglomeração outra vez, Xena percebeu que estavam todos formando como se fosse uma roda em volta de alguém no centro. A cada passo que ela dava o barulho dos sussurros e murmúrios aumentavam, até que ela parou atrás da primeira camada de pessoas do círculo, onde era impossível entender sequer uma palavra audível.

Foi quando conseguiu ouvir um grunhido forte e roco, seguindo de um bater de lâminas de duas espadas. Era isso, ela tinha que saber quem é que estava tentando matar alguém ali.

Empurrando com força moderada (porque ela não queria ninguém caído por ali) os ombros de um homem e uma mulher ela adentrou no emaranhado de pessoas. Tomando a devida atenção para não chutar o joelho de ninguém no cubículo de espaço que seus pés tinham, Xena empurrou com os próprios ombros um casal de adolescentes e uma mulher já idosa que resmungou algo como ''falta de educação com os mais velhos'' quando ela passou. Erguendo um pouco a cabeça, ela conseguiu ver o outro lado do círculo; isso a animou. Ela estava perto. Continuou se esgueirando por mais três pessoas que a olharam com cara feia, tomando sempre o cuidado de manter seus braços colados ao corpo para evitar que fosse prensado pela massa de pessoas irritadas.

Quando enfim conseguiu ser cuspida para fora do redemoinho de corpos, foi um alívio. Sua armadura estava realmente agradecida por isso.

— Xena! – A voz de Gabrielle surgiu antes mesmo que Xena pudesse vê-la. Ela rapidamente ajustou seu olhar à poeira que estava misteriosamente concentrada ali. Parecia que uma dezena de quadrigas havia passado por ali. – Xena! Aqui!

Foi quando Xena se virou e a viu.

Gabrielle estava em pé, apoiando seu peso com o pé esquerdo atrás e seu par de sais na mão. Ela estava pronta para lutar. Virgil estava ao seu lado, também na mesma posição. Ele parecia estar um pouco sem folego, abrindo várias vezes a boca e sugando o ar sem hesitar.

Do seu lado esquerdo Xena ouviu um choramingo fraco e desajeitado e seu olhar voou para onde estava a figura de duas mulheres deitadas no chão. Eram Sara e Sofia, percebeu Xena logo depois. Mas Sara não estava deitada, mas jogada no chão. Sofia estava sentada sobre os joelhos ao lado dela, tentando, em vão, cessar o choro e as lágrimas que rolavam sem pudor pelo seu rosto. Xena então desviou o olhar para a figura parada quase na frente de Gabrielle, respirando pesadamente, mas não estava sem folego como Virgil.

Eve olhava para Xena como uma pessoa olha para uma barata dentro de casa, com raiva e repulsa.

— O que você está fazendo aqui – Sua voz saiu contida – de novo? – Ela segurava em sua mão uma espada que brilhava com a ponta coberta por uma substância viscosa. Xena apertou o olhar e viu que a ponta da lâmina brilhava em escarlate. Ela então olhou para o braço de Gabrielle a tempo de ver uma linha fina vermelha contornar seu cotovelo e ir quase até a base do punho.

Ela olhou novamente para Sara e Sofia no chão. Sara também estava machucada, com uma mancha vermelha em sua testa.

Xena retorceu seu rosto automaticamente e voltou seu olhar para Eve.

— O que você fez? – Xena perguntou, terminando a frase num sussurro audível.

Mas Eve não pareceu nem um pouco incomodada com tudo aquilo.

— Nada que eu já não tenha feito antes.

Xena sentiu seu rosto esquentar e a área ao redor dos olhos começar a doer. Ela queria chorar, socar alguém até sua mão doer e xingar os deuses e o mundo por tudo que estava acontecendo.

— Xena... – Afrodite apareceu em seu campo de visão, com a testa franzida e os lábios em forma de bico. Ela parecia uma criança que não havia ganhado dos pais o brinquedo que pediu de aniversário. – Eu não fiz nada, eu juro. – Ela parou ao lado de Gabrielle e olhou de relance para Eve. – Sua filha é problemática!

— Eu problemática? – Eve cuspiu. – Da próxima vez me leva num salão de beleza para fazer as unhas. Quem sabe não ficamos amiguinhas depois disso?

