Wesen Para Matar

Ação e atração


Olhei no relógio. 23:37. Ofeguei de nervosismo.

Emily e Bárbara já estavam no décimo quinto sono, eu presumia. Isso me favorecia; depois do pequeno encontro com o Capitão Renard, que me deixara realmente abalada com sua proximidade, eu precisava de tempo e espaço.

Bom, muito tempo e muito espaço. Eu precisava pensar, precisava fazer aquela sensação de calor e formigamento e nervosismo sumir, a maldita que surgiu no momento em que ele se inclinou e me ameaçou, sussurrando em meu ouvido baixinho. Desde aquilo, aquele arrepio percorria a minha pele, deixando-me insegura.

Meu desespero devia-se também pelo fato de que eu não estava entendendo nada do que sentia. Eu já sentira atração por uns garotos que considerava bonitos, mas eu não sabia o que era amor ou desejo. Eu podia ter lido mil livros nos quais as personagens sempre descreviam seus sentimentos pelos pares, mas nada se comparava àquela comichão que eu sentia.

Se as descrições dos livros estavam certas, eu não sentia amor nem desejo pelo Capitão.

Então o que era?

Eu nunca me imaginei apaixonada. Achava que eu era uma das primeiras de uma nova geração que aprendera a controlar seus sentimentos e escolher aquele por quem seu coração bateria mais forte. Porém, depois daquele pequeno ocorrido, eu me sentia impotente, e estava decepcionada e com medo de estar atraída por aquele que eu deveria odiar.

Ajeitei o casaco para ver se eu ficava mais quentinha, porém aquela sensação de sua proximidade não me deixava, embora eu realmente tenha ficado mais agasalhada. Respirei fundo.

Quanto mais eu pensasse naquilo, mais aquilo ia ficar me incomodando. Eu já havia dado o meu recado, então que eu esquecesse o capitão... Pelo menos por enquanto.

O tempo em Portland parecia acolhedor, mesmo frio, e fiquei pensando se uma cidade como aquela passava pelas dificuldades e derramamento de sangue, como as consequências de ter Wesens como seus moradores.

E um Grimm.

E um nobre.

E agora, Mehinstinktes.

Ai, meu pai, isso vai ser zoeira.

No caminho para casa, um banho e uma boa noite de sono, eu senti algo... Estranho no ar. O cheiro de um híbrido; mas não era o cheiro amadeirado* e almiscarado do capitão. Era algo... Mais ameaçador.

Tirei a faca do seu lugarzinho em minhas roupas e girei o corpo para ver. Algo caiu em cima de mim, tirando-me o ar. Senti uma mão fria em meu rosto.

− Você chegou muito longe, docinho. Nira pode estar feliz com sua partida, mas nós não.

Ofeguei. Era Kevin, um dos Mehinstinktes do asilo. Traiçoeiro, maldito e calculista. Seus olhos negros deslizavam pelo meu tronco, demorando-se em meus seios. Eu precisava manter-me natural e esconder minha vontade de furar seus olhinhos e estrangulá-lo.

− Mas vocês não desistem, não? – Sem esperar resposta, empurrei a lâmina da faca na direção de sua barriga, mas ele pulou para trás e me deixou livre. Sem pensar, corri.

Se era para ter uma luta, eu não poderia tê-la ali. Corri muito, até chegar a um beco. Eu precisava dar um fim nele ali, e rápido, se eu não quisesse chamar atenção nem suspeitas; tirei o sobretudo com pressa. Virei-me para ele, que parecia ofegar. Eu também não estava muito normal.

Ele avançou para mim, mas aquele Mehinstinkte não gostava muito de treinar, eu sabia. Mesmo assim, eu não poderia contar com aquilo; ele era esperto e frio, não deixaria de me matar se eu não colaborasse – até porque aquilo faria Nira feliz.

Kevin voou em minha direção, o rosto em plena woge, os dentes afiados de um Lebensauger bem à minha frente. Para algumas pessoas, isso seria a morte. Mas não para mim.

Inclinei-me para baixo e enterrei o punho cerrado segurando a faca em seu estômago, girando-o para a esquerda e penetrando a carne com a navalha. Ele não havia se machucado muito, pelo menos não para os nossos padrões, então ele logo tentou um soco.

Fui rápida e aparei seu golpe com a mão direita (a mesma que ele tentara me socar), e girei o corpo para segurar o segundo soco com a mão livre. Inclinei o corpo com força para a frente, fazendo com que ele quase caísse, mas ele conseguiu por os pés no chão e empurrar com força, levando nós dois ao chão.

