Wesen Para Matar

A Cidade que Nunca Dorme


Eu estava arrasada, abalada e com raiva. Três Ceifadores foram enviados para me matar, provavelmente vieram comigo no barco, mas não era uma questão muito plausível, afinal: se tinham vindo comigo, por que não me mataram antes?

Enfim. E os malditos ainda mataram meu tio para me atrair.

Suspirei. Eu ainda estava furiosa e triste. Muito triste. Era como se alguém tivesse arrancado o chão dos meus pés. Eu estava tonta, cansada e acabada, e com enjoo. Acabou que eu fiquei por ali, chorando.

Quando Alex apareceu, ele trazia Emy e Barbie consigo, que ofegaram de surpresa ao ver a cena em que eu me encontrava. Claro. Quatro corpos sangrentos, um deles sem a cabeça, e eu, ali, ajoelhada e chorando no meio da carnificina. (Eu não tinha dito pra elas ficarem lá?)

As duas foram até mim e me puxaram levemente pelos braços, me consolando, enxugando minhas lágrimas e me levando para o banheiro para eu limpar o rosto. Ouvi Bárbara perguntar o que seria feito dos corpos, e entre suspiros, ouvi Alex responder que eles dariam um jeito.

− Calma, mana, relaxa. – Emily disse, abrindo a porta do banheiro.

Ela estava praticamente me carregando, já que eu não encontrava forças para andar sozinha. Minhas pernas estavam bambas e eu estava quase escorregando dos braços dela, e estava cheia de ódio. Como, em um momento, eu poderia ser tão forte e no outro seguinte tão fraca? Aquilo me enraivecia, mas também me deixava pior do que eu já estava.

Emily me “puxou” até a pia, mas quando fiquei de frente para esta, meu estômago decidiu botar pra fora tudo o que eu tinha comido. Não sei porquê, mas eu estava tão mal que talvez meu corpo tenha decidido que era melhor não ter nada na barriga. Inclinei-me contra a pia fria e deixei que tudo voltasse. A primeira foi a pior, o resto só vinha porque meu estômago embrulhava de nojo. Emily ficou afagando meu cabelo, minhas costas, sussurrando que eu devia me acalmar, que tudo, tudinho ficaria bem.

Que ia ficar, ia. Mas naquela época eu não tinha tanta certeza disso.

Depois que não tinha mais nada pra vomitar (e-c-a), enxaguei a boca e me olhei no espelho.

Minha definição: tudo bem, nada seria tão horrível quanto minha cara naquele momento. Meus olhos estavam inchados, vermelhos e horríveis. Meu cabelo, pelo fato de eu tê-lo bagunçado tantas vezes durante meu choro, estava horrível, cheio de nós e até estava em pé em algumas partes, fazendo parecer que eu tinha levado um choque. Meu rosto estava vermelho e com alguns respingos de sangue, algumas partes com hematomas de meus próprios apertos e da força que eu fazia, esfregando os olhos. Eu tremia e meus lábios estavam inchados e machucados, das frequências com que os mordia. Em suma: Eu estava medonha.

Emily (não sei como) trouxera uma escova consigo, e começou a pentear meus cabelos, arrastando um banquinho que estava ali não sei pra quê e me fazendo sentar nele. Ela dizia coisas doces pra mim, me acalmando. Bárbara apareceu de repente e pegou um lencinho de uma caixa de lenços umedecidos (como essas duas conseguem arranjar esses troços de repente? Que Deus as abençoe, essas lindas) e começou a limpar delicadamente meu rosto, tirando os respingos vermelhinhos e enxugando minhas lágrimas e dando uma limpadinha geral na minha cara. Ela me deu outros dois lencinhos para que eu assoasse o nariz (escorrendo, infelizmente) e ajudou Emy a me arrumar antes de sairmos dali. As duas continuaram a me dizer coisas boas, trocando de postos a cada minuto, fazendo massagem em meus ombros para que eu pudesse relaxar, penteando meus cabelos e limpando meu rosto amassado. Eu não merecia amigas tão boas.

− Eu e os funcionários do barco nos livramos dos corpos – Explicou Barbie com sua voz doce, que fazia parecer que ela estava descrevendo a aparência de um poodle. (Eu amo poodles!) – Eles vão se livrar definitivamente quando saírem daqui, assim não vão nos dar problemas.