Afrodite abriu a boca num O perfeito. Indignada, apoiou as duas mãos na cintura e empinou a coluna.

— Eu só tentei ser gentil! – Defendeu-se – E desde quando você é lésbica? – E se virou para Xena. – Xena, sabia que sua filha joga no outro time? – Ela então apoiou um dedo no queixo e torceu os lábios vagarosamente, inclinando a cabeça por cima do ombro. A imagem perfeita de inocência. – Será que ela sempre foi boa em esconder ou começou agora?

Xena balançou a cabeça confusa. Era muita informação na mesma hora.

— Eve o quê?

— Eu não sou lésbica! – Berrou Eve.

— Não? Uau. É que eu te mostrando um cara mais perfeito do que o outro e você não demonstrando reação. Eu pensei... Você sabe... – Afrodite deu de ombros.

— Você fez um desfile de caras malhados para Eve? – Gabrielle perguntou. Mas ela não estava brava, não mesmo. Sua expressão agora era mais de descrença misturada com gozação.

Eve revirou os olhos e bufou.

— Claro né. – Respondeu Afrodite como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. – O que vocês queriam que eu fizesse? Ensinasse técnicas de luta para ela passar o tempo? Que nada. – E começou a bater o salto alto freneticamente na terra. – Ela nem precisa.

— Então ninguém aqui é lésbica? – Virgil perguntou de repente. Todos os rostos de viraram para ele em descrença. Até as pessoas do círculo humano o olhavam agora. Três garotas abriram a boca ofendidas.

— Você cala a boca! – Eve disse sem paciência. – E você...

Mas Xena já estava com a mente fora dali. A discussão havia retomado força agora, mas ela não ouvia mais nenhuma palavra, nenhum suspiro e nem mesmo conseguia ver as pessoas direito. O movimento e gesticulação dos corpos ficaram borrados, como se seus olhos estivessem cobertos com uma película fosca. Sua visão ficou turva e as palavras de Ares vieram em sua cabeça. Claras e firmes agora.

''Talvez se a mãe dela estivesse aqui para ajuda-la... '', Ares havia dito, ''Quem sabe... ''

Sim, ela pensou, Quem sabe.

Xena fechou os olhos com força até começar a ver pequenos pontinhos brancos surgirem da escuridão. Ela se concentrou neles, e apenas neles. Depois de um tempo, as sombras brancas começaram a tomar forma, se movimentar e se esticarem até formarem um par de asas angelicais. Xena teve a impressão de que se ela tocasse naquelas asas, sentiria a superfície aveludada acariciar sua mão.

Outra sombra começou a se formar no centro do par de asas. Dessa vez era uma mancha dourada. Formou-se repentinamente e foi se esticando como as primeiras pontadas de luz quando o Sol ainda está nascendo, escondido por entre as montanhas.

Xena estava esperando que outro par de asas – dessa vez dourado – aparecesse, mas não foi isso que aconteceu. O Brilho começou a se movimentar mais rápido dessa vez, e Xena pôde ver o que estava acontecendo: Braços, pernas e um corpo sólido e feminino estavam surgindo gradualmente do ponto brilhante. Quando enfim acabou, Xena conseguiu ver quem era, e apenas um nome veio em sua mente: Callisto.

Era ela mesma, em carne e osso (Tudo bem, não exatamente em carne e osso, mas ali ela parecia tão real). Xena sentiu um ímpeto desejo de alcançá-la e abraça-la, mas algo forte a manteve onde estava.

Callisto olhou para ela com todo o amor que um olhar pode demonstrar e sorriu, e seu sorriso pareceu iluminar toda a escuridão que as envolviam ali.

''Ajude-me'' Xena disse, mas sua voz ecoou apenas em sua cabeça.

De qualquer maneira, Callisto pareceu ter entendido. E Xena, de alguma forma, também compreendeu o que deveria ser feito.

Finalmente as palavras de Ares fizeram sentido. Ela não estava presente antes para sua filha, mas agora ela estava, e não deixaria isso ir além do que já fora.

''Sim, sim, sim... '' Xena sorriu para o corpo dourado e delicado de Callisto, que baixou a cabeça em concordância. Quando levantou, seu sorriso convidativo havia sumido, mas seu olhar materno e carinhoso só havia aumentado. Callisto se aproximou, e Xena permitiu que ela o fizesse.

