Wesen Para Matar

Tensão internacional


Eu não conseguia focar o pensamento em nada. Ou melhor, nada que não fosse o relato dos livros. Já era manhã, e eu havia dormido muito pouco. Estava inquieto.

A Verrat estava transformando pessoas em híbridos, isso tinha ficado claro. Agora, isso era muito curioso. Como eles estavam fazendo aquilo? Quais eram os efeitos colaterais, se havia algum? E por que eles precisavam daquilo? Os Hundjager davam conta do recado, na minha opinião.

Aquilo refrescou o caso do garoto que a mãe tornou híbrido ainda no útero. Pierre. Ele tinha feito muito, muito estrago; se um híbrido de dois fazia aquilo, do que não era capaz um Mehisntinkte? Eu tinha a sensação que aquela luta no parque não era nada, nem um por cento do que eles eram capaz.

As transformações não tinham tanto tempo assim, mas tinham sido muito aperfeiçoadas. O que quer que estava acontecendo para eles estarem fazendo aquilo, era grande.

As chaves...?

Meu celular interrompeu meus pensamentos, o toque da musiquinha irritante me enchendo o saco. E eu nunca iria acertar quem ligava: Juliette.

Com o coração acelerado, atendi.

− Alô? – Minha voz estava falhando; nunca fiquei tão nervoso.

Nick? – A voz dela estava com tom de choro; senti meu coração cair no peito. – Eu preciso urgentemente falar com você. Mesmo. Muito.

− Por quê? O que aconteceu?

Eu te digo quando chegar a hora. – Ouvi ela puxar o fôlego com força. – Onde você prefere?

− Eu não...

− Não, não, venha aqui em casa. Sábado, ok? Só venha, pelo amor de Deus, Nick. Por favor.

− Tudo bem, eu vou. Fica calma.

− Se você soubesse da história, não me pediria isso, por favor. – Ela não disse aquilo por maldade.Mais uma fungada e eu estava morrendo de dó. – Tchau.

Terminei a chamada, nervoso, sem ideia do que tinha acontecido. Um instinto protetor começou a despontar em mim.

O que quer que tinha acontecido, eu iria tentar remediar. Era da Juliette que isso tudo se tratava.

*Alicia*

Eu estava muito, muito ferrada.

Enfim, explicando: eu estava, na verdade, escondida perto da casa de Juliette, observando tudo o que acontecia. E ela tinha acabado de ligar para o Nick.

E ela estava chorando.

90% das chances era que eu estava com o pescoço no laço, pronto pra ser apertado até eu morrer.

Saí do meu esconderijo, tentando encontrar algum ponto pelo qual eu pudesse entrar na casa. A porta da frente era completamente incogitável, porque poderiam me ver. Fui rodeando as paredes, procurando uma entrada lateral.

E achei. Ela dava na cozinha, e a porta era toda de vidro, então eu pude recortar um buraco para destrancar a porta por dentro. (Obrigada, Verrat! Essa é a única coisa em que o monstro em que vocês me transformaram me ajuda.)

Abri a porta o mais levemente possível, já fazendo a woge nas íris de meus olhos. Ela estava na sala, mexendo no celular. Fechei a porta suavemente e fui pulando na pontinha dos pés, sem fazer barulho.

− Juliette! – Falei, na porta da cozinha, com minha voz mais falsamente animada.

Ela deu um pulo no sofá, ficando de pé no instante seguinte. Os olhos dela estavam inchados e vermelhos, coloração também presente no nariz. Ela inspirou bruscamente e enxugou os olhos em uma velocidade quase desesperada.

− Que saudade! – Abri meus braços como se fosse lhe dar um abraço de urso. – Como foi esse tempo que passamos separadas?

− Você! – Sua voz estava irritada. – Por que voltou?

− Bom − Balancei-me na ponta dos pés, demorando-me. – Fiquei sabendo que o Nick vem aqui. Imagino sobre o que vocês vão conversar, sabe.

− Você me mandou corrigir as coisas. Eu vou corrigi-las.

Avancei em cima dela e empurrei-a de volta no sofá, assumindo uma posição dominadora.