− Valeu, Barbie – Emily agradeceu e puxou Bárbara pela gola, sussurrando algo em seu ouvido, ao que a garota dos olhinhos lindamente puxados balançou a cabeça afirmativamente. Eu não gostei daquilo. Desde pequena odiava quando alguém falava algo no ouvido de outra pessoa me excluindo totalmente, principalmente se a pessoa ficava olhando pra minha cara com jeito de besta. Isso pode parecer egoísta ou interesseiro ou algo do gênero, eu também acho, mas eu não consigo evitar. Parece que não confiam em mim.

Assim que acabaram de me ajeitar, as duas me ajudaram a levantar e Emily foi correndo pegar uma garrafinha de água no frigobar que ficava na cabine do capitão. Ela me deu a garrafinha e eu bebi a metade de uma vez, recuperando um pouco as energias. Funguei e encarei as duas.

− Quando chegaram aqui no barco? – Tomei um susto com minha própria voz. Sério! Aquele som de taquara rachada deixava claro que eu não fizera nada mais após a luta a não ser chorar que nem bezerro abandonado (é mais drástico que “desmamado” e combina mais comigo).

− Acho que alguns momentos depois de você começar a chorar. – Barbie respondeu, prestativa como sempre. – A gente sabia que você não queria que nós viéssemos aqui, então fomos guardar nossas coisas, ou seja, fizemos uma reserva em um hotel que fica mais ou menos aqui perto. Então voltamos pra ver se você já tinha voltado, mas eu e ela sentimos cheiro de sangue no ar e não te vimos, aí corremos pra cá e quando chegamos no cais vimos uma cabeça flutuando na água, daí a conclusão de que a coisa tinha sido séria. Subimos e encontramos o Alexander, que nos mostrou onde você tava. – Ela concluiu.

− Ok, Barbie, só queria saber quando chegaram – Falei, engolindo mais um pouco e observando o sol que nascia pela porta aberta. – Vamos embora.

Saímos quietas do barco, demos tchau para Alexander e eu até me ofereci para limpar o sangue, mas ele me despachou (da maneira carinhosa) e disse que eu deveria descansar.

Descemos mais uma vez do barco, Emy e Barbie me olhando de esguelha para ver se eu não estava prestes a desmaiar ou cair no choro. Mantive-me firme o caminho inteiro, mesmo que minhas mãos tremessem levemente e algumas horas a garganta desse aquele nó e ardesse, um indício de que o choro queria voltar. Naquelas horas eu respirava fundo e dizia a mim mesma para me controlar, já que chorar mais não o traria de volta. Mesmo assim, eu estava no fundo do poço. Não via como eu podia continuar a procurar meu irmão, fraca e abalada da maneira que estava.

Depois de muito tempo, pelo que me pareceu, e um longo trajeto, (e fica a pergunta: COMO elas conseguiram ir até lá e voltar em um espaço de tempo tão curto, como o tempo em que descobri a morte do Tio Andrew, chorei, lutei e chorei de novo? Pra mim, o que aconteceu não foi lá tão demorado.) chegamos ao hotel, o porteiro acenou para Barbie, ela retribuiu e continuamos normalmente antes de entrarmos no elevador. Estranhei.

− Ele não me estranhou... – Falei, estranhando, mas feliz.

− Eu disse que ainda viria uma amiga minha. – Falou Emily.

Continuamos a subir dentro do elevador calmamente. Nenhuma das duas queria dizer nada, até hoje eu acho que era em uma espécie de luto compartilhado. Quando chegamos no andar do quarto, que não era muito em cima nem muito embaixo, continuamos em silêncio, este que foi quebrado apenas quando entramos no quarto.

− Olha, essa foi a que deu. – Disse Bárbara.

− Uou.

E era “uou” mesmo. Mesmo que fosse simples, era grande, chique e requintado, o tipo de decoração que eu escolheria para minha casa. A pintura das paredes era vermelha e creme, duas vermelhas, duas creme, formando uma cruz se você ligasse as paredes de cor igual. Havia três camas de solteiro na mesma parede (vermelha, pra quem quis saber), pela qual você entrava no quarto, e mais acima delas tinha um ar-condicionado. Na outra, uma tevê, embaixo dela uma estante. Na que ficava próxima à porta, o armário e uma porta para o banheiro. Na última, uma porta dupla de vidro que dava pra uma sacada.