O baque de minhas costas no chão foi audível, e senti meu corpo inteiro estralar. Minha cabeça bateu com tudo no chão, e a força foi tamanha que minha vista embaçou. Engasguei; a faca voara de minha mão. “Se é para cair, caia lutando”, já dizia minha mãe. (Isso ficou tão arcaico...)

Ele ficou de pé rapidamente, e a adrenalina circulando em meu corpo me fez recuperar as forças rápido. Empurrei-me pra cima e tentei atingir seu rosto com o punho fechado, mas ele me aparou muito bem e fez um corte no meu bíceps com as garras, que por estar contraído, doeu mais que o normal. Silvei baixinho e fiz a woge.

Ele tentou me empurrar, mas eu peguei seus braços e o empurrei. Ele bateu contra a parede, mas conseguiu pegar minha faca (que estava perto dele) e fazer um corte considerável em sua garganta, que começou a banhá-lo de sangue. Dei uns pulinhos para trás e atirei a faca nele, supondo que a perda de sangue já o deixava fraco, mas errei. Ele, com esforço, pegou a faca e pulou na minha direção.

O maldito estava resistindo, então ainda tinha algumas forças para alguns golpes. Ele tentou me dar uma rasteira, mas eu pulei para trás, dando um impulso na parede e pulando sobre ele. Caímos no chão, rolando para longe, a faca deslizando para o outro lado (o cabo dela ficou todo arranhado) e ele acabou ficando por cima. (SOCORRO) Eu iria tentar me defender, mas ele conseguiu se pôr de pé e me segurar pelos ombros, apertando tanto o esquerdo que eu me senti fraca. De repente, ele me ergueu e me atirou contra a parede com tanta força que eu achei que ela cairia em cima de mim. Minha cabeça atingiu a superfície disforme com tanta força que minha visão embaçou e meu corpo deslizou pelo chão.

Kevin pegou minha faca e a girou na mão, com um sorriso no rosto. Se eu tivesse um cavaleiro da armadura prateada... Pensei e quis rir. Eu achava essa história de cavaleiro que protege a princesa muito clichê. Por que tem que ser um cavaleiro antiquado? Por que a princesa também não pode salvá-lo? Por que ela tem de ser inocente? Se as princesas de conto de fadas tem de ser inocentes e indefesas, eu nunca fui uma. Nunca fui, não sou nem nunca serei.

As forças me voltavam pouco a pouco, e quando Kevin chegou perto de mim com a faca levantada, pude me apoiar nos cotovelos e dei o mais forte impulso para cima que pude. Meus pés atingiram seu peito e ele bateu contra a parede, a faca caindo ao meu lado.

− Boa menina – Falei para ela.

Sim, eu sei, falar com um objeto inanimado é estranho. Mas, bem, existem garotas que falam com bonecas. Eu falo com armas. Não tive infância mesmo.

Levantei-me e fui até o híbrido maldito, com falta de ar pelo chute e pela batida. Eu mesma não estava muito melhor.

− Maldita.

− Cara, você melhorou muito. – Disse baixinho para ele. – Mas não o suficiente. – A lâmina da faca deslizou para dentro de seu coração em um simples impulso.

E ele morreu.

Fiquei de pé, ofegante. Eu estava com algumas gotas de sangue na roupa, então fiquei feliz por ter tirado meu sobretudo antes da luta. Vesti-o e amarrei a faixa o mais apertado que pude, escondendo os pinguinhos escarlates e comecei a andar, mas a tontura que me abateu foi tão forte que tive que me sentar para não cair. Levei a mão até a parte em que minha cabeça se chocara contra a parede, surpresa por não sentir meu cabelo empapado de sangue.

Fiquei um tempo ali, tentando me recuperar, até que meu equilíbrio voltasse ao normal, e então fiquei de pé novamente, retomando meu caminho para casa (ou melhor, novamente, mansão), mas não sem antes esconder o corpo no latão de lixo.

Quando cheguei na casa de Emily, fui rodeando as paredes até ficar de baixo da janela do meu quarto. Arranhando um pouco a pintura, consegui escalar e entrar em meu quarto, onde tive uma surpresa.

Emily e Bárbara estavam paradas, em pé, na frente da porta. A tevê estava desligada, e a porta, escancarada. Emily devia ter as chaves.

Ferrou.

E, como eu esperava, Emy ergueu um molho com algumas chaves, que tilintaram e reluziram como se zombassem da minha cara.