− Não. Você vai corrigir as coisas pra você. E no processo, vai me lascar. Então eu vim rapidinho, só pra te avisar de uma coisa: se você fizer qualquer maldita referência a mim, que acabe fazendo-o perceber que sua perseguidora sou eu, vou passar a dedicar a minha vida pra fazer da sua vida um inferno. E eu posso fazer isso muito bem. − Juliette ficou quietinha, o lábio inferior tremendo. Observei a mão dela se fechando em punho discretamente. – Você não vai tentar bater em mim, vai? Se tentar, vou te nocautear, sabe disso.

− Eu sei – As palavras escaparam por entre dentes rangidos; eu podia ouvir a força de sua mandíbula. – Só não entendo porque gasta tanto a sua energia para estragar minha vida.

Estendi a mão direita para o rosto dela, pegando seu queixo rapidamente. A unha do indicador da mão esquerda raspou-lhe levemente a lateral do rosto, como se eu desenhasse uma linha para fazer um corte depois.

− Porque eu amo aquele cara mais do que tudo. E não odeio nada mais do que vê-lo mal. Você o faz mal. Logo, eu tenho que te fazer mal.

− Você parece muito próxima do Nick.

Soltei o queixo bem delineado de Juliette e andei o máximo que pude para trás, meu ego inflando absurdamente com uma coisinha simples.

− E ele também é muito próximo de mim.

Deixei-a ali, estupefata, enquanto rumava para a porta de trás, andando altiva como Maria Antonieta. Eu só não sabia que tinha acabado de me encaminhar para o cadafalso.

*

Minha próxima parada era, obviamente, a casa do meu (não) querido capitão. Juliette tinha traído o Nick com ele; mas eu queria saber porque diabos de motivo aquele bastardinho tinha cooperado.

Eu estava com muita vontade de fazer churrasco de Renard.

Minha moto estava quase voando; se duvidasse, ela nem estava tocando o chão. Se não fosse o capacete, meu cabelo estaria completamente em pé quando eu parei.

Saí do veículo pisando duro, o salto quase cedendo com a força (e era de três centímetros), meu corpo inteiro sentindo o impacto. Na minha cabeça, eu imaginava como aquilo tudo tinha sido, e era como ir transformando uma vela em um incêndio jogando gasolina pouquinho a pouquinho em cima. Minha raiva ia consumindo tudo, avançando, procurando um escape.

Parei centímetros antes de entrar e tentei me normalizar. Mordi os lábios, passei a mão na roupa. Eu estava com raiva até de mim, por ficar indo lá quase todo dia.

Como se eu precisasse ver o homem.

Avancei na sala calmamente, já mais controlada por fora, mas por dentro, tinha uma explosão prestes a ser detonada. Até os estalos do meu andar pareciam tensos, nervosos, com medo de mim.

Até o apartamento dele, eu estava com os punhos cerrados, e só fui notar que realmente estava apertando pra valer quando senti um liquidozinho escorrer, quente. Quando olhei, era meu sangue, e ele estava vertendo de um cortezinho em formato de meia-lua perto da palma.

Ótimo. Ma-ra-vi-lha.

Lambi o sangue, sentindo o gosto férreo amargar minha boca. Não importava quantas vezes eu sentisse aquilo, nunca ia passar a gostar. Se acostumar não quer dizer gostar.

Suguei mais a ferida, tirando mais sangue, prestando atenção no indicador do andar pra não ser possivelmente flagrada chupando minha mão. Deslizei a língua pelo corte, tentando amenizar o ardor e o sangramento, mas tive que parar tão logo comecei, porque eu estava prestes a sair do elevador.

Dito e feito. Fui a passos firmes até a porta dele, procurando de novo a pseudo-chave e arrombando a entrada com ela. Como quase sempre, nem sinal dele. Tirei o celular do bolso, discando o número da Emily.

− Mana? – Disse quando ela atendeu. – Vou passar parte do dia fora, coração... Desculpa, tá? Volto assim que puder, prometo!

*

Depois da hora do almoço eu já tinha praticamente possuído a casa. Estava comendo um pouco de lasanha guardada na geladeira (nunca imaginei ele comendo essas coisas, juro. Pra mim ele ou comia caviar ou comia carne humana), bebendo champanhe (eu estava pra terminar aquela garrafa de tanto que bebia champanhe quando ia na casa dele), assistindo o que me parecia melhor na tevê (South Park de novo), sem sapatos e jogada no sofá. Tudo o que me faltava era tomar banho, dormir e ganharia a casa.