Muito bom.

Na cama do meio, estava minha mochila. Tirei os sapatos, deixei-os no canto perto à porta, tirei a jaqueta, pendurei no cabideiro e fui me deitar. Assim, vestida, normalzinho. Eu estava tão cansada que não liguei.

− Tchau. – Falei pras duas, que sorriram ao ver meu rosto sonolento. Não sei porquê, até que eu tinha dormido bem. – Boa manhãzinha.

− Tchau. – Elas acenaram bobamente pra mim, como se estivessem se despedindo. Virei para o lado e adormeci rapidamente.

*

Quando acordei, estava com a mente tão bagunçada que demorou alguns minutos para voltar ao normal e me lembrar do que tinha acontecido na madrugada (finalmente entendi o que Emily sentia quando acordava). Quando lembrei, virei para o lado, sentindo o estômago embolar e se encolher dentro de mim (ou foi o que pareceu). Quis chorar de novo. Jogar tudo pro alto e ficar ali, me enrolando em um luto eterno, depressiva, mas eu não podia.

Eu tinha uma promessa a cumprir e duas amigas com quem ficar. Eu as “arrastei” até aquele ponto, e não iria deixá-las. Eu precisava ser forte.

Parei de me repreender mentalmente e foquei minha cabeça em escutar a conversa que ocorria na sacada. Eu sei que é feio, mas enquanto me “autoralhava” eu tinha escutado meu nome e a curiosidade veio.

− Deve ter sido demais, Barbie. Imagina, ela sai do barco com ele completamente normal, sem sinal de perigo, depois escuta um tiro, volta e vê que o tio morreu para protegê-la e acabou sendo usado como isca. Eu ficaria, no mínimo, uma fera.

− Considerando que é você, eu não duvido. – Bárbara riu. – E eu entendo, deve ter sido horrível. Eu também perderia as estribeiras, poxa, você via como a Alicia falava dele. Andrew era quase como um herói pra ela...

− Era como se ele fosse tio de verdade. Se ela não me dissesse que era de consideração eu nem desconfiaria. Tipo, ela parecia tê-lo como um pai, não só tio. Concordo com você, e mesmo que ela não concorde, acho que é o melhor.

− Viu? Eu tenho as melhores ideias.

Ouvi Emily dar uma risadinha e socar de leve o ombro de Bárbara, que riu junto. As duas ficaram paradas por alguns segundos e Emily falou:

− Mesmo assim, o dinheiro me preocupa. Ficar aqui por mais tempo do que devemos vai sugar nossas reservas...

Não acredito.

Elas queriam ficar mais tempo em Nova York.

− Emy, relaxa. É só mais alguns dias. Só até...

Me sentei na cama. Eu não podia deixar.

− Não!

As duas deram um pulo e me olharam.

− Alicia, você estava escutando minha conversa?

− Não vem ao caso. – Levantei e fui abalada por uma tontura estranha; meus olhos embaçaram, mas não se encheram de lágrimas; era como se tivessem ligado várias luzes fortes em meu rosto. Senti elas correrem para meu lado e me segurarem; mas algumas piscadas espantaram a sensação ruim. – Eu tô bem.

− Não se faça de forte. – Bárbara e Emily falaram juntas, o que soou estranho. Quase achei que elas tinham treinado aquilo. (Na verdade, acho até hoje, por mais que elas neguem...) – Senta, vai.

− Não precisa, eu tô bem. – Repeti, mas teria dado mais resultado se eu falasse com uma estátua.

− Nem vem! Ontem você vomitou tudo o que comeu e chegou aqui sem nem comer um chocolate ou coisa do gênero. Tem que comer. – Emily tirou um chocolate (EBA) de cima de um criado-mudo ali perto e me entregou. Olhei pro pedaço marrom doce sem vontade nenhuma de comer.