− Eu tenho as cópias das chaves de todos os quartos que me interessam. – Ela disse. – Me interessa saber onde você estava. – Emily deu uns passos na minha direção.

Eu não tinha saída. Ela iria sentir o cheiro dele em mim, mesmo que nosso contato não tenha sido tão intenso. Emily era melhor farejadora do que eu; uma inspiração e ela saberia onde eu estive.

Emily agarrou meu braço e me puxou para um abraço, enfiando o rosto em meu pescoço, do mesmo lado em que ficara. Senti ela puxar o ar com força, ouvindo perfeitamente sua respiração em meu ouvido. Ela desceu para meu ombro, e para a frente de meu busto, inspirando curtamente e várias vezes, literalmente me farejando. Olhei para Bárbara. Seu olhar transmitia um misto de medo, ressentimento e pena.

Emily ofegou e me soltou. Eu sabia que ela sentira o cheiro do Capitão em mim, e fiquei confusa: em parte por ficar com medo, em parte por querer engasgá-la por ter ousado me agarrar daquele jeito (mentes pervertidas, xô), outra que também queria esganá-la, mas eu não entendia direito o porquê.

− Híbrido! Você foi ver o híbrido! – Ela exclamou. E, mais perto do meu ouvido, disse: − E lutou com ele também, pelo jeito.

− Fala baixo, eu só acho que tem gente dormindo. – Respondi, mantendo toda a calma possível. Se é que isso era possível.

− Alicia! – Bárbara falou. – Como você pôde?

As duas estavam indignadas e eu não podia culpá-las. Eu estava sendo, no ponto de vista delas, inconsequente, impensada e precipitada. Pelo menos era o que eu pensava que elas pensavam. (Hã?)

− Gente, relaxa. Eu não o matei e ele não está do lado das Famílias Reais, e muito menos vai interferir na nossa vida; deixei isso bem claro.

Emily suspirou e deu um soco na parede atrás de si, olhando-me com fúria, sem querer acreditar que eu tinha sido tão estúpida a ponto de ir confrontar o bastardo sozinho. Já Bárbara parecia um pouquinho triste e piedosa. Amém; de furiosa já bastava a Emily.

− Mas, Ally, não é essa a questão. – Bárbara continuou. – Você está nos deixando de fora, indo resolver as coisas sozinha, indo lutar sozinha.

− Não nos quer mais do seu lado? – Emily perguntou.

− Não! – Respondi. – Claro que não! Depois de tudo pelo o que passamos, logo agora eu deixaria vocês de canto? − Desviei-me de Emily e sentei na cama. – Eu não quero estragar a vida de vocês, é isso. Não é pelas neuras antigas, mas aqui é a nossa casa, e é onde queríamos chegar. Não vai ser eu quem vai nos afastar daqui. Nem ele, nem nada mais, me entendem? Eu já amo esse lugar e daqui não arredo o pé.

Emily suspirou. Talvez de alívio, talvez de tédio, mas com certeza estava mais conformada.

− Você não vai fazer mais nada sem nós, vai? – Ela perguntou. – Por favor?

− Tipo, senão a gente vai te esganar – Bárbara completou, inocente que só ela...

Sorri. Aquela eram minhas garotas.

− Prometo pela minha vida. Agora vocês vão me seguir para todos os lugares, não vão?

Que pesadelo se elas fizessem isso.

− Só não vamos quando for ver o Nick. Vocês merecem privacidade. – Bárbara falou, e Emily lhe deu um olhar fugaz antes de concordar. Talvez tivesse medo que eu fugisse.

− Verdade. Em briga de irmão, não se coloca a mão. – Emily assentiu, solene.

− Não existe esse ditado! – Elevo a voz, rindo levemente. – Você acabou de inventar.

− Provérbio fresquinho – Ela riu. – Vamos dormir, porque amanhã... Ah, não sei o que tem amanhã – Ela franziu a testa.

− Nós vamos a todos os shoppings e livrarias possíveis! – Bárbara sugeriu, muito possivelmente interessada na parte das livrarias. – Ainda temos algum dinheiro, não podemos gastá-lo?

− Não é minha intenção... – Refleti. Podíamos ainda precisar daquele dinheiro, pensava eu, até que a voz de Emily me despertou:

− Claro que podemos, Ally! – Ela sorriu. – Carla me mostrou o testamento de minha mãe e os documentos que diziam interesse a mim. E a herança dela... É uma fortuna! – Emy piscou como se estivesse em um sonho. – Nem eu sabia que ela tinha tanto dinheiro. Estou nadando em grana...