Eu estava parecendo um gato que sai se esfregando em tudo pra marcar território. (Eu acho)

Depois disso, continuei assistindo SP, depois mais umas putarias de humor negro com as quais eu rachava o bico (passei a assistir muito Família do Zaralho!), lavei o prato da lasanha (mas deixei na pia), bebi mais champanhe e decidi abusar da minha liberdade.

Mas antes do meu ato ousado, claro que eu fui andando pelo apartamento para ver como tudo era. E, bem, tudo tinha a cara dele: chique, aquele pezinho puxado pro nobre presente no homem. Sempre tão cheio de coisa, afe.

O banheiro do quarto dele eu tinha achado muito legal, mesmo. Aquele sim tinha algo da realeza, pelo menos pra mim, que era quase inegável. Então eu decidi que ali eu faria o que ele me mataria por fazer.

Tomaria banho, isso depois de dormir.

Sim, fiz muita festa ao redor disso, mas se pensar um pouco, não exagerei tanto.

Logo, deixei uma toalha limpa e fofinha (o cheiro era de toalha limpa, decidi arriscar) no gancho e tirei minha jaqueta, deixando-a esticada, e deitei-me na cama macia. Cogitei tirar a calça, mas logo descartei a ideia, porque aí era demais até pra mim.

Fiz questão de deixar óbvio que eu dormi ali: rolei na cama, puxei os lençóis, baguncei os travesseiros. Pensei em manchar as fronhas de maquiagem, mas como make é muito cara, também ignorei a ideia.

Coloquei o celular pra despertar as seis da tarde, horário em que ele poderia chegar. Estava quase virando uma questão de necessidade de vê-lo irritado; eu precisava tomar banho na casa dele.

*

Seis em ponto o despertador começou a gritar na minha orelha Buddha For Mary, o que foi infalível pra eu despertar. Me espreguicei e pulei da cama, dando uma volta rápida pela casa para ver se ele tinha chegado e me ignorado; não.

Tirei as roupas no banheiro, empilhando-as na pia, bem dobradinhas. Quando fiquei só de roupa íntima, finalmente me veio o peso do que eu estava prestes a fazer. De repente me veio uma urgência de colocar as roupas de volta; mas antes que eu decidisse aquilo, tirei a lingerie, deixando-a embaixo das roupas, e entrei no box.

Tinha o básico ali, nenhuma extravagância, o que de certa maneira me relaxou. No banheiro da Emily, eu ainda me sentia deslocada; eu tinha crescido apenas com o básico, aprendi a me virar mexendo pauzinhos. Eu gostava de toda aquela riqueza, mas por dentro, ainda era diferente demais, era muito “não eu”. O banheiro do capitão me deixou mais a vontade com aquilo.

Regulei a água pro morno e fiquei parada, deixando a água escorrer. Tinha até me desacostumado com o chuveiro, de tantos banhos de imersão que eu tomara. Era meio angustiante, até. Desliguei-o depois de me encharcar toda.

Derramei um pouco do shampoo na minha mão e ensaboei meu cabelo, massageando até formar um monte de espuma. Alguns minutos depois, ouvi alguém entrando pela porta da frente e minha barriga revirou de ansiedade. Respirei fundo, buscando um pouco de autocontrole.

Comecei a ensaboar meu corpo com o sabonete, e uns segundinhos depois, a porta do banheiro se abriu com lentidão.

*Renard*

Eu não podia acreditar no que estava vendo.

Quando entrei na casa, tudo estava desordenado. Não de um jeito brutal, mas era perceptível que alguém tinha passado ali. Sapatos na frente do sofá, tinha louça na pia, o controle no estofado branco.

E o chuveiro ligado.

No meu quarto, quando fui averiguar se era ela mesmo no banheiro, já tinha uma outra surpresinha: a cama estava completamente bagunçada. Lençóis, travesseiros, cobertor, fronhas, aquilo parecia mais um ninho.

E, realmente, era ela.

Eu não duvidava que a Alicia dormisse na minha cama, ou agisse como a dona da casa. Mas, pra mim, tomar banho no meu banheiro era demais, até pra senhorita independente.