Tudo voltou como uma queda violenta no chão duro. As pessoas, os gritos, o choro de todos os lados. Xena piscou algumas vezes antes de sibilar tudo que estava acontecendo a sua volta.

Eve e Afrodite ainda discutiam como se não houvesse o amanhã, Gabrielle ajudava Sara e Sofia a se levantarem enquanto chamava alguém para cuidar do ferimento na testa de Sara. Virgil permanecia parado observando as duas mulheres discutindo na sua frente. Xena sentiu vontade de soca-lo naquele momento.

— Eve. – Foi apenas um chamado simples. Sua voz mal sendo notada – ou ouvida – no meio de toda aquela confusão. Mas, surpreendentemente, Eve parou de gesticular seus braços de forma grotesca em direção a Afrodite e virou seu corpo completamente em direção a Xena.

A princípio, Xena achou que ela a olharia novamente com repulsa e a ignoraria por completo, mas, novamente, Eve surpreendeu a todos quando olhou para a mãe com uma expressão confusa no rosto.

— Mãe? – Ela perguntou com a voz falha. – O que é que você tem? – Foi a vez de Xena ficar confusa. Eve parecia quase... Preocupada com ela.

Xena olhou para baixo – do seu tórax até a ponta dos pés – e até ergueu os braços para cima a fim de analisar o que Eve poderia ter visto de diferente nela. Foi quando se tocou que só poderia ser... Callisto. Mas é claro. Eve deveria estar vendo o olhar (ou até mesmo o rosto) e Callisto em Xena. Ou poderia estar sentindo sua presença. De qualquer forma, isso animou Xena. Estava funcionando.

— Eve – Xena avançou um passo. – Me escute, filha. Eu preciso... Eu preciso que você me ouça.

Eve pareceu ponderar por um momento se a continuava deixando falar ou se dava um fim naquilo tudo. Depois de alguns segundos, guardou a espada e consentiu com um aceno.

Xena então andou rápido até Eve e a abraçou, sentindo o corpo da filha se tornar duro como pedra. Eve não a abraçou de volta, manteve seus braços unidos ao lado do corpo, mas nem por isso Xena se desanimou.

— Eve. – Xena sussurrou no ouvido dela, tão carinhosa como Xena se lembrava de sua mãe fazer o mesmo com ela quando era criança. – Eve, querida, você precisa deixar isso para trás. – Eve respirou fundo. – Toda essa raiva, essa fúria. Essa não é você. Não é, e você sabe disso. – Xena segurou o rosto da filha com as duas mãos na frente do seu. Eve a olhava com um olhar de filhote perdido da mãe. Naquele momento, ela não era mais amedrontadora do que uma criancinha. Estava funcionando, pensou Xena, tinha que estar funcionando.— Eve... Eu te amo.

Alguma coisa mudou na expressão de Eve. Algo que Xena havia visto há muito tempo nela: amor.

Eve desabou num pequeno choro e agarrou Xena como se fosse a única coisa que a mantivesse em pé.

— Mãe... – Sua voz saiu trêmula, baixa e doída. Xena afagou os cabelos da filha enquanto Eve a apertava mais e mais.

Então Eve levantou a cabeça e olhou para Gabrielle.

— Gabrielle. Eu... Eu... Desculpe-me. – E ela sentia mesmo, Xena sabia só de olhar para a expressão de seus olhos.

Gabrielle parecia não ter o que dizer, até que Eve a puxou para mais perto e a abraçou. Depois foi a vez de Virgil, que tomou um susto quando Eve o apertou.

— É bom te ver de novo, Virgil. – Ela disse sorridente.

Os seguidores de Eli que estavam próximos a ela no círculo, começaram a andar em sua direção a abraçaram unanimemente. Todos formaram um círculo colorido de seda e brilho.

Xena iria se juntar a eles novamente quando ouviu um assobio atrás dela.

— Ora, ora... – Ares disse como quem não queria nada. – Olhem só quem está de volta.

Xena cruzou os braços e estalou a língua produzindo um som molhado antes de se virar para o Deus da Guerra.

— O que você – ela ergueu uma sobrancelha – está fazendo aqui ainda?

