Wyrda

Voo e um presente


O sol teimava em invadir o quarto e incomodar Milena, que estava estranhamente confortável.

Não notou a primeira vez, mas o cheiro de bebida misturava-se a um cheiro conhecido... Notou então os cabelos bagunçados, a cabeça apoiada sobre algo quentinho, e braços fortes ao redor de si, abriu os olhos. Luz, tudo o que viu foi luz por alguns instantes, até acostumar-se com a claridade, em seguida, uma camiseta branca amassada. Levantou os olhos, e pode ver um rosto que conhecia bem seguido pelo cheiro gostoso dos cabelos negros do elfo. Knabben.

Assustada, a menina checou se estava vestida, o que estava, agradeceu mentalmente, e então relaxou novamente a cabeça sobre o peitoral do elfo que a apertou enquanto aconchegava-se na cama dura.
"Mafhir!", chamou a garota que só então percebeu uma forte dor de cabeça.
"Bom dia, pequena, olha só, parece que a diversão de ontem a noite se encerrou agora! Aposto que nunca mais vai querer beber!", disse Marfhir, era impressão sua ou a voz dele parecia mais grossa?
" O que houve?", perguntou a cavaleira tentado recuperar memórias do que havia ocorrido na noite anterior.
"Nada demais, você só desmaiou!", Disse o dragão para em seguida rir, "Claro depois de beijar o elfo uma porção de vezes"
"O que? Eu não fiz isso!", a garota, com algum esforço, livrou-se dos braços do elfo e sentou-se. A dor triplicou. "O que eu faço?!"
"Tentar se desculpar com ele é um começo."
" Não é tão fácil quanto parece, Marfhir!", logo, a garota penteou os cabelos, precisava de um banho, e rápido. "Estou cheirando a bebida, meu hálito cheira a bebida, argh!"
"Consegue vir discretamente até aqui fora? O rio Ninor é tão perto, você pode tomar banho e me ajudar a me lavar em seguida!", sugeriu o dragão e a garota então pegou a roupa de costume, calças de couro, a blusa fina e o colete também de couro, vestiu a capa e correu para fora da estalagem, apenas parando para avisar a velha senhora que seu "marido" ainda dormia no andar superior e que se acordasse, dissesse à ele que iria dar uma volta ao sul da cidade. A senhora ofereceu a companhia de seu filho, mas a garota educadamente recusou.
"Chego ai em pouco tempo!", e Milena pode sentir a alegria de Marfhir.

Correndo com a velocidade máxima que suas pernas suportariam, a garota correu até o dragão e abraçou-lhe forte. Mesmo com o elo mental, a presença dele ali era fundamental, sentia falta, nem mesmo a mais confortável das camas seria melhor do que dormir enrolada junto ao dragão. Marfhir, estava acima de qualquer outra pessoa, amava-o incondicionalmente, não havia ninguém mais no mundo com que quisesse estar junto como queria estar junto daquela criatura, agora maior, muito maior que ela. As escamas verde-água brilhavam à luz do sol e agora ela não sabia distinguir se ele era azul ou verde.Os alegres olhos verdes a fitaram e a mesma pode sentir a língua áspera em sua bochecha.
"Ei!" protestou a garota e então Marfhir se afastou.
" Eca! Que gosto amargo!", Marfhir brincou, fazendo a cavaleira ater o pé no chão.
"Você quem quis me lamber, oras, não reclame!"
"Acho que deveríamos nos afastar um pouco daqui, por segurança, não seria nada leal alguém vê-la se banhando"
" Ou vê-lo, Marfhir!" A garota então colocou-se a andar para o sul de Daret e Marfhir a segiu, caminhando atrapalhadamente.
" Ei, porque não voamos? É arriscado, olhe", o dragão apontou para trás de si, as várias pegadas cobriam o solo.
"Você tem razão, eu vou tentar subir! Acho que não vou me machucar muito se montar sem a sela!", a garota jogou sua capa sobre o dorso do animal e então agarrou-se a um espinho, mas dessa vez não escorregou, apoiou o pé na pata do pobre Marfhir e então com um impulso montou. O dragão então alcançou voo, batendo suas asas constantemente até estarem bem no alto. A sensação de voar era tão boa que a menina por um instante esqueceu-se das pernas que doíam tanto quanto a cabeça.