Avancei devagar, esperando assustá-la, mesmo que eu soubesse que era quase impossível. A minha sorte era que a porta era muito silenciosa, então pude abri-la sem ruído.

Quase enfartei. A roupa dela estava empilhada no canto do balcão e ela estava realmente no chuveiro. Só sua silhueta era visível, mas ela era...

Proeminente. Seu corpo era, definitivamente, proeminente.

Aquilo devia me lembrar do tempo que eu era obcecado por Juliette, mas eu não conseguia. Não lembrava, não pensava em nada; só conseguia absorver a imagem fantástica do outro lado do vidro embaçado, que me dava vontade de tocar.

As mãos no cabelo negro só faziam realçar as curvas dela, os braços não impediam mais que eu visse com exatidão o corpo de mulher que Alicia possuía. Minha visão não se fixava em nada; eu tentava evitar, tentava desviar o olhar, mas era um esforço hercúleo. Fiquei ali, travado, observando ela se ensaboar, as mãos deslizando por si, como se Alicia me provocasse, e senti um impulso animal de abrir aquela porta e puxá-la pra mim, sem me importar que ela estava molhada; eu estava precisando dela.

Quase inconscientemente, um pé se arrastou lentamente para dentro do banheiro. Depois o outro. Parecia uma força gravitacional; a morena estava me puxando para perto dela, me seduzindo sem querer. Senti uma dilatação nas calças, e travei. Cerrei os punhos com toda a força, congelei as pernas, um ato desesperado para impedir que aquilo continuasse. Minha boca estava seca, mas eu precisava falar:

− Isso eu não esperava de você. – A rouquidão me assustou.

Alicia demorou pra responder, irônica:

− Ai! Seu tarado!

− A culpa não é minha. Você que veio tomar banho na casa errada. – Engoli em seco.

− Ah, você estava demorando, decidi me limpar. Se não queria que eu tomasse banho, chegasse mais cedo.

− Eu não sou vidente, não posso adivinhar que você estava aqui. – Ela passou uma mão pelo vidro, abrindo um espaço limpo para seu rosto. A carinha dela se aproximou da superfície transparente; ela estava uma graça.

Pare com isso.

− O que você está fazendo aqui dentro mesmo?

− Estou me controlando pra não enfiar uma bala na sua cabeça. É bom se apressar se não quiser que eu vá fechar o registro – Mentira. Eu estava me controlando era pra não abrir a porta do box. Não pude evitar; a pressão na minha virilha começava a incomodar muito, assim como eu mesmo.

Pare com isso. Você tem idade pra ser pai dela, pare de pensar nisso. Controle.

− Ui, ele me ameaçou. Anda, sai daqui. – Ela reclamou, e arrastei os pés para longe da porta, para longe dela, brincando de ser deusa no meu banheiro. Para desviar o pensamento, comecei a puxar o lençol da cama, arrumando a bagunça que ela fizera, mas não dava.

Molhei os lábios, pensando na visão embaçada pelo vapor, e senti inveja da água por poder tocá-la tão livremente.

Larguei a cama bagunçada mesmo e fui para o outro banheiro. Era demais, até pra mim. Eu não iria suportar mais um segundo daquilo.

*Alicia*

Por um segundo, vi a vida passar pelos meus olhos.

A porta estava aberta, mas nem ele nem eu falamos nada. Na verdade, eu estava esperando que ele gritasse comigo ou arrancasse os cabelos, mas ele não fez nada disso. Só ficou me olhando, ou então fazendo uma facepalm. E permanecemos quietos, mas quando ele falou comigo, sua voz estava rouca, e para mim, ele estava cheio de ódio, se controlando para não me matar.

Um arrepio subiu minha espinha, e não pude evitar pensar como eu achava voz rouca sexy, deliciosa de ouvir. Eu tinha um fraco (tenho!) por voz rouca; minhas pernas ficaram bambas.

Ai, pronto, começou. Eu mereço mesmo isso?

Quando ele saiu, comecei a acelerar o processo, nervosa. Sim, eu senti uma leve tensão sexual entre nós, mas pra mim era porque eu estava tomando banho ali, e eu achava que aquele vidro embaçado que me cobria deixava tudo com um ar sensual, com a necessidade de ser revelado, e porque eu ficava derretida com voz rouca.

Mesmo assim, vai.

