Escondida numa distante floresta, perdida no meio de um círculo de altas montanhas, havia uma cidade. Mas não qualquer cidade, aquela era Fandar, a primeira e última cidade criada por e feita para os fenari, a cidade estava de pé até hoje apenas por conta de sua localização bem escondida e protegida. Todas as outras cidades fenarianas foram tomadas ou destruídas pelas guerras que aconteceram ao longo de todo o continente várias gerações atrás, mas Fandar, continuava em pé. Não era extremamente avançada, mas também nada precária, o prédio mais alto de toda a cidade era justamente o mais importante, mas depois chegaremos nessa parte.

Os fenari são criaturas comuns, animais com características humanoides. Existem das mais variadas espécies. Dos mais altos aos menores, dos peludos aos escamosos. Nadadores ou voadores, os fenari eram numerosos, habitavam todas as partes do continente. Mas, por causa das inúmeras guerras, os fenari, que não pertenciam a nenhum reino ou exército, acabaram sendo contratados como mercenários para lutarem a favor de qualquer exército que pagasse mais e isso resultou em uma enorme perda. Muitos sofreram retaliações, preconceito; perderam suas casas e famílias e muitos tiveram de se esconder ou vagarem pelo mundo como nômades, sobrevivendo ainda das tradições de mercenários. Apenas Fandar resistiu, apenas Fandar restou. Fandar se tornou um refúgio seguro para os fenari que ainda lembravam de suas origens e, com o tempo, os fenari sumiram dos livros de história ao redor do mundo...

Mas não em Fandar! Todos os habitantes de Fandar eram fenari, do cidadão mais baixo ao mais alto, todos eram fenari. E lá também era o lar dos lendários Fur Hire, os mercenários mais bem sucedidos durante as guerras, mas, com a paz, tiveram de se adaptar, seus serviços de mercenários ainda são válidos, mas não lutam mais em guerras desnecessárias. Agora apenas aceitam trabalhos muito bem pagos e, geralmente, secretos. Entre roubos e explorações, até mesmo assassinato. Os Fur Hire poderiam aceitar quaisquer serviços, desde que seu líder assim desejasse. Mas seus preços eram altos demais e entrar em contato com os mesmos era ainda mais difícil. Apenas uma coisa era certa: O sucesso era garantido.

E era em Fandar que se encontrava Auram, um jovem de treze anos que, por acaso, era o único humano que ali habitava. Auram não se recordava muito de seu passado, antes de chegar ali na cidade, ou melhor, antes de ter sido encontrado. Sua lembrança mais antiga eram duas silhuetas, uma garota e um rapaz, mas não se lembrava de seus rostos ou de seus nomes. O jovem se recusava a parar de pensar nessa única lembrança pois, caso parasse, tinha medo de que se esquecesse daquilo para sempre. Essa lembrança era seu único pedaço de passado, a única pista que poderia indicar quem ele era e de onde ele veio, aquilo e, talvez, seu cachecol. Então, toda noite, antes de dormir, ele focava seus pensamentos naquelas duas figuras enevoadas pela neblina de sua memória confusa e guardava seus contornos em sua alma. E, sempre antes de pegar no sono, ele sussurrava apenas uma palavra "Ib". Embora fosse algo que ele dizia inconsciente de ter dito. Ele sempre sussurrava tal palavra segundos antes de pegar no sono e no dia seguinte, não se lembrava dela.

Auram tinha a pele clara e seus cabelos eram loiros, da cor de palha seca, descendo até cobrir sua nuca e estavam quase sempre atrapalhados, espetados para cima, num perpétuo estado de quem parecia que havia acabado de acordar. Sua estatura era a estatura comum de um humano de sua idade, ou, pelo menos, era o que achava, pois não se lembrava de ter conhecido nenhum outro humano antes. A outra pista que tinha de seu passado e que o garoto não se desapegava, era o seu cachecol. Era um cachecol bem velho e estava quase sempre sujo pois tinha medo de lavá-lo e perdê-lo. Havia inscrições que pareciam antigas e detalhes que indicavam ser de um povo, provavelmente indígena. Mas nem todas as tardes que passara na biblioteca o ajudou a descobrir mais sobre aquilo, na verdade, apenas uma pessoa conseguiu decifrar algo. Apenas uma palavra, uma única palavra; "Auram". E essa pessoa supôs que esse fosse o seu nome e, a partir desse dia, assim ficou conhecido. E era para a biblioteca que Auram se dirigia naquela tarde. Depois de se despedir da figura de uma moça com o rosto coberto por um véu na janela da mansão onde morava atualmente, correu pelas estradas de terra macia da cidade, que levantavam uma nuvem de poeira a cada passo debaixo dos seus pés. Passando por casas pequenas e brancas, feitas de madeira e adornadas com folhas azuis e vermelhas das árvores especiais que só cresciam ao redor da cidade, as kokiri. Que, apesar de bonitas e servirem de um bom enfeite, também tinham milagrosos poderes curativos, podendo curar quaisquer feridas em poucos dias se bem ministrado. Crianças fenari corriam alegremente pelas ruas descalços, brincando com espadas de madeira enquanto outras ficavam na fonte na praça central da cidade. Aves, cães, gatos, macacos, até mesmo insetos gigantes a população nas ruas era da mais variada.

