POV Narradora

O treino de Aria continuou intenso e exaustivo, mesmo que a garota não reclamasse disso. Todas as manhãs ela acompanhava o processo de produção das forjas, ficando apenas a observar para aprender o processo normal. Mas Eliot já notava que a pequena já entendia muito bem a maioria daqueles procedimentos. Após o almoço ela deveria estar, ou treinando seu cavalo ou estudando o livro dos Hawkey, além de estar estudando também os cadernos da mãe sobre plantas medicinais, venenos e antídotos.

Todas as tardes ela ia treinar com Eliot, onde ele entregava nas mãos dela armas de treino para que ela aprendesse as técnicas para utiliza-las; pouco tempo depois o Hawkey teve de começar a ceder a ela armas reais, visto que a garota começava a adquirir a força necessária para manejar as menores e mais leves. Contrapondo aos treinos de Aria, durante as manhãs Eliot treinava Rendon no manejo da espada, espada e escudo e lança; o príncipe não tinha talento nenhum para o arco e flecha diferente de Tommy que passou a treinar junto com Rendon sob o olhar critico e sério de Eliot.

Aria já começava a entender algumas das coisas escritas no livro dos Hawkeys, mas se mantinha em silencio assistindo aos Ferreiros Reais trabalhando. Enquanto isso sua cabeça já começava a trabalhar imaginando suas próprias armas, mesmo que ainda não conseguisse visualizar a forma com que faria cada uma delas. O chefe dos Ferreiros, Gordon, que era um homem grande, de barbas e cabelos negros e pele branca e avermelhada pelo calor das forjas, já tinha instruções de Eliot para ficar de olho na garota. Ele não se importava com ela ali, até já tinha reservada uma área de trabalho privada para quando ela pudesse usar; ele era inteligente e observador, e notava que a garota era assim também, o que fez com que ele e a grande maioria dos ferreiros de lá adquirissem certo apego e respeito por ela.

No geral Aria ainda não tinha treinos exaustivos. Eliot tentou manter e focar primeiro em ensinar a ela as técnicas de manuseio de cada arma possível. Aria era uma ouvinte atenta e quieta (no que diferia um pouco da mãe que sempre tinha uma expressão ou uma frase solta no meio das explicações de Eliot), entretanto a pequena tinha um foco completamente diferente das coisas que Eliot passava para ela. Não demorou muito para o velho Mestre Eliot perceber que todas as suas instruções nada mais eram do que informação a mais; já que Aria raramente seguia o que ele lhe dizia depois de aprender as técnicas gerais de cada arma.

Não que ela menosprezasse os ensinamentos do avô, ao contrário, ela os achava incrivelmente uteis, mas não para a forma dela lutar. Depois do incidente com os falcões Aria tinha passado a perceber (se fazer perceber na verdade) certos detalhes sobre as coisas. Quando enfrentou o falcão ela notou que, apesar de poder ver o que ele estava fazendo e poder tentar prever o que viria em seguida, parecia que isso não ajudava em nada a evitar. Era como tentar prever o imprevisível; isso porque para o falcão aquilo não era uma estratégia, era intuição, misturado a instinto e experiência.

No fim, ela só conseguiu vencer o animal selvagem quando passou a reagir também por intuição e instinto. E isso a deixou pensativa por todos os dias em que teve de ficar em repouso. Acabou que, com isso, ela tirou algumas conclusões sobre si mesma e sobre lutas no geral. Primeiro: as pessoas lutam com base em estratégias, seguindo movimentos pré-planejados, com reações já prontas para cada reação do adversário; algo que ela confirmou com certeza durante suas aulas com Eliot já que ele passava a ela técnicas de ataque e defesa de forma que ela usasse uma delas para cada tipo de situação. Segundo: ela não queria ser assim, porque sendo assim, no dia em que encontrasse alguém com mais conhecimento, ou com um raciocínio mais rápido, ela não seria capaz de vencer.