− Alicia, o chocolate não vai te morder, você é que vai morder ele. – Bárbara brincou. – Por favor. Come um pouquinho, magrinha do jeito que é, tem que comer pelo menos um pouquinho. Nem que seja uma pontinha. – Ela inclinou a cabeça, arregalou um pouco os olhos e piscou várias vezes. Reconheci o truque; eu que tinha “ensinado” as duas como fazer. (De tanto eu usar elas acabaram aprendendo) Era o que chamamos de Puppy Eyes.

− Nem vem com essa cara. Eu sou imune. – Falei e ela suspirou. – Mas pedindo com esse jeitinho, como posso dizer não? – Mordi o chocolate com vontade e as duas pularam das camas e fizeram um high-five que me fez rir. Subiram nos colchões e começaram a brincar de Adoleta enquanto pulavam. À distância mesmo.

Quando elas terminaram, eu ria tanto que quase engasguei com o chocolate.

− Suas más! Querem me matar do coração! – Eu disse entre risos. Bárbara me pegou pelos ombros, fazendo-me sentar de novo.

Com aqueles poucos segundos, elas conseguiram levar tudo embora. A dor... O sofrimento, o pesar, a saudade. Eu só conseguia rir. E precisava agradecer a quem fosse por ter colocado garotas tão incríveis na minha vida. Eram como minhas irmãs.

Depois de me recuperar, tirei minha mochila de baixo da cama enquanto comia mais um chocolate. Já eram dez e catorze, tomei um susto com o horário. Minha cara deve ter ficado tão hilária que as duas começaram a rir também.

Esperei as duas melhorarem para começar a explicar o que eu tinha intenção de fazer, mas Emy se adiantou:

− Quais são os planos, general? – Ela brincou.

− Bom... Eu só tenho um esboço. – Confessei. – Dei uma hackeada em alguns sites semi-aleatórios, polícia, governo, enfim. Busquei pelo nome da minha tia, Marie Kessler, e... – Mostrei meu notebook pra elas, com uma cópia da página em que estava o obituário de minha tia. – Morreu.

− Sua tia morreu? – Bárbara perguntou, um tom devastado na voz.

− É... – Falei, meio sem jeito. Não queria pensar em mais mortes do que aquela. – Enfim, se ela já morreu, meu irmão agora já tem os poderes, a vidência, como eu chamo. E já está em posse da chave.

− Então nossa vida foi adiantada! Se ele já sabe da chave, então... É só encontrá-lo! – Emily falou empolgada.

− Pensei o mesmo, até porque ele mora em um lugar que nos ajudou demais... – Disse, com um tom leve e de brincadeira. – Pesquisei a ficha dele e encontrei vários registros de um tal de Detetive Burkhardt, adivinhem aonde?

Emily e Bárbara pararam para pensar, mas eu as cortei.

− Emily, você conhece uma cidade chamada Portland? – Virei o notebook pra ela mais uma vez, mostrando um mapa com foco em Portland. Ela ofegou.

− Deus! Ele mora na Cidade Das Rosas?*

− Mora. Por isso eu disse que facilitou nossa vida.

− Isso é a sorte batendo na nossa porta! – Bárbara riu de felicidade e caiu de joelhos no chão. – A vida foi boa comigo!

− Bom, desculpe estragar sua vida, Boneca* amada, mas... Nova York não é exatamente vizinha de Portland. – Disse Emily com simplicidade, o que fez Bárbara a olhar com um ódio fingido.

− Sua vaquinha.

− E pior que ela está certa. – Falei, decepcionada com os resultados de passagens aéreas que apareceram em minha tela. − Nós três de avião para Portland, na US Airways, fazendo duas escalas, daria 974 euros e dez centavos, ou um décimo de euro, é assim que chama? – Perguntei. – Esse foi o preço mais barato.

− Tira da primeira classe, pô. – Emily tentou amenizar a tensão no ar, mas eu senti o leve desespero em sua voz.

Suspirei.

− Não tá na primeira classe. Isso é a econômica.

− Econômico só no nome, né? – Bárbara reclamou. Ela não é disso, mas com um preço desses... – Isso são 1271 dólares! Nem vendendo droga a gente consegue esse dinheiro!

− Calma, Barbie... – Falei e vi ela respirar fundo. – A gente dá um jeito.

− Sim, nós damos... Eu espero. – Ela falou a última parte baixinho.