Quando terminei, envolvi-me na toalha fofinha e cheirosa dele, enxugando-me bem bruscamente, para fazer questão de que eu estava sequinha antes de vestir a roupa (ela estava limpa, ok?) que eu estava usando.

Sai do banheiro e encontrei o capitão jogado na cama bagunçada. Era impressão minha ou as bochechas dele estavam vermelhinhas?

− Está com vergonha, capitão? Nunca pensei que Vossa Alteza ficaria corado.

− Cala a boca. Fale logo o que você quer. – A voz dele ainda estava um pouco rouca, e aquilo me arrepiou.

− Bom... – Fiquei na ponta dos pés. – Você é o capitão. Isso significa que você tem meio que proteger seus subalternos, não é? Eles estão sob sua asa, pai gavião. – Brinquei.

− Isso é bem verdade. – Ele concordou com um aceno de cabeça, e pude distinguir um leve brilho nas suas maçãs do rosto. Inclinei a cabeça.

− Você está suado? – Perguntei, um tom de riso na voz. – Você está... Suado? Sério?

− Não é da sua conta – Ele esfregou o rosto, removendo um pouco do brilho. Algo dentro de mim estava gritando “perigo!” freneticamente. – E se eu estiver?

− Não há motivo – Falei, ficando de joelhos na cama. – Ai meu santo, você está suado mesmo! – Tentei tocar o rosto dele, mas ele afastou a minha mão com um tapa rápido. Senti meu estômago desabar.

− Não encosta em mim. Fale o que tem que falar. – Renard estava realmente ríspido, dentes cerrados, só se dirigindo a mim com o necessário. – Sim, eu protejo meus subalternos. Posso até ser pai gavião. E o que isso tem a ver?

− Tem a ver que você falhou. – Ele me encarou em busca de respostas. – Vou te dar um minuto: como ficar com a mulher de um dos seus detetives pode ter a ver com protegê-lo? Ou melhor, como você ousou? – Levantei a mão aberta, e o capitão a fixou com o olhar. Comecei a abaixar os dedos acompanhando os segundos, e ele iniciou:

− Se eu não salvasse Juliette, Nick poderia deixar a cidade, com a chave. Lá fora, ele estaria exposto a problemas que, sem ajuda, poderiam matá-lo e levariam a chave para a minha família. Salvei seu irmão mais de uma vez, acredite. Isso foi só mais uma.

Parei a contagem estendendo a outra mão.

− E o que salvar aquela vadia tem a ver com ter um caso com ela?

− Ela estava sob o efeito de um feitiço muito forte, e que se o progresso não fosse impedido, a deixaria demente, e ela poderia morrer. Uma antiga aliada minha conseguiu descobrir o que era, e me deu uma poção, poção da purificação. Como efeito colateral, fiquei obcecado por ela.

− E ela por você. – Acrescentei, ácida. – Que história bonitinha e nada convincente. Te dou mais quinze segundos. – Voltei a contar.

− Quer uma prova? Ela tentou atirar em mim, me deu uma coronhada. Pergunte ao cara da loja de especiarias no Pearl, ele vai saber lhe dizer que eu fui lá.

− Hum? – Questionei, realmente confusa. – Ah, deixa pra lá. Não sei se acredito em você.

Eu estava tentada; estava mesmo. Juliette tinha dito que não queria “o outro”; ele dizia que era tudo efeito de um feitiço, ou melhor, de uma poção. De certa maneira, se encaixava; uma obsessão indesejada seria realmente incômoda. Loja no Pearl; poderia ser onde o capitão tentou se livrar de seu fardo novo. Além do mais, dava trabalho odiar dois.

− Acredita em mim? – Renard perguntou, se sentando. Demorei alguns segundos para lhe responder:

− Sim. Acredito.

− Que estranho hoje. Você não está sendo rude, nem má. A água quente deve ter assado seu cérebro.

− Deixe-me normalizar as coisas então. – Pontuei a frase ficando de pé e estalando um tapa no seu rosto. – Pronto, Alteza.

*Mihaela*

Jaline já sentia os efeitos da sua jet lag antes mesmo de pousar em Portland. Ou melhor, antes mesmo de sequer sair da França.