Aria entendeu algo sobre si mesma que a maioria das pessoas nunca sequer cogita existir em si e nos outros: ela entendeu que por melhor que seja sua técnica e o que você aprende, sempre pode haver alguém que aprendeu aquilo melhor ou estudou mais. Disso ela tirou que: o talento, o dom para a luta, não poderia advir apenas do que cada um aprendeu sobre. Deveria ser algo intrínseco, algo pertencente a cada pessoa, algo que já existe e só precisa ser identificado e trabalhado. E então ela concluiu que esse “algo” era o instinto, afinal, porque mais um animal, que não aprende nada com outro, pode ser melhor que um oponente na natureza?

Por isso, apesar de não contestar como havia dito não fazer, Aria não se apegava a nenhum dos ensinamentos de Eliot para si mesma. Apesar de sempre guarda-los na memória por saber que era daquela forma que os oponentes que viria a enfrentar reagiriam a ela. Quando notou o que estava acontecendo Eliot parou de tentar impor seus ensinamentos; ela os estava aprendendo, mas não os seguia e isso não alterava o fato de estar sempre melhorando.

–--X---

POV Tommy

Desde que me tornei aprendiz do Contador Real as coisas ficaram conturbadas para mim. Por enquanto eu era apenas aprendiz, mas notava que Crafes era um homem arrogante e insuportável. O filho dele não era menos que isso, ao contrário. Mas eu me mantive calmo, apesar de não poder ter acesso às contas do reino porque ele não permitia, eu podia notar que algo não estava certo, eram muitos segredos sendo ditos em cantos daquela biblioteca. Mas eu nada podia fazer e a Rainha Elizabeth entendia e me elogiava pela minha postura.

Ao mesmo tempo eu podia notar o crescimento de Aria. Diferente dela eu tinha algum tempo livre, geralmente para treinar meu arco e flecha, mas também para andar por ai; às vezes ia ver como ela estava e me surpreendia a cada dia que assistia algum dos treinos dela. Elizabeth estava com razão, já era hora de entregar a carta da mãe para ela. Claro que eu não ficava em cima da minha irmã o dia todo, então não tinha noção de como estavam realmente as coisas com ela. Mas aproveitava as nossas refeições, que sempre fazíamos juntos, para tentar descobrir algo.

Estávamos sentados almoçando; Rendon estava conosco hoje; eu e ele lado a lado e Aria no banco do outro lado da mesa. Estávamos nas cozinhas, mas não havia problema nenhum, estavam todos acostumados com o Príncipe comendo ali com a gente.

– E então, maninha. Como estão as coisas com o vovô? – perguntei comendo calmamente.

– Difíceis – ela disse suspirando – Às vezes acho que ele me subestima – ela diz calmamente – Ainda não começou o treino pesado e nem me deixa tentar forjar algo.

– Mas você ainda esta estudando o livro dos Hawkeys não está? – perguntou Rendon confuso – Como pode querer forjar? Só se for para forjar algo da forma comum.

– Rendon, sério que acha que eu ainda não terminei?? – ela pergunta com um sorriso de canto – Entendi grande parte há alguns meses. Semana passada eu terminei – ela fala pegando um pedaço de carne e entregando ao pequeno falcão que estava sobre a mesa entre ela e Rendon.

– Ok, por essa nem eu esperava – falei rindo – Já contou ao vovô?

– Não. Quero esperar um pouco ainda. Ele esta terminando de me passar o geral de algumas armas ainda. As mais pesadas que eu ainda sou obrigada a aprender com armas de madeira – ela reclama rolando os olhos.

– Você não aguentaria as de verdade – diz Rendon num tom provocativo.

– Você tem que aprender a ficar calado – ela rebate com um tom irritado, mas dava para ver nos olhos dela que no fundo estava achando a discussão divertida; ninguém entendia como esses dois conseguiam ser tão amigos e provocarem um ao outro tanto.