− Vamos ter que atravessar os Estados Unidos inteiro... Como vamos dar jeito?

− Nós atravessamos um oceano! – Aumentei levemente meu tom de voz. Vê-las desesperançosas daquele jeito me doeu o coração. – Com ajuda, claro, mas nós vamos conseguir fazer isso. Nem que seja clandestinamente. – Suspirei. – Eu quero continuar. Eu não vou desistir. Não agora que chegamos tão longe. – Estendi a mão direita. – Quem está comigo?

Emily e Bárbara me olharam com um brilho de confiança nos olhos. Elas me tratavam como uma líder às vezes, porque eu era a única que tinha um propósito ali, que saíra decidida com um plano, e eu as adorava por elas terem me seguido. Eu seria sempre agradecida, e ontem (quer dizer, hoje) elas fizeram tanto por mim, como sempre fizeram, e estava na hora de retribuir.

Fiz as duas sentarem lado a lado, e peguei duas escovas e a barra de chocolate. Dei um pedaço para cada uma e soltei seus cabelos. Penteava ora os cabelos de Emily, ora os de Bárbara, cada uma com sua escova. Eu dizia a elas que tudo ficaria bem, que nós conseguiríamos, que seríamos fortes. As duas relaxavam gradativamente, dividindo o chocolate. Quando terminei, peguei um ombro de cada uma e apertei.

− Eu daria minha vida pra gente conseguir. – Sorri. – Nada vai me parar, muito menos parar vocês, se depender de mim.

As duas sorriram enormemente e me abraçaram com tanta força que eu duvidei se parte delas não era Konichlange. (Fiz uma notinha mental para me lembrar de perguntar depois) Elas riram de alegria e me abraçaram ainda mais forte.

− Nós te amamos! – Elas deram mais uma risada e me soltaram. Eu ri. Elas pareciam gêmeas, e admito que eu me sentia um pouco excluída, mas mesmo assim ficava feliz por elas. O bom é que elas achavam que nós éramos trigêmeas de alma, então isso fazia eu me sentir melhor... Um pouco. Só peço que não me ache egoísta. É que parecia que elas me deixavam de lado, e eu tinha medo de perdê-las. Esse é um defeito meu. Sou ciumenta por medo de perder alguém especial pra mim; eu tento controlar, mas às vezes escapa.

− Eu sei... Também amo vocês. – Sorri. – Acho que podemos dar uma voltinha, porque eu tô querendo botar o pé na estrada no máximo amanhã.

− Yay! Vamos na Times Square! – Bárbara pulou sentada na cama, como se quicasse, e eu ri.

− Emily, quanto você pagou aqui?

− 150 por hoje.

− Credo. – Engoli em seco. – Vem, garotas, vamos andar um pouco.

*

Aproveitamos bastante tudo que pudemos de Nova York, a Cidade Que Nunca Dorme, indo a pé. Sendo Mehisntinkte, você tem fibras de ferro, ou seja, quase não nos cansamos. E é como eu digo, “eu corro por pedregulho com salto 10, que é que não posso fazer?” Então andamos por onde pudemos.

As lojas são... Uau. Nós quase tivemos um ataque. Ficamos paquerando e mandando beijos para as roupas, sapatos, bolsas e joias por um bom tempo. Perto das três, fomos tomar um sorvete em um parque que não ficava muito longe e tinha uma sorveteria lá. (Uns trocados por sorvete não iriam fazer muita falta, é um luxo que nós não abrimos mão) Depois voltamos a andar, embasbacadas pelo movimento. Ficamos naquele lenga-lenga até as seis, quando começamos a voltar para o hotel. E aí sim Nova York começou a provar o porquê de ser “The City That Never Sleeps”. Sim, às seis o movimento não tinha diminuído nadinha, eu tinha a impressão que a hora do rush tinha sido estendida apenas para nós.

Às oito, pude ver algo que nunca tiraria da cabeça. O céu negro estava em completo contraste com as luzes coloridas dos painéis, com as luzes vermelhas dos carros, com todas as luzes incríveis de Nova York. Aquilo era a magia de um mundo tecnológico, uma beleza artificial que poderia competir muito bem com as maravilhas naturais do planeta Terra. (Eu achei.) Nós vimos aquilo se estender por quase até as nove, quando saímos de onde estávamos sentadas e voltamos para casa, acompanhadas daquela imagem incrível.