Claro que meu lado mais capitalista e consumista foi às nuvens quando ouvi aquilo. Gastar? Roupas novas? Sapatos novos? Quem sabe cabelereiro?

Amém, herança! Eu te amo!

− Então vamos! Amanhã cedo! – Ia tirar a jaqueta, mas me lembrei do sangue. Elas iriam questionar, então abri logo o jogo: − Ah, antes de irem, tenho uma coisa a dizer: fui atacada. Por isso, minhas roupas estão todas sangrentas.

As duas se viraram para mim. Bárbara com espanto, Emily, com entendimento. Ela sentiu o cheiro do sangue e encontrara uma justificativa para aquilo.

− Quem e quando? – Perguntaram.

− Kevin, hoje. O estranho é que foi só ele... Não teve mais ninguém. Só ele, e pronto.

As duas pararam por alguns segundos, se entreolharam e se voltaram para mim.

− Quando, exatamente?

− Não sei o horário... Foi depois que eu saí da casa do Capitão. Umas onze e pouco, talvez... – Bati o dedo contra o queixo. – Ele disse que eles não desistiram, e que mesmo Nira estando feliz com a minha ida, eles ainda me querem.

Emily arranhou levemente sua mandíbula (gesto que mostrava e ainda mostra que ela está pensativa) e disse:

− Olha, se eles ainda te querem, significa que não vão desistir de jeito nenhum. Nira é feita de milhares de Wesens diferentes e poderosos, sem falar que ela ama a Verrat, por assim dizer. E é claro que ela ama o fato de você ter sumido do mapa para ela.

− Eles realmente acham que seu sangue Grimm te torna mais forte que qualquer um de nós, por isso não desistem. – Bárbara disse. – Seja o que for, não devemos nos preocupar com isso. Vamos relaxar. Estou com sono.

− Boa noite − Cumprimentei-as.

− Boa, mana – Elas disseram, saindo e fechando a porta.

Eu também precisava de um descanso.

*

“− Você tomou meu lugar!

− Nira, para! Eu não fiz nada!

− Fez sim! Eles acham que você é melhor que eu. Não é, nunca será, porque agora você vai sumir da minha vida.”

Acordei com um sobressalto, arrepiada com meu próprio sonho. Nira, aquela maldita, estava me torturando até em sonhos.

Veja bem, antes de eu chegar ao asilo, Nira era a favorita de lá, por ser uma das híbridas mais fortes de lá. Catorze Wesens, no total. Ela era poderosa, uma das poucas com parte Siegbarste, por causa da dificuldade de encontrar um e extrair sangue desses caras. Egocêntrica, egoísta, mimada e invejosa, ela era a receita de uma monstra impiedosa e patricinha. E tudo mudou quando eu cheguei.

Nenhum deles sabia que consequência meu sangue Grimm faria em mim, mas como eu tinha sobrevivido à transformação, eles acharam que eu era extremamente poderosa, e logo as atenções se voltaram para mim, fazendo Nira ser esquecida, deixada de lado, coisa que seu lado mais ególatra não aceitava de maneira nenhuma. E, claro, ela me considerava culpada de ter roubado seu lugar nos holofotes, logo sua raiva era descarregada em mim, com tentativas de me matar.

Mas eu tinha o pessoal do asilo do meu lado, por mais que eu os odiasse. E sempre que Nira saia de seus castigos (dias sem comer e beber na solitária, torturas, ser presa nas tábuas do lado de fora do asilo por correntes, ir para a prisão), ela só saia com o ódio por mim alimentado. O que ela passava só era um combustível para sua ira, e novamente, sua válvula de escape era eu. E para ela, aquilo só teria um fim com a minha morte.

De tudo o que ela me fez, algumas coisas deixaram cicatrizes bem feias. Uma de nossas últimas brigas resultara na mais feia de todas elas: um corte grotesco, fino e um tanto profundo, atravessando a diagonal de minhas costas. Ela já me deixara acorrentada no fundo do mar, contando que eu morresse afogada, mas consegui escapar com um tanto de jeito. Já me enterrou viva, e eu escapei. (Se ela quisesse realmente me prender, teria me acorrentado e aí sim me enterrado.)

Esfreguei o rosto, os braços, as pernas, na tentativa de afastar o arrepio que o sonho me deu.

Pronto, já passou. Acabou. Nira está na Europa, bem longe.

