Wesen Para Matar

A dor do passado no fim presente


O vento soprava forte em meus cabelos, balançando as mechas e soava de um jeito tranquilizante em meus ouvidos. Eram oito e meia da noite e estava chovendo de um jeito quase brutal, mas não me incomodava. Eu gostava da chuva. Eu podia ficar sozinha, a água era gostosa e simplesmente me tranquilizava.

− Ally, o que você tá fazendo aqui? – Perguntou Emily, gritando por causa da chuva.

Girei nos calcanhares para olhá-la. Ela já estava ensopada, o que indicava que ela estava me observando por mais tempo do que eu achava. Seu cabelo encaracolado estava molhado e semiliso, e seus olhos estavam alterados, vermelhos, pela tentativa de me focalizar no meio da chuva.

− Ficando sozinha, ou era o que eu achava. – Respondi, voltando a observar o mar perverso.

− Ally, é nossa última noite aqui. Venha logo. – Ela me chamou.

− Olha lá. – Apontei o que eu queria ver, lá longe, tipo, longe mesmo. Sem brincadeira, mas sendo Steinadler... – A Estátua da Liberdade.

Vi ela relaxar e ir ao meu lado, observando a coroa iluminada da estátua.

− No X-Men 2, eu acho, eles destroem parte dessa estátua. – Comentei. – Foi bacana o filme.

− Muito louco. E não foi no dois, foi no um. No dois, a Jean morre.

− Obrigada pela lembrança. Onde está a Barbie?

− Dormindo.

Ficamos quietas, sentindo a massagem pesada das gotas de chuva em nossa pele. Eu estava com um pouco de frio, mas não me importava. Era bom.

− Amanhã de manhã devemos chegar em Nova York. – Ela falou, tirando minha atenção da chuva e do mar ainda revolto.

Confirmei com a cabeça.

− Vou perguntar pro tio Andrew antes da gente dormir, só por garantia.

− O que vamos fazer depois disso? – Ela perguntou.

− Pegamos um hotel, pagamos uma noite, eu pesquiso mais sobre o acidente, porque eu já dei uma checada, vamos pra Rhinebeck e de lá continuamos até onde ele estará. Espero que nada nos atrapalhe. – Sussurrei.

− E depois?

− Hum? Eu...

− Estou falando da questão financeira. Acha que setecentos dólares vão dar? Acha que vamos conseguir seguir os passos dele com setecentos dólares? Tipo, é um bom dinheiro, mas acho que com ele nós não duramos um mês.

Não tinha pensado nisso, admito. E seria realmente um problema, afinal, nenhuma de nós aparentava idade adulta, ou pelo menos a nossa verdadeira idade. Como iríamos arrumar um emprego?

− Ai, droga... – Sussurrei, mas sendo ela como eu, ela pode ouvir.

− Como acha que vamos encontrar dinheiro? Não vai nascer em árvore, né? – Ela disse com uma voz de quem estava preocupada.

− Sei lá, Emy. Talvez a gente consiga em um emprego que seja administrado por Wesen, ou justifique com problemas genéticos... – Suspirei. – Mas vamos dar um jeito.

Ela balançou a cabeça, como se dissesse “ok”.

− Ei. – Chamei. – Obrigada.

− Pelo quê? – Emily me encarou.

− Por vir comigo. – Disse. – Você poderia ter voltado e procurado sua família. Bárbara poderia ter feito o mesmo. Vocês poderiam ter procurado uma vida melhor, mas não. Vieram comigo. Obrigada.

Ela sorriu, abaixando a cabeça e fazendo os cabelos molhados caírem em seu rosto, criando uma cortina negra e meio enrolada.

− De nada. – Ela respondeu e eu sorri. – Estou voltando pro quarto.

− Vá. Troque essas roupas, e pode fazer um favor?

Emily piscou, seu sinal de pergunta.

− Arrume nossas coisas, ok? Só até eu voltar.

− Pode deixar.

Ela se virou e foi para debaixo da parte em que ainda estava um pouco protegida da chuva, e foi caminhando sem pressa. Nosso quarto ficava um tanto longe de onde eu estava, a última porta antes de entrar no corredor para ir ao refeitório e a outra ala de quartos. Assim que ouvi o fechar da porta, contei trinta respirações e fui para o lado contrário, para onde ficava a cabine do capitão.