E haja café! Já eram dez e meia e eu ainda via movimento. Nós já tínhamos tomado banho e trocado de roupa, prontas para sair dali e continuar nosso percurso até Portland. Mesmo que a falta de transporte me incomodasse, mas eu daria meu jeito. O nosso jeito.

Bárbara se debruçou uma última vez na sacada, olhando a Estátua da Liberdade e o legado da cidade insone, absorvendo aquilo ao máximo.

− Alicia. – Ela me chamou, e (não que eu goste da comparação) fui até ela como um cãozinho obediente. – Essa história me preocupa. Como iremos chegar até Portland sem carro, sem dinheiro o suficiente, sem nada que nos garanta?

− Bárbara. – Senti as lágrimas a beira dos olhos. Eu ainda via o porto em que havíamos desembarcado, onde eu vivi toda a cena da morte de Tio Andrew. Ele teria confiado em mim. Ele saberia o que fazer. – Eu não sei. Mas eu quero continuar, do jeito que me der na telha. Do jeito que eu precisar. Dinheiro a gente tem, e se tem uma coisa que eu sempre ouvi do Andrew, era “Se o mundo precisa de algo, é da dedicação de quem vive nele”. Eu tenho dedicação o suficiente pra continuar. – Meus lábios tremiam de me lembrar do Tio Andrew, e meu coração doía. Como eu podia ter passado o dia inteiro sem sequer me lembrar dele? Como eu podia ser tão ingrata a ponto de me esquecer dele? Eu era tão mal agradecida assim?

− Ally, shiih. – Barbie me abraçou como uma mãe abraça a filha de coração partido. – Nós vamos conseguir. É que eu estou preocupada. Eu tenho medo do que pode acontecer com a gente se ficarmos pra trás, se dermos um passo errado. Eu confio em você e também quero seguir em frente, mas estamos fazendo um jogo aqui, e os outros jogadores são a Verrat e quem manda é o mundo.

Concordei. Ela, infelizmente, não podia estar mais certa.

− Estamos vivendo a lei da selva, e quem sobreviver vai ter conseguido; quem não sobreviver, o mundo se encarregará de dominar e destruir. – Completei.

− Nunca vi vocês duas tão pessimistas. Se animem! Vamos dar um jeito. – Emily disse, aparecendo de repente, e nos abraçou e nós retribuímos. As duas estavam estranhas, pareciam ter trocado de personalidade. – Eu também estou com medo, mas precisamos ser fortes.

− Fugimos juntas, vamos juntas até o fim. – Relembrei.

As duas sorriram mais ainda, e nos soltamos. Nossas mochilas já estavam arrumadas, em cima da cama, e o quarto parecia intocado. Mas antes de eu entrar no espaço do quarto, senti um cheiro repugnante de carne crua ou algo parecido. Quando olhei para baixo da sacada, tinha duas motos ali.

− Qual de vocês sabe pilotar moto? – Perguntei. Eu tinha umas noções de como fazer.

Emily levantou a mão como se estivesse na sala de aula e eu a chamei para mostrar o que tínhamos lá embaixo.

− Temos que pegar aquelas motos rápido. – Relacionando as motos pretas e o cheiro, eu pude saber quem tinha chegado.

− Alguém da Verrat nos alcançou. – Ela adicionou, e eu concordei.

− Por isso temos de ser rápidas, temos que achar esses caras e pegar as chaves.

Pegamos nossas mochilas e armas e saímos. Pegamos o elevador e descemos, farejando todo lugar por onde passávamos, mas apenas ao chegar no saguão sentimos o mesmo cheiro repugnante.

− Com licença, alguém entrou aqui de roupas totalmente pretas? – Emily perguntou. Deu pra ver que o cara estranhou, mas mesmo assim respondeu:

− Eles acabaram de subir. Disseram procurar a senhorita.

Emily engoliu em seco e voltou para nós.

− E agora?

− Agora ou voltamos pro quarto ou esperamos eles voltarem.

− Eu volto. – Bárbara falou tirando a mochila das costas, mas eu a impedi.