Eles continuaram com pequenas provocações enquanto ambos davam comida ao falcão que prestava atenção a ambos e eu me distrai olhando em volta. Até que meu olhar encontrou Celine. Ela trabalhava nas cozinhas desde que nós chegamos. Era alguns meses mais velha do que eu, já tinha completado 21 enquanto que eu ainda tinha só 20 anos. Tinha cabelos claros, loiros como os meus, mas num tom mais claro, e olhos azuis; um tom azul que podia ficar muito frio quando ela se irritava. Eu já tinha visto-a expulsar um rapaz que tentou algo com ela.

– Tommy, se olhar demais vai acabar babando – ouvi a voz da minha irmã e a encarei confuso – Correção – ela falou rindo da minha cara – Limpa o queixo que a baba já escorreu – ela disse rindo sendo acompanhada por Rendon.

Entendi a piada e não pude me impedir de ficar vermelho; abaixei o rosto tentando disfarçar o constrangimento.

– Está tudo bem Tommy – falou Rendon – Ela está bem longe, não vai notar sua cara vermelha como tomate.

– Que lindo os dois – falei irritado, mas ainda sentindo o rosto quente – Os dois tirando sarro da minha cara. Muito bonito. Vão cuidar do falcão de vocês e me deixem em paz – reclamei voltando a comer enquanto eles riam.

Algum tempo depois as risadas pararam e Aria respirou fundo antes de continuar a conversa.

– Porque não vai conversar com ela de uma vez heim? – ela me pergunta num tom bem humorado, mas ainda de um jeito sério – Você fica nisso de encarar a Celine de longe a meses. Vai logo falar com ela. E o nome da minha falcão é Key, poderia usar o nome dela sabe – ela completou com um sorriso.

Ignorei os comentários dela.

– Tommy – disse Rendon, já sem o tom de piada que Aria ainda tinha usado comigo – Ela tá certa. Você deveria tentar conversar com ela – ele disse me encarando com aquele olhar calmo de “eu sei das coisas”.

Encarei ele erguendo uma sobrancelha e com um olhar de “você não disse isso mesmo não é??”. Rendon era um dos únicos que não tinha direito nenhum de dizer coisas assim pra mim. Mas eu não disse nada, mesmo tendo percebido que ele entendeu meu olhar.

– Olha. Porque vocês dois não vão cuidar da vida de vocês e deixam que eu cuido da minha heim?? – falei com um suspiro.

Celine nunca iria querer nada comigo. Eu era só um rapaz de 20 anos, com cabelos loiros escuros que cortava bem curtos para parecerem mais escuros ainda e olhos castanhos sem graça. Eu não tinha músculos, não era grande nem alto, pelos céus eu tinha quase a mesma altura de Rendon que é quase 6 anos mais novo que eu!! (N/A: Rendon está agora com quase 15 anos e tem 170cm de altura; enquanto que o Tommy com 20 está com 175cm e ele não cresce mais não). Eu era magro, sem músculos grandes e chamativos, usava roupas mais largas que o normal e tinha a pele meio pálida por passar tanto tempo na biblioteca longe do sol. Mulher nenhuma iria querer algo comigo, pensei num suspiro.

Aria me encarava com aquela cara dela que dizia que estava me achando dramático. Eu nunca disse a ela sobre esses meus pensamentos sobre mim mesmo, mas parecia saber exatamente o que se passava pela minha cabeça. As vezes isso era irritante, mas ela sempre parecia saber....assim como nossa mãe.

Nossa mãe.....Aria parecia-se cada vez mais com ela, mas de um jeito que a cada dia se tornava mais diferente. E isso era muito confuso. Ela estava com quase 12 anos agora, completaria os 12 em menos de 3 meses, dois meses depois de Rendon fazer 15. Era bem menor que nós dois (N/A: Aria está agora com 150cm de altura), o cabelo castanho estava mais comprido e menos cuidado do que o normal estando agora sempre preso por um cordão preto. Ela continuava a se vestir como se fosse um rapaz, na verdade, ela usava roupas feitas para garotos no momento, uma calça de algodão grosso marrom escuro, uma camisa cinza de mangas curtas com a gola em “v” fechada pelos cordão e as botas de couro pretas.