Tio Andrew tinha uma vida que se assemelhava, em partes, à minha. Ele vivia enterrado em seus afazeres, às vezes passando madrugadas inteiras em seu mundinho, coisa que eu também fazia. Acho que acabei pegando isso dele. E mesmo com as olheiras que denunciavam as noites em claro, ele (admito) era um homem muito bonito. Cabelos daquele famoso tom de areia, olhos claros (o problema dos olhos claros é que eles mudam de cor. Já vi os olhos do Tio Andrew azuis, cinza, verdes, até castanho. Não sei a cor verdadeira deles) e corpo não muito exagerado, mas ele é bonito.

Enfim, eu estava muito mais perto da cabine do capitão do que do meu quarto, então não demorei tanto quanto Emy para ir para nosso quarto. E lá estava ele, pilotando o barco, tranquilo. Eu sabia que ele já tinha me notado ali antes mesmo de eu chegar.

− Alicia. – Ele disse. – Se você veio perguntar em quanto tempo chegamos, só falta algumas horas. Acho que eu vou acordar suas amigas quando o barco parar.

Pelo amor dos irmãos Grimm! Esse cara ainda me mataria de susto com esses momentos em que ele sempre sabia o que eu ia fazer.

− Sou tão previsível assim, tio? – Perguntei, sorrindo. – Obrigada. Me sinto muito bem assim.

− Eu te conheço, pequena. Praticamente desde que nasceu. – Ele me olhou de esguelha, enquanto eu me balançava na ponta dos pés, um hábito de quando me sinto meio envergonhada. – Sei que quando faz isso, está com vergonha.

− Credo, tio. Pare com isso ou eu vou me sentir um livro aberto, pronta pra ler. − Abracei-o, tirando a atenção dele por alguns segundos, nos quais ele correspondeu ao abraço. Discretamente, deslizei algumas notas molhadas dentro do bolso dele. – Não me devolva.

− De jeito nenhum. Fique, sua mãe me mataria se soubesse que fiquei com seu dinheiro. – Ele tirou o dinheiro do bolso e me devolveu.

− Mamãe me mataria se eu ficasse com o dinheiro, tio.

− Seríamos dois mortos.

Eu ri.

− Pelo menos a metade. – Pedi, piscando várias vezes, inclinando a cabeça e fazendo biquinho. Eu sabia que, se eu fazia Tio And ter algum ponto fraco, era aquela carinha.

Ele parou para pensar, eu tinha certeza, porque toda vez que ele pensava sobre algo mordia os lábios de cima e de baixo, então franzia a testa de leve e mordia os lábios mais uma vez. Ele suspirou, dando-se por derrotado.

− Um quarto apenas, Alicia.

− Por cada uma de nós? – Tentei aumentar o preço e tive sucesso, pois ele balançou a cabeça em leve reprovação.

− Que seja. – Sua voz tinha um tom de riso, e enquanto o abraçava, ouvi ele dizer “incorrigível” pra mim. Peguei o dinheiro que enfiara no bolso, contando um quarto da passagem normal vezes três, o que dava mais ou menos 150 dólares. Era um bom desfalque e eu não me sentia bem, mas Tio Andrew nunca tiraria o dinheiro que ele sabia que eu iria precisar futuramente de mim. Suspirei.

− De nada, tio. – Dei uma risadinha e ele simplesmente acenou a cabeça. – Boa noite.

Ou não.

Saí da cabine e fechei a porta atrás de mim, sentindo o vento e a chuva açoitarem minha pele. Engoli em seco. O quentinho da cabine atrás de mim pareceu distante, como se fosse apenas um sonho.

Fui em direção ao meu quarto, com um pouco de frio, mas não como antes. Antes eu não ligava, gostava do vento; agora, depois de ter me aquecido e secado, mesmo que pouco, o frio parecia muito mais intenso, e estava forte a ponto de me fazer tremer. Apertei o passo para chegar mais rápido ao quarto que eu dividia com as meninas, e quando entrei lá, vi Bárbara e Emily sentadas na mesma cama, conversando com a mochila de Emy entre elas, aberta. Quando a porta se abriu, os olhinhos delas se voltaram para os meus.

− Acabou o banho? – Emily perguntou.