Quando Jaret e Jiovanna tinham chegado ao prédio, ela já estava desconsolada, chorando no chão. Karen tinha perdido uma quantidade considerável de sangue e Ethan poderia estar envenenado, então o segurança foi voando com os dois para o hospital enquanto a Hexenbiest tentava acalmar a amiga.

“Querida, acalme-se. Você tinha todo o direito de matá-lo, porque ele tentou matar a você, o Ethan e a Kar. Foi apenas sua defesa, não tinha outro jeito. Além do mais, isso não vai te afetar... Sabe-se lá o que ele teria feito...”

“Eu deveria tê-los salvo, Ji, deveria!”

“Mas não poderia; nunca que aquele cara iria entrar enquanto você não estivesse lá em cima. Vamos, beba um copo de água, querida.”

Depois do difícil trabalho de se acalmar (Line era muito emocional, o que ela mesma não gostava), as duas começaram a arrumar as últimas coisas para a viagem, adiantando trabalho, arrumando malas, preparando ordens, mesmo com os protestos da Spinnetod (“Se eu não tiver nada pra me ocupar amanhã, vou morrer de ansiedade!”. Rá, dramática.). E a sorte dela foi a bomba que caiu por mensagem: “Lineeeee, desculpaaaaaaa! A viagem está marcada para amanhã de tarde! Me enganei com os horários! Desculpaa”

E então lá estava ela no avião, com a dorzinha chata que lhe agoniava o ouvido quando eles começaram a subir. Para se distrair, ela pegou uma mecha do cabelo loiro e brincou com ela.

Uma vez, uma única vez, ela pintou o cabelo de um preto intenso, um preto igual o de sua irmã. Ela não havia notado que a escolha de cor era como a de Emily, era apenas para mudar o visual. Mas é claro que, quando olhou no espelho, notou que se parecia muito com Emy. Quase gêmea, com um pouco de exagero.

Demorou tempo para que o preto se fosse. Mesmo assim, ela não estava reclamando. Tinha ficado muito bom seu cabelo daquela cor.

Levantando voo, ela ficou pensando se Emily já sabia sobre suas tentativas de tomar a empresa da mãe para si. Se soubesse, seria muito ruim; Emily lhe negaria qualquer tentativa de contato, provavelmente achando que era uma nova proposta para que a Desirée inteira fosse passada para seu nome. Jaret tinha reservado quatro seguranças para que eles fossem para Portland o mais rápido possível, mas isso com a aprovação de Emily. Pelo menos, assim Line preferia. Se a situação exigisse, ela poderia muito bem deixá-los lá.

Jaline encostou-se na cadeira. Ela não era do tipo que costumava ter dor de cabeça, mas já sentia uma agulhada na têmpora esquerda.

*Emily*

Eu não podia acreditar no que acabara de ouvir.

− Como assim, Carla? Desculpe dizer, mas está brincando comigo?

− Nunca, Emily – Ela respondeu simplesmente. – Sinto ter que lhe contar tudo isso.

Eu estava em fúria. Carla tinha me contado tudo o que tinha acontecido após a morte de minha mãe, sobre Jaline. Ela era uma maldita usurpadora loira filha da minha própria mãe. Minha irmã. Eu queria fazê-la engolir cada maldita joia ultrapassada da marca da família.

− Eu não acredito que ainda estava achando que ela só era minha irmã – Bati com os punhos nas coxas, descontando minha raiva em alguma coisa enquanto não tinha uma cara loira aguada por perto. – Maldita.

− Talvez ela fosse a única opção, mas os advogados da empresa e Emilia – Essa era a mulher que segurou as pontas enquanto não tinha nem eu, nem minha mãe para administrar o negócio. – Acreditavam que você voltaria. O negócio é que se você não voltasse até a idade que lhe era determinada para que liderasse, então toda essa burocracia de passar o império para ela seria levada a sério. Mas você voltou, então de nenhuma maneira que ela conseguiria levar tudo agora. Além do mais, faz uns dois ou três anos que ela não aparece. Pode relaxar.

− Como, Carla? A minha própria irmã tentou tomar o que é meu! Não é como se eu fosse super possessiva com a loja da minha mãe, mas também ela me pertence! Eu respeito o que a mamãe queria, e é por isso que eu não posso relaxar!

Levantei da cadeira com tamanho ódio que acabei derrubando-a, o estrondo da madeira nobre no chão me assustando e me trazendo de volta à realidade.