Reclinei-me contra a cama, massageando as têmporas, sentindo os nervos atiçados pelo sonho (ou melhor, pesadelo) preparados para a luta. Minha respiração estava falhando; eram cinco da manhã e eu estava toda desconcertada.

Droga.

Conhecendo a mim mesma tão bem, dormir novamente seria muito demorado, então peguei o celular e puxei os fones de onde estavam, conectando-os e colocando uma música qualquer.

Quando voltei a dormir, o sonho foi... Diferente.

“Era um labirinto. Eu estava com pernas mais longas e meu corpo inteiro parecia maior, como se eu tivesse crescido, o que era impossível. O lugar que eu estava era circular, e milhares de corredores saíam dele. E, ao fundo, um chorinho de criança. Eu não reconhecia o som, mas aquilo fez milhares de sentimentos brotarem em mim.

Raiva de quem quer que fizesse aquela criança chorar.

Pena dela por estar em um lugar tão deprimente.

E uma necessidade intensa de proteger aquele serzinho escondido longe de mim.

Saí correndo pelo corredor, em direção a voz da criança, que era uma garota. Quanto mais eu corria, aquela profusão de sentimentos aumentava com novas sensações, tomando conta de mim. Eu estava descalça, por isso meus pés quase não faziam barulho no chão de pedra.

O corredor estava mergulhado quase totalmente na escuridão. Poucos archotes iluminavam fracamente o lugar, mas eu não me importava. Alguns metros à frente, galhos surgiam da parede, como braços e mãos finas tentando me agarrar, mas eu não parava. A garota precisava de mim, eu sentia aquilo. E por mais que eles me arranhassem e causassem dor, eu não sentia nada. Só a urgência; eu precisava salvar a menina.

Os galhos acabavam, e o choro ia ficando mais alto. Eu queria dizer a garota para que calasse a boca, ou então quem quer que nos mantivesse ali nos pegaria.

Quando vi um acréscimo de luminosidade saindo de uma abertura do tamanho de uma brecha, meu coração pulou no sonho. Era lá que ela estava. Parei de correr e abri o restante da porta o mais levemente que pude.

Ela estava encolhida, sentada no canto da sala oposto à porta, os braços em cima da cabeça. Mesmo assim, a sala era quadrada e não muito grande, logo não adiantava muito. Ela estava em woge, pelo o que eu pude ver, e era uma híbrida, como eu.

Mas era igual a mim. Seus braços evidenciavam que ela era parte Blutbad, Fuchstenfelwild e Balam, três que eu também sou. Seus olhos, quando ela me fitou, me surpreenderam: um âmbar, outro vermelho.

Idênticos aos meus.

Sua woge desapareceu, e seus olhos, como humana, eram cinza. Mas não eram os meus olhos... Eram familiares... Mas não os meus. Seu rosto era parecido com o meu, os cabelos também, longos, negros e ficavam dois palmos abaixo de seu ombro.

Ela estava toda arranhada, seus pulsos estavam algemados, os tornozelos também, e uma corrente lhe envolvia a cintura, prendendo-a à parede. Aquilo me deixou escaldante de fúria.

A menina estendeu os braços pra mim, a boca tremendo do choro. Mas seu olhar mostrava esperança e felicidade de me ver, como se esperasse por mim há tempos.

Corri até a garota e deixei minha mão se transformar, mostrando as garras que gotejavam ácido e que a libertariam de seus grilhões. Agachei-me na frente dela e, lentamente, cortei as algemas, e ela tentou me abraçar, mas além de não poder, sinalizei para que ficasse quieta. Ela ainda estava algemada pelos pés.

Cortei as algemas em seus tornozelos com um golpe e a abracei. Ela enterrou o rosto no meu pescoço, chorando baixinho, e enrolou os braços nos meus ombros e as pernas na minha cintura, como se eu fosse seu último apoio. Deixei o ácido pingar em cima da corrente que firmava a menina na parede e, com um movimento, separei-a, puxando a menina para mim.

− Mamãe – Ela gemeu.

− Shhh, querida. Tudo vai ficar bem.

Ouvi um disparo, senti uma dor enorme surgir no fim da minha coluna, do lado direito, sabendo que uma bala me atingira, logo na aglomeração de nervos. Caí, mas não soltei a menina, que chorava desesperada.

E quando tudo ficou escuro...