— Acho que você disse alguma coisa como... – Ares pousou a cabeça sobre os ombros forçando uma expressão de dúvida – ''Depois nós continuamos essa conversa. '' – ele repetiu, apontando o dedo para Xena do mesmo jeito que ela havia feito antes.

— Que tal fazermos o seguinte? – Xena inclinou-se para ele, que a olhou animado. – Por que você não vai embora e eu continuo feliz por aqui mesmo? – A expressão de Ares naquele momento quase a fez rir. Ele pareceu realmente decepcionado durante alguns segundos, mas, tão rápido quanto apareceu, seu olhar chateado se tornou indiferente.

— Um beijo – ele passou a língua nos lábios – e eu vou embora.

Xena riu pelo nariz.

— Você está brincando, não é?

Ares abriu a boca, preparado para responder, mas se calou e ergueu uma sobrancelha sugestivamente para Xena. Com os olhos fixos em alguma coisa atrás dela, Ares gesticulou o maxilar e subiu e desceu com os ombros enquanto dava um suspiro cansado. – Atrás de você.

Xena se virou e olhou para a multidão que formava o enorme círculo a sua volta, e mais além.

Como uma massa escura e nojenta, não mais do que quarenta homens armados com espadas e outras armas improvisadas avançavam sem piedade naquela direção. Xena prendeu a respiração e olhou para Eve, que também a olhava. Eve assentiu levemente com a cabeça em sua direção, como que dizendo ''Está tudo bem, mãe. Eu posso fazer isso sem perder o controle. '' Xena então assentiu de volta e voltou a respirar mais tranquila.

Ela voltou seu olhar para o grupo de saqueadores e tudo que conseguia pensar era em como aqueles caras – ou seria todo mundo? – conseguiam sumir e aparecer praticamente do nada. Eles tinham um portal que passava pela cidade ou alguma coisa parecida?

Gabrielle e Virgil foram os primeiros a puxarem suas armas (Gabrielle com seus sais e Virgil com sua espada), enquanto Eve distanciou todos os seguidores de Eli de perto dela antes de empunhar a espada.

Pelo canto do olho, Xena viu Afrodite fazer careta e desaparecer no meio de nuvens cor-de-rosa em formato de coração. Típico.

O restante das pessoas que ainda estavam paradas ali se distanciou aos gritos quando os saqueadores se aproximaram delas; eram antílopes correndo de um predador. Em questão de segundos, a multidão que quase esmagou Xena minutos atrás tinha se dissolvido, restando apenas ela, Eve, Gabrielle, Virgil e Ares atrás dela, a quem Xena podia apostar que estava sorrindo (Ares e homens com armas? Por que ele não estaria sorrindo?).

Quando estavam a menos de cinco metros de distância um do outro, os homens armados pararam separados em duas fileiras e esperaram. Olharam para Eve – com sua espada apontada em direção a eles –, para Xena e para Eve de novo. Um brilho de dúvida perdurou nos olhos da maioria deles, que, Xena pensou, achou que Eve lutaria com eles e não contra eles. Bom... Era tarde demais.

Como os saqueadores que Xena e Gabrielle haviam enfrentado antes, esses usavam roupas simples, surradas, algumas com panos diferentes costurados em várias partes do tecido amarelado. As armas improvisadas se mostraram, para a surpresa de Xena, apenas troncos finos de árvores com uma porção de cacos de vidro amarrados em volta. Mas essas ''armas'' não eram muitas, menos da metade as usavam.

Finalmente compreendendo que Eve não se juntaria aos aspirantes a guerreiros, eles avançaram.

Antes que a primeira lâmina viesse ao seu encontro, Eve, Gabrielle e Virgil se dispersaram ao lado Xena, cada um atacando o primeiro que alcançaram.

Xena recebeu o primeiro golpe duro contra ela, derrubando o homem no terceiro golpe na cabeça. O segundo oponente veio pelo seu lado esquerdo, tentando um golpe com um galho de árvore. Xena deu um murro com seu antebraço, derrubando o galho ao lado do homem, que se abaixou para pegar o objeto de novo, foi quando Xena pôs toda sua força na ponta de sua bota e o chutou bem no rosto – ele desmaiou na hora.