− Toma aí uma toalha. – Bárbara jogou minha toalha para mim, com a qual enxuguei os cabelos e as partes de meu corpo que estavam nuas (os braços e o busto). Sentei na minha cama, tirando as sandálias e abrindo a mochila, procurando por roupas secas.

− Vamos chegar de madrugada. – Falei. – Vou logo arrumar tudo pra gente. Já tenho uma ideia preconcebida do que nós vamos fazer quando pisarmos em Nova York.

− De nada.

Olhei para Bárbara. Ela e Emy sorriam.

− Pelo quê? – Perguntei, já imaginando a resposta.

− Por vir com você. É claro que viríamos com você. – Ela respondeu, seu típico olhar simpático e doce somado a voz calma denunciavam sua sinceridade.

− Fugimos juntas, vamos juntas até o fim. Eu soube que seria amiga de você quando vi as duas revirando os olhos pras ordens do pessoal. – Emily sorriu mais ainda com a lembrança.

− Eu tinha certeza que gostaria de vocês desde que vi a Ally apontando o dedo na cara do Skalengeck com que você estava brigando porque ele te chamou de estorvo, Emily... – Barbie suspirou.

− Acabei com a cara dele uns tempos depois . – Emy relembrou, sorrindo.

Era verdade. Aquelas duas estavam destinadas a serem minhas amigas desde quando bati meus olhos nelas, e quando abracei as duas com a garganta ardendo e dando um nó, revi toda a cena de quando comecei a falar com Emy e Barbie...

Era tarde, seis horas, quando comíamos depois do treino só pra ter algo na barriga e não desmaiarmos quando voltássemos à ativa. Eu estava saindo de meu quarto, pois tinha ido lá apenas para trocar de roupa. As minhas rasgaram durante o treino.

No caminho para o refeitório, ouvi uma voz levemente conhecida em um tom alto e de defesa, típico de briga. Era uma morena de cabelos longos, negros e cacheados, com belos olhos verdes e magra que dava inveja, mas não era um palitinho. Enfim, ela estava gritando com um Skalengeck, Gerard, não sabia por qual motivo, até entender.

−... Me acha um estorvo, Gerard? Então vai ter que engolir, porque foram vocês que me trouxeram até aqui! Eu pedi? Não! Agora aguenta! Eu poderia estar em Portland, na minha casinha, mas os seus chefões decidiram ferrar com a minha vida! O estorvo pra mim é você, que além de ser chato, fica chiando na minha orelha!

Balancei a cabeça e ouvi um gemido de dor, seguido de vários ofegos e suspiros de surpresa. Quando cheguei lá, Gerard tinha agarrado o pulso da garota e a puxava para cada vez mais perto dele, a voz dele cada vez mais rouca e ameaçadora. Decidi ajudar.

− Escuta aqui, grite comigo mais uma vez desse jeito e...

Puxei o ombro dele, fazendo-o se virar em minha direção. Gerard foi tão pego de surpresa que a outra pode puxar seu braço de volta e me encarou com um olhar de “tá doida”?

− E o quê, Skalengeck? Vai matá-la? Vai bater nela? Lembre-se de que ela é mil vezes melhor do que você... – Apontei o dedo no rosto dele. – E pode te quebrar no meio, afinal, vocês a fizeram assim! Você provocou, você recebeu, ação e reação. E se tocar mais um dedo nela, não será só ela quem vai te quebrar no meio, vai ser eu também. – As palavras saíam mais rápido de minha boca do que eu notava, e quando percebi, já tinha tomado o partido de alguém que nem conhecia. Mas eu simpatizava com ela.

Gerard tentou puxar meu braço, mas eu me transformei mais rápido e rugi, próximo a cara dele.

Some. – Falei com a voz alterada pela Woge, que logo acabava, e ele recuou. Olhou com fúria para nós e então se retirou. Virei para a garota. – Tudo bem?

− Tudo. – Ela suspirou, olhando para as costas do Skalengeck, e depois voltou seu olhar para mim. – Por que fez isso? Nem nos conhecemos.

− Já estava na hora de alguém gritar com ele, quis tomar parte. E, sinceramente, não gostei de vê-lo indo pra cima de você. Ele nunca teve algum direito e precisava escutar algumas verdades. – Justifiquei, dando de ombros. Ela sorriu com simpatia para mim.

− Emily Cooper. – Emily esticou a mão para me cumprimentar, e eu retribuí. – Muito obrigada.