No céu, vários barcos voadores circulavam, alguns parando nas calçadas e outros acima de algumas casas e prédios. Barcos voadores eram o meio principal de transporte ali naquela cidade, deixando as ruas livres para o povo andar por elas. Os prédios de Fandar eram particularmente impressionantes. Eram bem altos, maiores que qualquer árvore kokiri, somente as montanhas que cercavam e protegiam a cidade eram capazes de superarem os prédios no quesito altura. Mas nem por isso, deixavam de ser uma vista de tirar o fôlego, a maioria deles eram inteiramente brancos, apenas suas janelas que possuíam cores variadas. E, o curioso é que, nem todos eram exatamente retos e muito menos simétricos, alguns teimavam em tombar para a esquerda, outros faziam um ziguezague em direção ao céu. Já outro, mais excêntrico, era formado por duas enormes torres que formavam um espiral entre si, este último se tratando da prefeitura, onde residia o prefeito Leonard, um grande leão musculoso que sempre vestia um terno preto pomposo, com listras e manchas. O humano já havia lido sobre a construção de prédios em Fandar, diferente das casas, estas eram feitas de pedras brancas que só podiam ser obtidas fora da cidade. Alguns prédios demoraram um século para ficarem prontos, segundo dizia os livros.

Auram virou uma esquina, correndo na direção de seu destino, uma mãe fenari, com aparência de um panda, tirou seu filho do caminho de Auram e o mandou para casa. O jovem havia percebido aquilo, durante os três anos que vivera ali, sempre percebeu esse tipo de atitude quando ele estava por perto, não era burro, sabia que ele era diferente. Nem sempre isso o afetava, nem sempre. E hoje, não se deixaria ser afetado de novo. Por todos os anos que os fenari trabalharam com os humanos nas guerras, como mercenários e depois sendo jogados de lado, como se fossem descartáveis, era natural que alguns fenari sentissem raiva dos humanos. Embora o jovem não entendia porque aquele ressentimento era dirigido a ele.

A biblioteca era um pouco diferente das outras construções, parte dela parecia soterrada, com sua entrada sendo guiada por um lance de escadas para baixo, como se entrasse numa toca. Auram adentrou e cumprimentou a moça da recepção com a gentileza de costume. Recebeu a indiferença dela em troca, como de costume. Caminhou no meio de enormes prateleiras de madeira que se estendiam até o teto, iluminado fracamente por lamparinas que não continham fogo e óleo dentro e sim, uma solitária esfera dourada que ficava flutuando dentro do vidro, que emitia uma luz bonita, fraca, porém o bastante para que não ficasse um completo breu. Foi até a prateleira que tinha, bem no alto, escrito "Mundo" que já estava bem acostumado e poderia achar o caminho até ela até mesmo de olhos vendados e escolheu o maior livro dali, como de costume. E logo se perdeu em sua leitura, esquecendo do mundo lá fora, como de costume.

Lia sobre tudo o que podia sobre o mundo lá fora; os países, continentes, as outras raças, magia, guerreiros, tradições, mas, principalmente, sobre os Mekk Knight, cavaleiros do tecnológicos do passado. Auram adorava as histórias de como os Mekk Knight eram poderosos e salvavam pessoas. Seus sete membros serviam de inspiração para o jovem, mas o líder deles em especial, Blue Sky, era o seu maior herói. Auram via as fotos e desenhos daquele poderoso guerreiro e se imaginava como ele, um herói imbatível. Infelizmente os livros de história daquela biblioteca nunca lhe disseram o que houve com seus heróis. O mistério o consumia e a dúvida lhe deixava irritado e, foi mais ou menos assim, que o maior sonho de Auram surgiu: Sair da cidade e ir descobrir o que aconteceu com seus heróis e, quem sabe, até descobrir algo sobre sua família perdida. Ele tinha um plano para isso. Ele iria se juntar aos Fur Hire.