Foi quando Xena ouviu um bater de palmas, prolongado propositalmente. Ela olhou para trás e viu que Ares a olhava fascinado. Ele havia se afastado um pouco de onde ele estava ainda apouco, mas Xena duvidava que fosse por medo de ser atingido por alguma espada – Não... Provavelmente era para ter uma melhor perspectiva da luta.

Mas antes de poder responder, ela ouviu um grunhido atrás dela, e se virou a tempo de desviar de um soco com o punho em cheio. O homem havia posto tanta força em seu próprio braço que ele quase caiu no chão, mas logo se recuperou e avançou com sua espada em cheio. Xena defendeu com a espada no alto de sua cabeça, de novo, e de novo.

— Você não perdeu o jeito, pelo visto. – Ares comentou em voz alta, os olhos ávidos nas duas lâminas combatendo.

Xena revirou os olhos e deu um fim aquela luta com uma rasteira e um soco no queixo (quando este já estava desacordado no chão).

Ela olhou para cima e então percebeu que era Gabrielle quem estava ao seu lado esquerdo, enquanto Virgil lutava do seu lado direito. Eve estava à frente dela, dando pontapés em um baixinho com um tronco em cada mão (aparentemente, inúteis). Mas um movimento suspeito fez Xena se virar na direção de onde Gabrielle estava.

A loira lutava contra dois mal encarados de espadas, mas outro se aproximava sorrateiro por detrás dela segurando um machado. Mas Xena lançou seu chakram naquela direção, que partiu o cabo do machado antes de voltar para a mão dela. Isso deu tempo de Gabrielle se livrar daqueles dois e derrubar o terceiro em seguida. Quando só haviam corpos desacordados a sua volta, ela voltou seu olhar para Xena e mexeu a boca formando a palavra ''obrigada''. Xena respondeu com um meio sorriso e virou sua cabeça para o outro lado.

Virgil terminou de dar uma rasteira num homem armado com outro machado e se aproximava de Xena, enquanto Eve pulou e prendeu suas pernas ao redor um homem alto, derrubando-o no chão. Depois de quatro socos com o punho no meio da cara, o homem desmaiou e Eve se levantou.

— Tenho que ver como eles estão. – Eve disse a ninguém em particular e começou a correr seguindo a linha das casas. Xena iria perguntar para quem quando viu a multidão de rostos pequenos em volta de uma mancha colorida os observando de longe. Tínhamos plateia, pensou Xena, que maravilha.

Foi quando tudo terminou que Xena se deu conta da quietude que aquilo se tornou. Nada de espadas, lâminas se chocando ou gemidos de dor, apenas a respiração ofegante dela, de Gabrielle e de Virgil. Isso era quase reconfortante. Mas então se lembrou da outra pessoa presente ali.

Ela esperou sua respiração se acalmar antes de se virar, e lá estava ele, com os braços cruzados casualmente em cima do peito.

— Obrigada pela ajuda. – Xena agradeceu irônica.

Ares acenou com a cabeça.

— Não há de quê. Agora... – ela descruzou os braços e andou até ela. – sobre aquele beijo.

Xena revirou os olhos. Se ela poderia beijar o Deus que praticamente ajudou sua filha se voltar contra ela (duas vezes), e até já dormiu com Eve (e isso era uma coisa que Xena definitivamente não gostava de lembrar)? Claro, por que não?

Xena o olhou – realmente o olhou – e andou com passos leves e lentos até eles ficarem a um palmo de distância um do outro. Ela então passou a língua nos lábios sedutoramente e viu de relance o olhar de Ares ganhar um brilho malicioso. Ela podia sentir o olhar de Gabrielle e Virgil sobre eles, queimando, mas ela não ligava.

— Xena... – Sua voz estava um pouco rouca, mas ela o calou pondo um dedo em seus lábios. Com um sorriso de canto de boca e os olhos fixos nele, Xena aproximou seus lábios dos dele até quase se encostarem – se ela ou ele se movesse um centímetro sequer, seus lábios se tocariam. Ele cheirava a grama cortada e lavanda.

Ares não se moveu, apenas fechou os olhos e soltou um suspiro trêmulo. Xena podia sentir seu hálito quente e adocicado em sua boca e por alguns instantes realmente sentiu vontade de beijá-lo. Duro e forte.