Após banhar-se fez o mesmo com Marfhir, e agora, suas escamas brilhavam mais do que nunca. Vestiu-se adequadamente e então sentou-se no galho de uma árvore enquanto Marfhir enrolou-se abaixo desta.
"Knabben ainda não acordou ou então, está muito ocupado para vir falar conosco", reclamou a menina apoiando a cabeça no tronco da árvore.
"Talvez ainda esteja dormindo, ontem foi uma noite longa", respondeu Marfhir, atiçando a curiosidade sobre a noite anterior da menina.
"O que houve ontem, o que houve exatamente?", perguntou Milena
" Acho que já sabe o que houve quando aconteceu, e depois de que você desmaiou, Knabben cuidou de você durante a noite, não vi tudo exatamente, eu sai para caçar e então nossa conexão ficou fraca.", respondeu o dragão.
"Você me deixou sozinha com ele!", indignou-se a menina, como Marfhir poderia tê-la deixado sozinha naquele momento delicado?
"Milena, você estava em boas mãos, Knabben parece ter adquirido um grande afeto por você, eu percebi, assim como você adquiriu afeto por ele, não é como se fossem desconhecidos, ele não teria feito nada de mau fora que eu estava cansado de ouvir o que ele tenha a falar."
"O que... Oras Marfhir, ainda assim, ele me beijou a força em Teirm uma vez, ele poderia ter se aproveitado!", Milena continuava com as acusações, mesmo que tivesse um argumento, alguma parte dela sabia que, de algum modo, ele jamais seria tão inconveniente.
" Duvido muito, ele não me parece o tipo de pessoa que se abusaria de uma garotinha tão jovem. Aliás, nem mais tão jovem, agora que tem quinze anos..."
" Não conte a ninguém! Isso fica só entre nós, acho que não temos motivos para comemorar. Aliás, o que ele disse?", questionou a garota.
"Acho que isso, você deve perguntar à ele", e então Marfhir se acomodou na terra fofinha e adormeceu.

Fitando os raios luminosos entre os galhos das árvores a garota começou a ficar sonolenta, a dor em sua cabeça já não era mais tão forte. Colocou-se a pensar em sua nova vida, em suas novas responsabilidades e em como tudo o que estava prestes a sacrificar valeira a pena. Mentalmente produziu uma pequena lista, a liberdade, era uma coisa que certamente perderia, teria de se comprometer com outras pessoas, teria de jurar, teria de cumprir com seus acordos em seu tempo exato; perderia Carlos, primeiro porque não queria colocá-lo em perigo, segundo porque nunca mais o veria, terceiro, como o elfo a havia dito, não a levaria a lugar algum. Suspirou e em seguida continuou. A família, pelos mesmos motivos de Carlos, exceto que sabia que os veria novamente, sabia que George insistiria em lutar ao seu lado, e mesmo um pouco magro, o garoto só não era melhor espadachim que ela por ser muito lento. Perderia a vida que poderia ter, perderia as colheitas, perderia os antigos amigos, talvez Matheus não a perdoasse por deixá-lo para trás, a não ser que a garota desse a ele dinheiro, certamente, aquele grandalhão espalhafatoso a perdoaria.

Ainda completamente perdida em pensamentos, não notou alguém vindo. Quando ouviu os galhos partindo-se já tão perto, desesperou-se, havia deixado sua espada Wyrda na cidade, então não teve escolha a não ser pegar um galho de árvore. "Estou morta", pensou a menina que então subiu mais um pouco e esperou. Quando o sujeito se aproximou o suficiente para tocar Marfhir a menina, sem nem mesmo olhar para o sujeito saltou sobre este gritando.