Eu acordei, confusa e com lágrimas escorrendo pelos olhos. Eu não sabia quem era a criança, mas três coisas estavam vivas na minha mente:

1) O lugar em que estávamos era a prisão do asilo, onde os punidos ficavam (mas lá não tinham galhos nas paredes);

2) Os olhos dela eram os mesmos olhos do Capitão;

3) E o que a garota dissera para mim não era só piração, ou ansiedade, ou até insanidade. Sim, ela era minha filha.

*

− Bom dia! – Emily falou, me abraçando de repente.

− Oi...

Eu estava estranhamente morrendo de sono, que o banho pouco fez para afastar. Mesmo assim, eu estava arrumada e pronta para passear.

E com fome.

E ainda desconcertada pelos sonhos que tive.

− Que cara é essa? Acorda, mulher, nós vamos ao shopping! Vem logo tomar café. – Ela me puxou para a mesa menos arrumada que antes, mas ainda cheia de sanduíches e queijos e algumas carnes e bolachinhas francesas (que eu ainda não lembro o nome, por isso vou chamar assim) e pães e brioches e croissants e...

Sério, se eu continuar morando aqui, eu vou ficar gorda.

Sentei-me e enchi meu copo com suco de laranja (nham!) e peguei um croissant. O sonho ia e vinha na minha cabeça, assim como a comichão chata de luta e o desespero por ter deixado a menininha à mercê dos homens do asilo.

− Tem algo te incomodando – Bárbara falou.

− Eu tive um sonho...

Vou te contar! Eu me atirava do oitavo andar – Emily cantarolou, rindo.

− Emily, isso não é uma música do Kid Abelha – Falei. – Era com Nira. – Algo em mim dizia que eu não deveria contar sobre o sonho da garota. Em parte por eu ainda estar triste pela garota, em parte porque era totalmente improvável.

Veja bem, todo Mehinstinkte, se sobrevive pela transformação, não cresce mais. Nunca vi nenhuma exceção. Se nosso corpo não se desenvolve mais, as mulheres se tornam estéreis. Eu não posso ter filhos, nem escolheria o capitão para ser pai deles (por mais bonita que a garota do sonho tenha ficado), então foi tudo loucura.

Mas agora até meus sonhos me dizem pra ficar com ele! Isso é o quê, rebelião hormonal?

− O que acontecia? – Bárbara se inclinou para frente.

− Bem... Era só um flashback. – Dei de ombros.

− Huuum, então não é nada. Não devemos nos preocupar. – Emily enrolou um cachinho nos dedos. – Se apressem, vou pegar a carteira.

Ela deixou o copo de suco na mesa e subiu. Bárbara, de imediato, se inclinou pra mim, com jeito de segredo.

− Ontem de noite eu ouvi a Emily falando com alguém no telefone. Não sei quem era, porque ela baixou bem a voz, mas devia ser alguém importante, porque a voz dela, pelo o que deu pra escutar da voz dela, era urgente.

− Algum contato especial? – Questiono. – Algo sobre a família dela, sei lá?

− Ela não deve dar risadinhas de garota apaixonada com algum contato especial. – Ela riu. – Quem sabe seja o cara do hotel, ele pegou o número dela, lembra?

− Eu tinha até me esquecido. – Mordi a língua de leve, lembrando-me do porteiro do hotel em Nova York em que nos hospedamos. Mas antes que ela falasse algo, escutei os pés de Emily se aproximando da porta de seu quarto e levei um dedo aos lábios, fazendo “sshhh” o mais baixo que podia. Ela assentiu e se aprumou na cadeira, exatamente dois segundos antes de Emy aparecer.

− Vamos?

− Mal acabei de vir comer, coisa! Deixa só eu terminar – Falei, enfiando um grande pedaço do croissant na boca, mastigando como pude.

− Faminta. – Ela reclamou, e pegou o resto do suco, bebendo-o com alguma pressa. – Vamos!

*

Mal entramos no shopping e eu já estava extasiada com tudo ali. Entenda. Eu nunca fui a um shopping, cara, eu nunca tive uma tarde como uma garota normal. Eu tinha dezenove anos pra compensar!

Emily, que já conhecia tudo, nos arrastou para o segundo piso, levando-nos a uma loja de roupas do segundo piso que era simplesmente divina. Quando vi as roupas em exposição, meus olhos brilharam.

− Aaaah! São lindas!

− Parece uma criança na frente da loja de doces – Emily comparou. – Vamos.