Tudo bem, talvez eu estivesse um pouco surtada. Talvez. Afinal, eu realmente não gostava que tomassem o que me pertence (ok, eu sou um pouco possessiva), e ela tinha tentado tomar o que me pertence pelas minhas costas! Covardia, claro.

− Emily, sente-se. – Inabalável como sempre, ela pegou minha cadeira e colocou-a de pé. – E, por favor, tente se acalmar.

− Desculpe, Carla. Mas é que...

− Tudo bem. Acha que uma amiga pode ajudar?

− Só.

− Então vou chamar a Bárbara – Carla foi até a porta naquele andar de rainha africana vodu legal, me deixando sozinha.

Bati com as unhas no tampo de vidro da mesa. Impecável, brilhante, cristalino. Eu queria que as coisas fossem fáceis como quebrar um vidro. Eu queria poder simplesmente me livrar de uma responsabilidade! Eu queria pintar, não queria? Mas se minha mãe se foi achando que eu era a mais indicada pra isso, e se, onde quer que ela esteja, ela ficasse feliz comigo sendo a sua herdeira, então que fosse! E Line não queria respeitar sequer o desejo de nossa mãe!

− Emy? – Ouvi a vozinha de Bárbara chamar.

− Cara, até sua voz exala inocência e fofura. − Virei-me pra ela. – Carla te contou?

− O resumo. Problemas no paraíso? – Ela puxou uma cadeira do meu lado.

− Um só, e ele é feminino, loiro, usurpador e, basicamente, um cachorro. Ou uma. – Peguei um cacho pendente do meu ombro e comecei a enrolá-lo. – Eu confiava nela, cacete. Eu acreditava nela, e ela vem e faz isso. A Line... Caramba, sempre que ela vinha ver a mamãe a gente saía, ia no shopping junta, fazia um monte de coisa. Ela parecia legal, muito legal. Aí eu descubro que ela tentou tomar o que foi determinado que é meu, meu! Tipo, por achar que eu estava morta! “Cã”!

− Talvez ela não tenha feito isso por mal, Emily. – Bárbara balançou o copo, mexendo a água. – Sabe? Talvez ela só tivesse medo de que a Desirée desandasse se continuasse nas mãos de outra pessoa, e tivesse tentado segurar as pontas. Por um lado, ela pode ser boa.

− Por outro, ela pode ser uma vadia – Completei.

− Credo, cadê a Emily otimista de sempre? – Ela me encarou com intensidade. – Você não era assim.

− Desculpe, mas acho que depois de descobrir que a minha irmã tentou me passar pro lado na cara de pau, não tem muito jeito de eu acreditar em um lado bom dela. – Tomei o copo de água dela e fui bebendo golinho por golinho, meio que numa desculpa pra não falar.

− Ah, tá. Olha, mesmo que ela tenha tentado, a... Qual o nome da sua irmã mesmo? Deu branco – A Boneca colocou as mãos na frente do rosto como se tivesse vergonha de ter esquecido, e eu ri. Muita fofura faz isso.

− Jaline.

− A Jaline tá longe, e você ainda é a princesa das joias – Ela corrigiu. – Relaxa. Aí no futuro você esfrega na cara dela que isso tudo é seu, ok? Mande um beijo no ombro pro recalque.

− Pode deixar – Abracei Bárbara de repente. – Muito obrigada. – Disse baixinho. – Você é tudo.

− De nada, Emy. Melhores amigas pra sempre são pra isso – Ela respondeu, tão baixinho quanto eu.

*Nick*

Eu estava completamente fatigado. Tudo o que eu queria quando chegasse em casa era comer, tomar um banho e dormir. Talvez, quem sabe, uma mensagem de boa noite pra Alicia.

Estacionei o carro e quase dormi ali, quando encostei a cabeça no banco. Dia razoavelmente longo, muita papelada fazia isso. Esfreguei o rosto, tentando afastar a preguiça.

Alguma coisa em mim já me dizia que tinha algo errado quando cheguei na casa do Monroe. Nenhum passo, nenhuma fala, nenhum barulho de panelas e um vegetariano cozinhando. Todo esse silêncio me arrepiava um pouco.