Sua posição era boa, maravilhosa para arrancar fora a cabeça do sujeito se ele não fosse Knabben.
– Não posso negar, foi uma ótima recepção.- sorriu o elfo, enquanto a garota, com as bochechas em brasas procurava se levantar, desajeitadamente.
– Desculpe, eu não presumi que era você. - Desculpou-se a garota enquanto Marfhir ria.
" Acho que você não deve se desculpar pelo incidente do beijo,Mesmo não tendo conhecido Carlos pessoalmente, Knabben não é tão mau. Vocês até combinam.", Zombou Marfhir aos risos.
"Marfhir! Ele é um elfo, deve ter o que? Cem, duzentos ou até mesmo trezentos anos!", respondeu a garota corando ainda mais, Isso definitivamente não estava ajudando.
– Acho que seria um bom momento para que aprendesse a voar, Marfhir é grande o suficiente para aguentá-la!- Com um sorriso amigável, o elfo mostrou a sela que trazia, estava jogada um tanto longe dali, graças a garota e sua recepção calorosa.

Ao pegar a sela, Knabben a ajudou a colocar em Marfhir, mostrando a cavaleira onde prender e como prender para que ela não se soltasse e caísse para a morte.
– Knabben? - Chamou a garota, enquanto arrumava um dos nós. A sela era pequena demais para o dragão.
– Acho que vamos precisar montar uma sela nova para ele, você cresce demais, Marfhir! - Knabben sorriu animado, algo que a cavaleira achava raro, ele andava muito alegre ultimamente. - Aliás, o que houve? Está tendo problemas ai?
– Não, não! - Gritou a garota, não queria ser intrometida e ao mesmo tempo precisar encarar o elfo. - Só estou um tanto curiosa.
– Sobre o que? - O elfo se abaixou, fitando a garota por baixo da barriga de Marfhir. - Ontem? Ou...
– Sobre ontem, Marfhir me contou boa parte do que houve, não tudo, mas, ainda lhe devo um obrigada, por cuidar de mim, sabe... Mas, essa não é a questão, minha duvida é... Pessoal! - E pelas pequenas falhas enquanto falava, a menina presumiu que o elfo havia notado seu nervosismo.
– Pessoal?
– Q-quantos anos... Er.... Quantos anos você tem? - Soltou a menina de uma vez, arrependendo-se no instante seguinte.
– Sou bem novo, para o elfos é claro. E não muito responsável! - O elfo sorriu, dando a volta por Marfhir, que assistia sem nem mesmo ajudar a cavaleira.
"Marfhir! Faça alguma coisa!", Suplicava a garota.
" Não, isso está interessante!", riu o dragão lançando para o elfo um olhar cúmplice.
– Números! Oras, jovem para os elfos é o que? Duzentos anos?!
– Tenho cento e cinquenta - O mesmo sorriu surpreendendo a garota com um abraço. E novamente a garota sentiu suas bochechas em brasa.
– Você é muito velho! - A garota esperneou até que o elfo a soltasse, e esta afastou-se e agarrou-se ao pescoço de Marfhir que dessa vez a envolveu, protegendo-a de mais abraços.
– Sou novo, muito novo! Aliás, você deu banho em Marfhir? Nunca vi as escamas dele brilhando tanto!
– Sim, eu dei banho sim... - A garota correu para o lado oposto ao do elfo, e novamente fez o caminho para subir em Marfhir, apoiando-se em um espinho, até finalmente subir em seu dorso, a diferença é que agora rinha uma sela e as escamas duras não machucavam sua pele. A cavaleira vestiu a capa.

Marfhir deu um pequeno impulso para cima e a cavaleira agarrou-se em seu pescoço, logo estavam tão alto que ao olhar para baixo a garota poderia ver toda a cidade de Daret. Marfhir se escondeu em uma nuvem, e com ela partiu para longe, ao sul.