− Não, eu vou. – Falei. – Bárbara, você pode ir com Emily assim que eu lhes jogar a chave. Eu sei como pilotar motos, não vai ser problema pra mim, eu quero que vocês saiam daqui o mais rápido possível. – Joguei minha mochila para Emy. – Por favor, leva pra mim.

Enquanto eu ia em direção às escadas (sim, escadas) para subir até o andar de nosso quarto e esperando que não fosse um tremendo fracasso, pude ouvir Bárbara dizer baixinho “Mas Alicia... Eu também daria minha vida por vocês...”.

Subi as escadas e me deparei com os três Hundjager, assim como eu suspeitava. Os três “wogaram” assim que reconheceram uma de suas vítimas.

− Obrigada por tornar isso tudo tão mais fácil! – A loira, que me esmagou contra a parede enquanto me enforcava, declarou com um sorriso que teria feito todos os Mehinstinktes machos do asilo babarem. No mesmo momento, fiz um sorrisinho cínico brotar em meu rosto e meus olhos mudarem sua cor.

− Mas eu não tornei nada mais fácil. – Estiquei meu braço direito com rapidez e agarrei seu ombro esquerdo, o oposto do braço com o qual ela me enforcava. Puxei o ombro da loira para a frente, o que fez com que ela se desequilibrasse. Ela foi jogada contra a parede e seu parceiro, um belo negro dos olhos (não sei o porquê) azuis me segurou por trás, imobilizando meus braços. Ele me estendeu acima do chão, e me sacudiu de um lado a outro como se eu fosse uma boneca, mas eu joguei minha cabeça para a frente e a forcei para trás, fazendo-o cair. A vaca loira estava confiante de que seu coleguinha daria conta de mim, mas quando me viu cair, avançou para mim. Dei um soco bonito na cara dela, fazendo-a voar pra trás.

Ela tentou se levantar, e deixei que ela tivesse um pouco de felicidade. Ela deu dois socos em meu rosto, mas antes que desse o terceiro, segurei seu pulso direito, em sequência, o esquerdo, e a empurrei com força o suficiente para que ela caísse no chão. Pisei com força na barriga dela, e o outro teria me agarrado naquele segundo, se eu não fosse mais esperta e girasse o corpo para o lado, aproveitando e, com um único floreio do braço, tirando a faca do coldre e espetando-a contra a coluna dorsal dele.

Ele caiu no chão, fazendo companhia à sua “coreguinha” (Emily vivia chamando a gente assim em nossos breves momentos de espairecer), mas antes que algum dos dois levantasse, desci a lâmina afiada em cima do átrio esquerdo de cada um. Aquilo, se não os matasse, os deixaria apagados por algum tempo.

Procurei as chaves em seus casacos, não tomando muito tempo para encontrá-las. O metal frio de cada uma delas me gelou as mãos de um jeitinho cálido, que me enviou uma breve onde de liberdade. Era a minha saída. Minha escapatória, por mais insana que fosse.

Quando voltei, percebi que Bárbara estava sentada em uma cadeira lendo um de seus livros, que tive a leve impressão de ser Marcada pela capa de beiras rosa choque. Quando olhei para onde estava Emily, percebi o motivo dela estar tão absorta nas palavras impressas nas páginas cor de marfim. Nossa Emy tinha embalado em uma bela conversa com o recepcionista, que exalava um cheiro estranho. Quando olhei para Bárbara, começou nossa conversa ocular com um olhar de dúvida meu sendo respondido por um olhar cúmplice/safadinho dela.

− Pode me explicar o por que desse saimento dela? – Perguntei, olhando os cachos negros de Emy sacudirem enquanto ela ria.

− Bom, ela viu que o cara tinha algo de estranho, porque você está usando essa blusinha vermelha − E, de fato, era uma blusa vermelha estilo top, toda solta, com outra blusa vermelha por baixo. − E ele evitava olhar pra você enquanto saia, então ela começou a pressioná-lo e ele acabou se mostrando um Wieder Blutbad, daí já viu. – Ela explicou rapidamente. – Acho que eles “clicaram”.*

− Pode ser, mas eu vou ter que ser estragra-prazeres... – Levantei da cadeira e andei de um jeitinho charmoso até os dois, e quando cheguei lá, pus a mão no ombro de Emily. – Oi, amiga! Já vi que conheceu um amigo... – Pisquei pra ele de um jeito que parecia dizer “Meus parabéns, colega”. – E sinto muitíssimo dizer, mas nós temos que ir! – Falei, terminando a frase com a voz mais fina e com um tom de desculpas. Quando olhei para Bárbara, ela parecia uma panela de pressão, de tanto que estava segurando o riso. Dei uma risadinha com ela. – Quem sabe vocês se esbarram por aí...