O plano já estava decidido e a ideia bem plantada em sua mente, iria se tornar um Fur Hire, seria do grupo de mercenários que viaja pelo mundo realizando missões e trazendo glória e conquistas de volta para a cidade. E também seria o primeiro humano a entrar nesse grupo que, até então, era formado exclusivamente de fenaris. Auram estava decidido e contemplava a imagem de Blue Sky do seu livro, que ocupava uma página inteira. Também pudera, era um guerreiro de aparência imponente, todo trajado de dourado em sua armadura, como se um pedaço de ouro maciço fosse esculpido inteiro ao seu formato. Duas longas espadas prateadas, de lâminas perigosas, uma em cada mão, um cristal azul bem no meio do seu peito e uma capa que parecia voar majestosamente com o vento, mesmo com um desenho estático, a imaginação de Auram imaginava as lacunas. Seu rosto era inteiro coberto por um elmo, sempre ficava imaginando se ele teria um rosto assustador ou o de um cavaleiro gentil. Porém, ao ouvir uma voz baixa e calma que vinha atrás dele, fora tirado de seus sonhos e trazido de volta a realidade. Quando se virou, encontrou Beat, um fenari parecido com um coelho de pelagem escura e olhos grandes. Era baixinho, pouco mais de um metro e usava uma espécie de elmo com dois chifres e uma espada de madeira presa em seu cinto.

— De novo aqui, desu? - Disse o pequeno fenari, enquanto caminhava com passos curtos até Auram, dando a volta pela mesa e sentando-se ao lado do humano.

— Você sabe como eu gosto de ler, ainda mais sobre esses grandes heróis. E, quando eu for um Fur Hire, eu serei um herói, como o Blue Sky, como o…

— Rafale, desu? Acha mesmo que ele vai deixar, desu?

— Ele vai sim, bom... Ele precisa! O fato de eu não ser um fenari não deveria ser um fato determinante. De qualquer forma, eu vou provar o meu valor como...

Auram não teve tempo de terminar o que estava dizendo, pois fora interrompido por uma súbita confusão que vinha do lado de fora. Pela pequena janela da biblioteca, bem lá no alto, entre o vão de uma estante e outra, que dava para a rua logo acima, pôde ver uma algazarra de patas agitadas. Trocou um olhar com Beat, já tendo ideia do que se tratava e então, ambos correram para fora da biblioteca e puderam acompanhar a confusão. Duas pequenas figuras peludas corriam e pulavam com toda a agilidade do mundo pelas ruas, escalando casas e equilibrando-se em cordas e calhas, fugindo de uma enorme fenari escamosa, parecida com um crocodilo que caminhava sobre duas pernas e usava um avental, que atirava pedras e frutas às duas figuras.

— Ah, qual é Marla! Pega leve! - Disse uma das figuras, com uma voz irritante.

— É, você nem vai sentir falta. Não seja uma vaca! Sem ofensas Bova, hehe! - Disse a outra figura, de voz feminina que, naquele momento, apontou para uma grande e gorda fenari de aparência bovina, com pequenos chifres e a pele branca manchada com pintas negras, provavelmente a tal "Bova" mencionada.

Marla, a fenari crocodilo ainda corria atrás das duas figuras, tinha o corpo grande e pesado e por isso, não era tão rápida e habilidosa quanto os dois pequenos, mas estava determinada a pegá-los. Auram não se mexeu, mas Beat agiu rapidamente, sacou sua espada de madeira e avançou na direção de uma das figuras que, no momento, estava correndo sobre um varal, equilibrando-se perfeitamente como um gato. E, então, bateu sua espada na canela da figura, fazendo-a perder o equilíbrio e cair girando pela rua.

— Ei! Isso doeu Beat! - Disse a pequena figura, sentada no chão, batendo a terra de seu pelo azul e suas enormes orelhas de raposa.

— Donpa, você sabe que não pode roubar da sua própria gente, desu! - Disse Beat, com um tom autoritário e as mãos pequenas na cintura depois de guardar a espada. Auram então pôde ver que a pequena raposa, Donpa, estava carregando algumas joias, que, ao ser derrubado, se espalharam por todo o chão de terra.

— Ara, ara... Vocês de novo causando confusão... - Do lado de Auram, surgiu uma moça alta com o rosto coberto por um véu e usando um chapéu redondo, meio volumoso. Suas roupas majoritariamente brancas e largas escondiam a maior parte de sua pele, mas era possível ver que suas mãos e pés eram rosas, assim como seu "cabelo". Era Wiz, uma fenari parecida com um polvo, seu "cabelo", era apenas alguns de seus tentáculos que caíam levemente sobre sua testa e livremente atrás de suas costas. Em uma de suas mãos, ela carregava um cajado bem ornamentado e bem particular em seu design. Mas na outra mão, ela vinha trazendo a segunda figura, a de voz feminina, carregada pela blusa enquanto se debatia incessantemente.