Ela foi primeiro, pegando milhares de blusas, jeans, camisetas, jaquetas e vestidos. Imitamos seus gestos, até porque foi meio que uma ordem dela (“eu não vou deixar vocês saírem daqui com menos de cinco blusas, cinco saias e quatro calças!” Ah vá!), então nós pegamos tudo o que achávamos bonito e que nos servia de vista. Emily foi a primeira a entrar e experimentar.

− Trouxe os fones? – Bárbara perguntou, sentando ao meu lado na frente do provador.

− E você ainda pergunta. – Puxei os fiozinhos brancos de dentro da bolsa. –New Divide?

− Coloque o mixado! – Ela pediu.

E logo já estávamos opinando a cada conjunto e peça de roupa que ela vestia, ao som de Maneater, New Divide, Wipe Your Eyes (é tão linda essa música) e algumas outras aleatórias.

Emily pegou duas blusas brancas (uma tão macia que eu não quis tirar o rosto), uma rosa pink com um par de sapatos estampados e a frase ♥ Shoes, uma azul-cobalto com um dos lados caindo do ombro (aquele jeito frouxo que parece que a blusa foi puxada pro lado e que é muito chique), duas calças jeans pretas, uma legging que imitava jeans, outras duas legging brancas, quatro saias (uma preta, uma rosa leve, uma azul e uma branca) e um vestido.

− Consumista. – Falei.

− Você não é nem um pouco diferente. Vai lá – Ela pegou o cotovelo de Bárbara e a fez ficar em pé, encaminhando-a para o provador. – Me dê esse fone.

Passei-lhe o fone que Bárbara usava e coloquei Monster, do Skillet, para tocar.

− Você está escondendo algo do seu sonho.

Meu Deus!

− É sério, você faz parecer que eu sou um livro aberto. – Suspirei.

− Alicia, eu passei cinco anos da minha vida ao seu lado. É o suficiente pra eu aprender seus tiques e sinais corporais.

− Verdade. – Bárbara saiu com uma blusa branca com cara de gatinho e uma legging preta diva.

− Perfeita, mana! – Aprovei.

− Parece uma modelo – Emily sorriu, e Barbie, antes de entrar novamente no provador, disse:

− Eu estou ouvindo tudo e estou do lado da Emy. – E ela entrou.

− Ok, né. Mas, sério, eu não escondi nada. Eu te falei do sonho, era com Nira, e só.

− Não. Ou tem outro sonho, ou você está escondendo algo.

Suspirei. Não tinha como esconder nada dela, e eu me sentia mal escondendo o sonho da garota/minha filha fake dela. Por um segundo, olhei em seus olhos e vi neles o que eu via nos olhos da minha mãe: compreensão.

− Fala logo! – Bárbara reclamou de dentro da cabine.

− Eu conto pra vocês depois, prometo.

Bárbara saiu com alguns conjuntos de blusas e calças perfeitos, às vezes trocando por saias, e uns vestidos que a deixavam com aparência de princesa (parte de mim ficou curiosa pra saber de que família ela faria parte, mas só de pensar na Barbie do lado deles meu cérebro travou).

Ela levou a blusa branca com o gatinho estampado, um rosada com as mangas de renda, uma bege de mangas caídas e desenhos em dourado, uma azul drapeada de um dos lados, que deixava parte de sua pele à mostra, outra rosa, com uma das mangas caídas (aquela loja gostava desse estilo tanto quanto eu!), e uma marfim neve, com uma renda de flocos de neve atrás. Suas calças eram duas jeans, três legging nos seus tons favoritos e duas pretas. As saias eram de tons claros, duas simples e três com aquelas dobrinhas, mas ela teria que usar uma calça junto, porque o pano era bem leve.

E então foi minha vez.

Peguei minhas roupas, dei o fone para as duas e fui para a cabine, tirando o conjunto cobalto que eu vestia e ficando só de roupa íntima. Em um impulso, tirei meus cabelos da costa e me virei, olhando o espelho por cima do ombro.

Ainda estava lá, a linha fina, porém grotesca, prova de que eu tinha uma inimiga mortal. Toquei o começo dela, relembrando a dor. Eu desmaiei por falta de sangue naquele dia...

Esqueci isso e vesti minhas roupas, saindo a cada nova combinação que eu vestia. As duas opinavam com gosto, mas sempre aprovando.

No fim, todas deram. Eu tinha pegado umas duas blusas brancas, uma rosa, toda solta e cheia de charme, uma amarela com um lacinho, duas azuis simples e confortáveis, uma vermelha de mangas compridas, uma preta sem mangas e uma vermelha, azul e dourada lindinha. As calças eram todas jeans, já que legging me incomoda, e umas três saias, duas com pregas e uma simples, uma branca e duas pretas.