Os cabelos da cavaleira de dragão açoitavam-lhe o rosto, aquilo era ainda melhor do que cavalgar na praia. A garota soltou um grito alto, do fundo de sua garganta, o qual extravasou toda a sua euforia, naquele momento não haviam mágoas, perdas, nada, apenas ela e Marfhir.
" Isso é maravilhoso!", disse a garota.
"Espere só até ver isso! Segure-se!", e ao responder a garota que segurou-se firme em seu pescoço, o dragão girou todo o seu corpo, e subiu tão alto que Milena quase ficou sem ar, e então o dragão voltou-se para baixo e deixou-se cair, o que aumentou a velocidade. A cavaleira gritou novamente, e quanto estavam a poucos metros do chão, Marfhir abriu as asas e planou até precisar batê-las novamente.

Por um instante a garota soltou o dragão e lançou as mãos para o alto, gritando o mais alto que conseguia novamente.

Então a mesma sentiu uma certa pressão em sua mente, e então, quando estava prestes a erguer suas barreiras, Knabben gritou.
" Tente ver pelos olhos de Marfhir! Lembra-se do encantamento?", perguntou o elfo. E ao sentir as emoções da garota, gargalhou. Talvez um dia pudessem voar juntos, a sensação parecia ótima.

Com algum esforço a garota lembrou-se das palavras e as proferiu com certa confiança:
– Skulblakas ven! - E então, sua visão tornou-se diferente, pigmentos mais acentuados de cor, nenhum movimento escapava de seus olhos. Exibindo-se Marfhir aproximou sua visão de um determinado ponto.
"Estão indo muito longe", disse o elfo, sua voz parecia baixa e muito fraca, e logo, despareceu.
"Vamos voar mais um pouco e então voltamos... Knabben vai ficar preocupado"

Após pousarem, Knabben fez questão de falar com os dois. Milena notou na voz do elfo um pouco de desconforto, mas ele logo relaxou.
– Seu pai me contou, hoje, você faz quinze anos e...
– Olha - começou a garota, interrompendo o elfo - Não faço questão de comemorações, não há motivos para se comemorar... Sabe, vamos guardar todo esse intusimo para quando acabarmos com esse maldito rei ditador.
– Não falei em comemorar, mesmo que não seja tão má ideia, eu queria apenas lhe presentear. - E do bolso da calça. Knabben tirou um cordão prateado, e na ponta havia uma pequena joia, Milena não sabia qual era, mas brilhava em vários tons de azul, verde, vermelho, amarelo, laranja e roxo, apoiada por uma base da mesma cor do cordão. Era lindo.O elfo o colocou no pescoço da cavaleira. - É um diamante, e o melhor, uma pequenaRESERVA de energia, vou lhe ensinar o que sei sobre magia, e este colar lhe será bem útil em vários momentos.
– Não posso aceitar! - A garota tocou a pedra em seu pescoço - é muito valioso, eu não saberia como retribuir!
– Um sorriso já é o suficiente.

Então a garota envolveu o amigo em um gentil abraço sussurrando "obrigada".

Quando finalmente se soltaram, o elfo explicou toda a história da magia, tudo o que poderia se saber sobre ela, a cavaleira o ouviu atentamente, já havia lido uma vez, mas a versão dele lhe era muito mais completa. Ele explicou sobre limites de cada um, sobre o que deveria ou não fazer e finalmente, deu a menina uma pedra, e a mandou erguer, a mesma falhou uma vez, duas, três, mas na quarta ela já conseguia erguer a pedra no ar por alguns segundos, cada vez melhor, cada vez mais alto e por mais tempo.

Quando já estava anoitecendo, Knabben deu a menina algumas palavras para que decorasse na língua antiga e surpreendeu-se quando a mesma mostrou que já sabia algumas delas e sabia o que significavam.
– É nosso último dia aqui, vamos passar agora por Yazuac e depois entraremos em Du Weldenvarden.

Milena suspirou, eles estavam quase lá, apenas mais alguns dias de viagem, não era como se ela estivesse muito ansiosa.