— Ngh! Grr! Me solta, me solta. Uaaaargh! - Disse Recon, a segunda figura, uma raposa tão pequena e orelhuda quanto a primeira, mas seu cabelo era melhor arrumado e seus olhos de um lindo azul. Em seus braços, trazia mais algumas joias, entre elas, uma grande e redonda pérola.

— Como desejar... - Respondeu Wiz, com gentileza em sua voz, mas a soltou, fazendo Recon cair no chão com força, levantando uma nuvem de poeira e derrubando a pérola que saiu rolando até os pés de Auram. A jovem raposinha correu apressada até a pérola, que fora pega pelo pé de Auram. Os olhos grandes de Recon seguiram o pé, olhando para cima e reconhecendo Auram.

— Oooooooi Auram! - Os olhos azuis de Recon pareceram brilhar e ficar ainda maiores enquanto dizia aquilo, pareceu até mesmo esquecer da pérola que estava atrás.

Auram abaixou, pegou a pérola de debaixo do seu pé e suspirou. - Oi Recon... Roubando de novo, pelo que vejo. - Ergueu-se com a pérola numa mão e estendendo a outra mão para que Recon a pegasse, coisa que a raposa fez sem nem pensar duas vezes, ficando de pé ao lado dele, suja de terra mas pareceu não perceber isso, só tinha olhos para o humano, mesmo tendo metade de sua altura.

— Por favor Marla, aceite minhas mais sinceras desculpas... - Começou Wiz, colocando a mão direita sobre o peito e curvando-se levemente para a fenari crocodilo. - Os pequenos saíram da minha visão por alguns instantes e, você sabe... Para eles tudo o que precisa é apenas um instante. Mas eu garanto que eles estão arrependidos e vão devolver tudo, não é mesmo, Donpa? - Wiz disse, havia gentileza em sua voz, mas fulminava a jovem raposa com o olhar.

— Tá, tá... Pode ficar... - Disse Donpa, que havia pegado algumas das joias do chão e começou a devolvê-las para Marla, porém, guardando uma no bolso de trás sem que os outros vissem. - Coroa...

Tal insulto fora repreendido com um tapa atrás da cabeça que Wiz lhe dera, fazendo o pequeno ficar irritado. Recon fora forçada a acordar de seu transe quando sentiu o olhar severo de Wiz sobre si e devolveu as joias que havia pego também enquanto se desculpava. Auram, olhou por alguns instantes a pérola em sua mão e então a estendeu para Marla, mas, ao perceber o olhar irritado da enorme moça, foi forçado a desviar o olhar enquanto teve a joia tomada de sua mão com um pouco mais de força do que deveria. Donpa começava a se desculpar, curvando seu corpo como Wiz havia feito antes, quando Beat percebeu que ele escondera algo atrás e tomou do pequeno, entregando para Marla em seguida.

— Peço desculpas em nome dos dois, desu! A lady Wiz não teve culpa, desu! - Disse Beat, curvando seu corpo como Wiz havia feito, mas se curvando bem mais do que era preciso. Beat realmente era um jovem dedicado e sincero. - Por favor, desculpe-os, desu!

— Você é um bom garoto Beat, mas não deveria andar com essa... Gente. - Marla tinha dito, se referindo aos dois pequenos, mas Auram não era burro o bastante para deixar de perceber o tom em sua voz. Auram sabia que ele estava incluso naquela frase, mesmo não tendo feito nada. - E você Wiz... É coisa demais para você sozinha lidar, quando raios os outros vão voltar?! Ah, quer saber, deixa. Apenas mantenha esses ladrões longe da minha casa. - E assim, Marla saiu, bufando e pisando pesado de volta para sua casa.

Um incômodo silêncio caiu sobre aqueles presentes ali, os outros fenari que assistiam a tudo o que acontecia, já tinham perdido o interesse e voltavam a cuidar de suas vidas. Mas, aqueles envolvidos, por algum motivo ficaram subitamente sem jeito, sem palavras. O que havia acontecido para deixá-los assim? Wiz olhava tristemente para os dois pequenos, Beat continuava com o corpo curvado, encarando fixamente o chão. Os gêmeos se entreolharam por alguns instantes e depois desviaram o olhar sem jeito. Foi Auram quem quebrou o gelo e tomou coragem de perguntar.

— Afinal... Quando eles vão voltar?