− Não há de quê. Alicia Burkhardt. – Respondi, sorrindo de volta e apertando a mão dela.

Fomos lado a lado pegar nossa comida, e procuramos uma mesa. A única disponível que parecera um tanto amigável era uma em que uma garota um pouco baixinha de cabelos negros e lisos estava comendo sozinha. Emily se aproximou dela primeiro, mas eu perguntei.

− Podemos sentar aqui? – Perguntei para a morena, que tinha traços um pouco orientais no rosto. Ela sorriu e respondeu baixinho “podem”. – Oi.

− Oi. Gostei do que fizeram ali. – Ela disse, o rosto baixo e o cabelo amarrado para trás, de modo que não caísse na comida.

− Obrigada. Sou Emily. – Emy se apresentou.

− Bárbara. – Ela sorriu timidamente para Emily. – E o seu? – Ela olhou para mim.

− Alicia.

Começamos a conversar sobre o que tínhamos feito, a impressão que causara e a vida que tínhamos antes de sermos levadas para lá. Acabou que nos aproximamos mais rápido do que pensei, e com certeza, aquelas seriam minhas amigas.

Separei-me do abraço delas e percebi que tinha ficado ali, segurando-as por mais tempo que o normal. As duas me olharam estranho.

− Desculpa. Estava tendo um flashback. – Expliquei, rindo pelo nariz e dando de ombros.

− Ah – As duas disseram juntas, se entreolhando. – Vista uma roupa seca – Disse Emily.

Foi aí que reparei. Nenhuma das duas estava usando uma camisola ou um pijama. Emy e Barbie usavam roupas de sair, roupas que combinavam com elas e que com certeza eram para andar em Nova York, principalmente com o clima frio de inverno pelo qual passávamos.

− Que roupas são essas? Não vamos sair agora. – Falei.

− Nos adiantamos. – Bárbara explicou. – Sabe como é, aí não vamos ficar com pressa na hora em que formos sair.

− Yeah, girl. – Emily respondeu e me estendeu um conjunto bem dobrado das minhas roupas. Eram roupas, definitivamente, para sair em Nova York. Em cima da pilha estavam deitadas um par de botas pretas repletas de spikes na parte de trás. Sorri.

− Obrigada. – Peguei as roupas, a toalha e fui para dentro do banheiro me trocar. Tirei todas as peças que vestia, desdobrei as roupas e as vesti com calma, aproveitando para relaxar, me aquecer nas roupas e pensar um pouco mais.

Eu sabia mesmo o que ia fazer? Ideia eu tinha, mas não sabia se daria certo. E não tinha certeza de incluir as meninas naquilo. Mesmo as duas tendo dito que tinham vindo comigo de bom grado, mas eu ainda sentia que, trazendo-as comigo, eu estava destruindo a vida delas, a vida que elas poderiam ter construído longe dali. Emily poderia ter voltado para Portland, ela tinha uma casa no nome dela desde que descobriu que sua mãe, uma designer de jóias, morrera. Ela ainda tinha aquela casa, só precisava apresentar a identidade (sim, ela tinha, Bárbara tinha, mas eu não, nem certidão de nascimento) e recuperá-la. Bárbara poderia ter ido para New Hampshire, Veneza, Los Angeles ou algum lugar assim (ela sempre quis ir pra esses lugares), arrumado um emprego e comprado uma casa. As duas poderiam ter encontrado uma nova vida, um amor, quem sabe algum Wesen ou algo do gênero, mas não. Estavam ali, viajando comigo em busca de um Grimm que pode ser como os que nos trouxeram má fama, que pode nos matar na primeira chance e que era meu irmão. Nenhuma das duas tinha muito a ganhar com aquilo, e lá estavam elas, em um beliche, numa suíte de um barco, viajando com uma garota abandonada pela mãe.

Eu tinha muita sorte de ter aquelas duas como amigas.

Terminei de me trocar, ajeitei o cabelo como pude e saí do banheiro com as botas na mão. As duas tinham terminado de arrumar tudo e verificado se nada estava ficando pra trás. Bárbara, silenciosamente, me estendera a pequena faca que ganhei de minha mãe, junto com o estojo em que a mantinha guardada e que podia ser preso na cintura. Assenti com a cabeça, agradecendo, enquanto enfiava o estojo na parte de dentro do cós da calça. A faca e seu estojinho eram tão pequenos que não incomodavam quase nada. Peguei a mochila, tirando-a de cima da minha cama, e me deitei. Emily subiu na cama de cima do beliche e Bárbara deitou na de baixo. Estiquei o braço e desliguei a luz.