Prestei um pouco mais de atenção enquanto avançava, mas quanto mais tentava, menos ouvia. Desisti logo e entrei.

Ficou claro o porquê de tanta quietude: Monroe estava sentado na escada, parecendo preocupado. Ele me olhou como se tivesse feito algo errado e estivesse esperando a bronca. Não pude evitar um sorriso.

− O que foi?

− Juliette lembra de te ver.

Só dei um segundo durante minha próxima frase, mas meu coração falhou uma batida.

− E isso é uma coisa boa, não é?

− Não terminei. – Só a cara dele dizia que não era bom. – Ela lembra de te ver no trailer. − Não tinha lugar pior, não? – E agora ela quer que eu a leve lá.

Mais uma batida falha. Eu não sabia o que estava sentindo: Receio? Desespero? Aflição? Talvez os três juntos.

E uma pontinha de raiva, como bônus pro Monroe.

− Você falou que sabe do trailer?

− Foi acidente. Ela estava, tipo, vendo algo, e era meio que você no trailer, ok? E me escapou. Eu falei que precisava perguntar pra você. Não funcionou muito.

Pronto, eu já estava ficando mais desesperado do que raivoso e aflito. Ela era insistente. E se ela visse o trailer, Deus sabe se o último episódio de “conte à Juliette” não iria se repetir.

− Diga que não pode levá-la até lá. – Sem hesitação. Não importa o que fosse, eu estava decidido: ela não podia ver o trailer. Pelo amor de Deus, diga que não tem mais nada.

− Nick. – Ele se levantou, deixando claro que a coisa era mais séria do que isso. A sorte me odeia. – Ela disse que se... Se eu não ajudá-la a se lembrar de você... – A voz dele falhou uma vez, assim como meu coração... De novo. Eu estava pra ter um ataque cardíaco. – Então ela iria se esquecer de vez de você.

Lá no fundo, não deixei de achar cômico. Se isso parecer presunçoso, desculpe, mas me esquecer de vez precisaria de um pouco mais que determinação.

− E como que ela acha que vai fazer isso?

− Deixando Portland. Pra sempre.

A essa altura, eu já não estava mais tão decidido sobre não deixá-la ir ao trailer.

*Mihaela*

− Odeio aviões. Já é a segunda vez.

− Milady, relaxe. Daqui pra lá é só uma vez. – O moreno começou a massagear os ombros dela. – Logo vão nos chamar.

− O dinheiro vai começar a ficar apertado assim, Miqui – Ela disse, apenas para irritá-lo. – Estou fazendo de tudo para não deixar rastros. E isso inclui corpos.

− Não se preocupe. Scheila vai conseguir mais bem rápido. Por isso que a chamamos de multiplicadora. – “Miqui” tranquilizou-a, sentando-se ao lado de sua lady. – Ela é boa apostadora.

− Que seja. – O som do estalo do salto pôde ser ouvido algumas vezes. – Promete que vai fazer seu trabalho direito, Conquistador.

− Eles me chamam de arrasa-corações. – O jovem disse, deslizando a mão direita pelo cabelo espetado. Ao sentir a intensidade do olhar dela, logo se ajeitou: − Prometo solenemente que farei meu papel no seu digníssimo plano, minha rainha.

− Senão eu vou fazer espeto da sua carne. E Conquistador é mais legal. – Ela disse, levantando-se ao ouvir a chamada para seu voo. – Vamos, querido. Não temos o luxo do tempo.

Scheila, Naomi e Blade chegaram logo em seguida. Como seu voo tinha outro local como chegada, mas tinha uma escala com seu destino, iriam nesse.

− Não acha meio irritante que ela seja impecável com detalhes? Até demais? – Blade comentou, trazendo dois hambúrgueres da lanchonete.

− Muito. O poder realmente subiu a cabeça dela. Obrigada, Lâmina*.

− Há-há.

− Serei sincera com vocês: eu nem queria ter vindo – Naomi tirou uma mecha da frente do rosto. – Mas ela me escolheu porque somos amigas. Agora ela tá toda cheia de pose.

− Eu achei que você recusaria, Mi – A castanha frisou. – Você nem vai com a cara da Verrat. Não muito.

− Mas se eu recusasse, ela iria começar a fazer comigo o que fazia com a Fugitiva. E não estou a fim de ser o novo brinquedinho dela.