Bati no ombro dos dois e peguei minha mochila, jogando-a em minhas costas. Tive que fazer Bárbara sentar e dei uns tapinhas no rosto dela para ela se acalmar, como se estivesse quase desmaiando. Acabei rindo junto com ela enquanto os dois se despediam. Ouvi alguns trechinhos da conversa, os quais achei muito bonitos, mas passaria a amaldiçoar em um futuro distante, mas não tão distante assim...

− Olha, eu volto. Posso demorar, mas eu volto, tá?

− Eu vou esperar o quanto eu precisar, mas talvez eu decida ir atrás.

Ela pegou o número dele e ainda a ouvi prometer fazer uma ligação assim que pudesse. Quando ela foi até nós, eu e Bárbara já estávamos ajoelhadas no chão, nos apoiando uma na outra e (quase literalmente) chorando de rir.

− Já pararam? – Perguntou Emily irritada, o que não era um bom sinal. Emily podia ser um doce oitenta por cento do tempo, mas quando ficava irritada, era muito boa ideia sair de perto. Já vi ela quebrar a perna de uma mesa (e digo que não era fina, era bem grossa) com uma só mão, de tanto apertar. Acredite, você não deve nunca oferecer sua mão para ela segurar se Emily estiver estressada. Eu e Bárbara recuperamos gradativamente o controle. – Gostaram da comédia?

− A gente tava rindo da Ally... Ela foi muito bad bitch* lá atrás, honrando o título.

− Claro, querida! Que é que eu vou fazer? Por isso a Emy me deu esse colar... – Falei, segurando o pingente onde a palavra “Bitch” estava emoldurada por um retângulo de prata. Emily tem muitas joias, todas da mãe joalheira, e nos deu algumas em um de nossos aniversários, as quais ela nunca usava. Como eu mesma me denominei “Bad Bitch” depois de um tempo, por causa da maneira insolente e rebelde com que tratava os nossos “superiores” no asilo, Emily me deu a corrente com o pingente “Bitch”, assim minha marca estaria sempre comigo. A Bárbara, ela deu a pulseira com o símbolo do infinito, já que Bárbara era infinitamente sonhadora, e ela achava o símbolo do infinito algo lindo e a pulseira, romântica, aí Emy a deu a pulseira de pérolas rosadas. Ela fazia o favor de sempre nos emprestar alguns brincos sempre que pedíamos.

− Então vamos. Me dê a porcaria da chave. – Emily estendeu a mão para mim e eu, solenemente, lhe entreguei uma chave de uma das motos. Ela pegou A mochila e foi a passos largos até a porta. – Vamos, pô!

− Já tô indo, mãe! – Rimos mais ainda com essa brincadeira, mas pegamos nossas mochilas, as jogamos em nossas costas e fomos para as motos. Depois de trocar as chaves com Emily (elas estavam nas motos erradas), demos a partida, e demos início a nossa jornada.

Enquanto íamos embora, eu ia observando pela última vez as luzes daquela bela cidade, a Cidade Que Nunca Dorme, e pensei em tudo que ela me trouxera (dando a devida atenção ao trânsito, claro). A despedida de um ente querido e uma sensação de liberdade ao ver uma bela paisagem. A sensação de abandono e, depois, a de paz. A dor e o conforto.

Seriam aquelas sensações com as quais ficaria muito familiarizada com o tempo. Ao sair de Nova York, eu não tinha ideia do que esperar, mas outra frase de Tio Andrew veio à minha cabeça, e graças a Deus, não me trouxe lágrimas.

“Sempre haverá ventos fortes, e quando seu barco estiver prestes a cair, lembre-se que depois da tempestade, o mar ficará calmo...”.

E meu barco nem tinha chegado na tempestade ainda.