− Bom soninho – Disse às duas.

− Boa noite – Elas responderam, e pude ouvir suas respirações se relaxarem, ficando serenas, depois de pouco tempo.

Under the burning sun, I take a look around... Imagine if this all came down…

Adormeci.

*

Era cinco horas da madrugada quando acordamos com o som do barco parando. (Sério.) Pisquei, acendi a luz e esfreguei os olhos para espantar o sono. Emily demorou um pouco mais para acordar, e Bárbara já colocava as sapatilhas e penteava rapidamente o cabelo.

Vesti os sapatos com destreza, observando Emy despertar. Ela ficava fora do ar sempre que acordava, mas era só passar alguns minutos e pronto, ela voltava ao normal.

− Acorda, Emy. Temos que sair daqui. – Joguei minha mochila nas costas e a cutuquei. Ela resmungou, coçando o olhinho fechado como uma criança e bocejando.

− Eu odeio que me cutuquem... – Ela replicou.

− Se eu não te cutucar, a gente vai ficar aqui – Abri a porta para Barbie sair e olhei para Emy. – Se apresse, por favor! Estou com um pressentimento ruim...

− Upa. – Ela pulou, colocou os sapatos e amarrou frouxamente o cabelo com uma liga. Ela saiu do quarto e fechou a porta.

− Simplesmente vamos? – Bárbara me perguntou.

− Sim. Já paguei o que devia, vamos logo.

− Sabe o que eu acho? Seu tio deveria pegar umas férias. Ele não vive trancado nesse barco, né?

Eu deveria ter escutado Emily. Ter ido ver Andrew, conversar, pedir que ficasse um pouco, se pudesse afrouxar a agenda. Caso eu tivesse feito aquilo, teria sido um pesar a menos, um fardo a menos para ser carregado.

Caminhamos até a proa do barco, observando para ver quantas pessoas saiam. Como (quase) todas tinham ido para a parte de baixo assim que nos aproximamos, e percebemos que era uma boa multidão. O plano era sairmos disfarçadas, misturadas, como sempre fazíamos. Era um costume nosso, uma prevenção.

Descemos as escadas às pressas, como se notássemos que o barco tinha parado apenas naquele momento, e nos entranhamos na multidão.

Já tínhamos descido e chegado ao cais quando meus nervos me alertaram de que algo estava errado. No início era só uma comichão danada que escorregava pelos meu sistema nervoso, mas quanto mais eu me afastava do barco com as outras e mais as pessoas se dispersavam, mais aquela sensação aumentava e se concentrava no meu estômago, fazendo-o revirar. Estremeci e as duas me olharam.

− Frio? – Bárbara me perguntou.

− Não – Olhei para trás e para os lados antes de continuar, mas mesmo não tendo ninguém que prestasse atenção em nós, baixei a voz. – Eu sinto... Como se algo ruim fosse acontecer. Estou nervosa.

− Acalme-se. – Emily foi para trás de mim e começou a massagear meu ombros, empurrando-me para frente ao mesmo tempo. – Já chegamos em NY. O que poderia acontecer?

Mamãe costumava dizer que a língua tinha mais poder do que apenas produzir sons. Ela não costumava dizer aquilo no sentido de dizer que toda nossa vida ou algum momento dela poderia mudar por causa de uma frase; esse “provérbio” dela tinha mais o sentido de dizer que devíamos cuidar do que dizemos, porque podemos magoar as pessoas a nossa volta. Mas naquele momento, o primeiro sentido era mais aplicável, e sem perceber, comecei a recitar a frase, aumentando a voz gradualmente.

− A língua tem mais poder do que só produzir sons, palavras... A língua tem mais poder do que só produzir sons... – A medida que ia falando aquilo, tentando relaxar, mais eu só ficava cada vez mais nervosa. Até que nós escutamos.

O som de um disparo. Uma arma com silenciador, mas nós pudemos ouvir. (Olha aí a influência de Mehinstinkte, olha.)

Não parei para pensar. Tirei a mochila das costas e a joguei para Emily, acenando para as duas continuarem.