Lutando contra sua vontade incontrolável – e totalmente impensável – Xena passou sua língua suavemente nos lábios do Deus grego, apenas um toque, sentindo a textura macia. Pelos Deuses...

Foi quando Ares inclinou sua cabeça na tentativa de capturar seus lábios para ele, mas Xena se esquivou no mesmo instante e puxou rapidamente seu cabelo com a mão. A cabeça de Ares pendeu para o lado e ele grunhiu em resposta. Xena passou seus lábios pelo pescoço e foi até sua orelha, sussurrando para só ele ouvir:

— Hoje não.

A expressão de Ares quando Xena o soltou beirava irritação com um toque de incompreensão. Ele parecia um pouco (só um pouco) chateado.

— Isso não teve a menor graça. – Ele disse depois de um momento, sua voz soando mais séria do que Xena achava que ele queria soar. Ela quase ficou com pena dele. Quase.

— Quem sabe na próxima.

Com um revirar dos olhos e um resmungo baixo que Xena pensou ter ouvido '' sem graça alguma'' Ares se foi em meio a uma fumaça branca e um brilho prateado.

— O que foi isso? – Perguntou Gabrielle atrás dela, incrédula.

— Nada. – Xena respondeu com um risinho.

Seu sorriso aumentou quando Eve voltou trazendo os seguidores de Eli ao lado dela. Alguns riam, enquanto outros os encaravam com certa curiosidade.

Foi quando uma música alta e melódica começou a tocar. Era divertida, ritmada e com vários batuques intercalados entre si. Era uma música perfeita para uma festa.

— De onde isso vem? – Gabrielle perguntou.

Xena olhou confusa para todos os lados, e até para o céu, limpo e sem nuvens. Nada.

— O meu palpite – ela balançou a cabeça – seria Afrodite.

— Pensei que ela tinha se mandado. – Virgil disse.

— Aparentemente, – Xena disse – voltou para se desculpar.

A maioria dos seguidores de Eli começou a se movimentar com o ritmo da música, e, de repente, estavam batendo palma, rindo e balançando a cabeça ao ritmo da música. Para terem mais espaço, correram de onde estavam e pararam alguns metros depois, retomando a dança.

Eve puxou a mão de Xena, que não teve como recusar. Um segundo depois ela estava correndo, guiada pela mão da filha na frente dela, enquanto chamava Virgil e Gabrielle, ainda parados, rindo da cena.

*******

Gabrielle foi até onde Sara e Sofia estavam agora. Sara, com um curativo já feito cobrindo sua testa, abraçava carinhosamente Sofia, que mantinha seu queixo apoiado no topo da cabeça dela.

— Então vocês são... – Gabrielle se aproximou de Sara e Sofia e parou a um metro delas. As duas olharam para ela, mas não se moveram – Irmãs? – Gabrielle não sabia o que dizer (e muito menos o que perguntar), mas desde que conheceu as duas, estava louca de curiosidade para entender como aconteceu de nascer uma duplicada sua também.

Ainda olhando para Gabrielle, Sara se desvencilhou o mínimo possível de Sofia e ergueu sua mão entrelaçada com a de Sofia. Então, para surpresa de Gabrielle e de Virgil que havia parado naquele momento ao lado dela, roubou um selinho casto dos lábios de Sofia.

— Estamos mais para...

— Namoradas. – Sofia completou sorrindo.

— Namoradas... Legal! – Exclamou Virgil ao seu lado.

Gabrielle se virou para ele, mas ao invés de olhar brava ou sem graça, ela o puxou para si e se despediu de Sara e Sofia com um leve aceno. Ela levou Virgil pelo braço até onde a massa de pessoas dançada ao ritmo da música, batendo palma e cantarolando. Quando já estavam envolvidos pelo som inebriante e pelos corpos que os puxavam de um lado para o outro, ela começou a rir e a seguir a coreografia com paços engraçados e desajeitados. Virgil a acompanhou, tropeçando a cada cinco minutos.

Mas no meio de tudo isso, Gabrielle pôde jurar que ouviu a voz manhosa e alegre de uma criança gritar: ''Olhem! É Afrodite!''