Quando fomos pagar, a conta quase fez meu queixo cair, mas eu sou uma ótima atriz.

− Meu pai amado! – Sussurrei, mas com aquele timbre de grito. – Tudo isso?

− Relaxa, são só três mil e pouco – Ela respondeu. – Já vou levar as coisas. Podem ir saindo.

Eu e Bárbara saímos da loja, estupefatas. Era MUITA grana, se ela gastava sem preocupação nenhuma. Ou será que ela ia começar o negócio mais cedo do que a mãe pretendia? Era muita coisa pra minha cabeça.

Olhei para Bárbara. Ela parecia afundada em pensamentos, e me lembrei do sonho. Eu tinha que falar, eu prometera para as duas.

− Aqui! – Emily passou a “bolsa” de papelão para mim, com minhas roupas dentro, e fez o mesmo com Barbie. – Vamos, temos que comprar sapatos e fazer o cabelo ainda! Ou quem sabe a gente faça amanhã, ou depois de amanhã... É, eu posso fazer uma reserva em um cabelereiro maravilhoso...

− Emily Cooper! – Aumentei a voz. – Quanto você tem de herança, pra gastar assim?

− Uns... Quinhentos, setecentos mil...

Engasguei. Sério. Quando ouvi a quantia, eu engasguei e comecei a tossir, o que demorou um tempo pra passar.

− Mulher, tudo isso? Mas é muito!

− Quem disse que isso é minha herança? Isso é a poupança, gente.

Meu pai.

Como que uma mulher ganha tanto dinheiro só vendendo joias? Ou ela multiplica, ou ela vendia drogas, porque, né...

− Ah, mudando de assunto, e seu sonho, Ally?

Suspirei. Não daria para escapar, então contei o sonho com todos os detalhes, menos a parte dos olhos dela serem do Capitão, enquanto íamos para a sorveteria. Quando acabei, Emily suspirou:

− Pobrezinha! Até uma garotinha?

− Eles não tem limite. E ela era bem parecida com você... Mas você não tem nenhum corte no queixo. – Bárbara observou.

− Verdade − Resignei-me. – Talvez o pai dela tivesse...

− E quem será? – Emily questionou com uma expressão safadinha.

− Eu lá que sei? Acho que nem filha minha de verdade ela era. – Dei uma lambida no sorvete de chocolate que eu pedira pra mim. – Ou quem sabe ela tenha puxado do tio.

− Por falar nisso, como você vai chegar até ele? – A oriental me questionou, e eu baixei a voz para que os transeuntes não ouvissem:

− Tenho muitas ideias... E eu vou querer a ajuda de vocês.

− Yes! – Emily tapou a boca após seu “grito” de comemoração. Mais baixinho, ela perguntou: − No que ajudamos, milady? – Emy perguntou.

− Bárbara, se não te incomodar, amanhã de noite quero ver se acha alguém parecido comigo. Mas vou tentar achar uma foto dele pra te ajudar. – Acrescentei, já que o capitão também tinha várias características iguais a mim. – Emily, você pode alternar a vigia dele com a Barbie?

− Claro! Posso até ir junto com ela! – Emily estava radiante por ter sido incluída em meus planos, e Bárbara também, mas ela disfarçava melhor.

− Obrigada, meninas. Isso significa muito pra mim.

− Bom, digo o mesmo, até porque deixa claro que você não nos aban- Ai! Barbie! – Emily reclamou quando Bárbara a cutucou com força, interrompendo a frase, o que me fez rir.

− Antes que perguntem, eu vou ver se consigo rastrear o celular dele. Se conseguir, posso continuar com uma das minhas ideias... – Falei, meu estômago estava revirando de culpa por pensar em esconder o que eu realmente ia fazer para descobrir o número do meu irmão, mas a Bárbara me pegou de suspresa:

− Por que não pede o número dele pro Capitão? Você mesma disse que, se nós não o matássemos, poderíamos usá-lo ao nosso favor.

Espertinha.

− Ok, boa ideia. Obrigada. Vou fazer isso hoje.

− Hoje?

− De madrugada. – E até lá vou ter que superar minha neura, acrescentei mentalmente, e assim que terminamos de tomar os sorvetes, fomos comprar os sapatos, a comichão se agitando devagar e ansiosa sob minha pele.

Aí vinha...