− Fiquem aí! – Instruí, mas mesmo assim elas fizeram menção de me seguir. – Desculpem, meninas... Mas é uma ordem. Vão embora!

Corri em direção ao barco, seguindo o lugar de onde eu sentia o cheiro de sangue que emanava do segundo andar do barco. Quando caiu a ficha, travei.

O cheiro vinha da cabine do capitão.

Alguns funcionários estavam ali, e quem me reconheceu avisou o resto para se afastar. Ao ver o corpo em volta do qual eles se amontoavam, o chão girou, e eu corri para ter certeza de quem era, embora gritasse comigo mesma para que não fosse verdade.

Tio Andrew estava morto; uma bala estava alojada em sua têmpora, o chão estava ensopado de sangue e ele estava virado para baixo até eu virar seu corpo. (Tomei o cuidado de evitar a poça.)

Meus olhos transbordaram lágrimas de gosto salgado, que me pareceu o gosto da morte. A única pessoa com quem eu podia falar, em quem eu confiava, que não era Emy e Barbie, estava morta. Minha cabeça encostou no peito dele, a camisa molhando com meu choro. Virei e encarei os contratados dele, imaginando para onde iriam.

− Nenhum de vocês... – A frase morreu em minha garganta.

− Desculpe, Alicia. – Disse Alexander, um amigo dele e pessoa em quem ele confiava. Tinha perdido a conta de quantas vezes eu o chamara de Alex, e ouvi suas histórias impressionantes. Eu tinha certeza que, se Andrew tinha deixado o barco para alguém, tinha sido ele. – O tiro o matou na hora.

Abaixei os olhos para os de meu tio. O azul do momento, que já fora tão vivo, estava frio. Morto.

Fechei os olhos e deixei minha tristeza transbordar pelos olhos. Alexander me deu uns tapinhas no ombro, dizendo “sinto muito” e levando o restante para fora, para me deixar sozinha; então eu pude chorar.

Anos e anos de lágrimas reprimidas escorreram naqueles poucos instantes. Meu choro copioso encharcou a camisa e as lágrimas que não foram absorvidas caíram no chão e se misturaram ao sangue. Depois de uns poucos minutos, ouvi passos se aproximando e um cheiro repugnante e característico.

Hasslichen.

Dois ou três, se o meu nariz entupido (o qual limpei às pressas para poder distinguir o cheiro) não estava me enganando. Seus passos estranhamente leves se aproximavam cada vez mais, até que pararam perto da porta.

Er starb versucht Sie zu schützen. – (Ele morreu pra tentar te proteger.)

− Als Hässlich raum, ich bezweifle es.(Sendo um Hasslich que fala, eu duvido.) Eu realmente duvidava que ele tivesse morrido por vontade própria. Minha opinião? Eles o mataram para me atrair.

Enxuguei as lágrimas e me virei para encarar seus rostos. Em woge, como eu presumia pelo som da voz.

– Jetzt werden Sie. – (Agora será você.)

Balancei a cabeça em negativa.

Nein, ich denke du wirst... Danke. – (Não, acho que serão vocês... Obrigada.) Meu rosto “woged” de raiva, sem necessidade de eu me concentrar para me transformar. Voei na garganta do primeiro, afundando os dentes pontiagudos (cortesia do Mauvais Dents) e rasgando um pedaço de sua jugular. Tomei o cuidado de ficar longe dos jorros, e peguei a arma que estava em sua cintura, presa em um coldre, empurrando o corpo para longe. Outro Ceifador veio por trás, com um alfanje e pronto para decepar minha cabeça, mas eu me virei, agachei e dei um tiro eu sua barriga. Mirei para cima e acertei seu queixo, fazendo-o cair para trás e largar sua foice (ou alfanje, mas pra mim não tem muita diferença). Peguei o alfanje, aquela arma maldita, e com um golpe certeiro decepei a cabeça do terceiro, que vinha pela esquerda, e possuía outro alfanje. A cabeça voou e caiu na água; o corpo ficou por ali mesmo.

Ofeguei. Eu tinha matado três Ceifadores no automático, na fúria, simplesmente para vingar meu tio. Recolhi o cabo da foice e girei a lâmina, lendo a inscrição ensanguentada nela que me fez ter raiva e calafrios.

Vernichter der Grimm”.

Ceifadores dos Grimm.

Ai, que maravilha.