Diriam ser um garoto se não fosse o cabelo e o rosto mais delicado. Se bem que até a expressão comum dela a tornava mais parecida com um garoto; cenho franzido, olhar gélido, postura rígida. Mas os olhos cinzas dela ainda tinham um jeito feminino, como os da nossa mãe. E, apesar de seus músculos estarem se desenvolvendo bem, seu corpo em si também já começava, lentamente, a sofrer as mudanças físicas da puberdade que se aproximava. Mas ainda eram coisas muito discretas que ela escondia com as roupas masculinas.

Claro que isso não fazia muita diferença para certa pessoa. Rendon já era apaixonado pela minha irmã a um bom tempo pelo que eu podia notar. Mas o rapaz parecia nem ter admitido e aceitado isso por ele mesmo. E como ela sempre o tratou como amigo/irmão ele parecia ter aceitado e se acomodado com isso. Não que eu possa dizer algo; estou apaixonado por uma garota e não tenho coragem nem de me aproximar. Ele ao menos era amigo da Aria; isso já era melhor do que a minha situação.

– Hey! Celine!! – chamou a voz da minha irmã me fazendo assustar e sair dos meus devaneios; a encarei com os olhos arregalados enquanto ela sorria descaradamente – Celine; pode trazer outro suco pra mim?? Se tiver outro claro – ela pediu com um sorriso gentil que raramente usava.

Eu podia sentir a presença de Celine atrás de mim, mais ao meu lado. Que Aria não faça nada; era o que eu estava implorando mentalmente.

– Claro Aria – ouvi a voz dela e dava para “ouvir” no tom de voz o sorriso que ela deve ter lançado à minha irmã – Eu já volto.

Celine tinha um tom de voz melodioso, era um tom gostoso de se ouvir, nem fino, nem grosso, era calmo e perfeito. Ela em si era perfeita, tinha um corpo bonito, seus pequenos, cabelos loiros claros cacheados e compridos, quase da minha altura, e com um sorriso lindo. E Aria estava me encarando com uma cara de riso contido que me fez notar que eu estava quase suspirando só por ter ouvido a voz dela perto de mim. Aquela pirralha estava pra aprontar alguma.

– Aqui Aria – disse Celine, se inclinando por sobre meu ombro para colocar outra jarra de suco no meio de nós três, ela estava cheirando a calda de morangos, deveria ter estado fazendo algum bolo.

– Obrigada – disse Aria sorrindo também.

– Querem mais alguma coisa? – ela perguntou parando ao meu lado fazendo todos nós encararmos ela – Príncipe Rendon? Tommy? Eu posso trazer o que quiserem – ela falou sorrindo e eu tive que me controlar para não suspirar.

– Não – disse Rendon calmamente – Obrigada Celine, mas eu não.

– Nem...nem eu. Obrigada – consegui dizer sem gaguejar pateticamente.

– Heim, Celine – disse Aria com um sorriso que eu notei ser divertido, ela ia aprontar – Você estava fazendo bolo de morango não é?? – ela pergunta e Celine concorda com um sorriso – Tommy adora bolo de morango, não é Tommy?

“Garotinha maquiavélica”, eu penso engolindo em seco e encarando minha comida.

– É...Sim, sim. É um dos meus preferidos – sou obrigado a concordar, até porque era mesmo.

– Que ótimo – diz Celine se sentando ao meu lado – Vai ficar pronto daqui a pouco. Se você quiser esperar eu te trago um pedaço – ela disse enquanto nos olhávamos, tinha um sorriso gentil que me fez sorrir bobamente de volta.

– Rend e eu vamos indo então – disse Aria se levantando rápido me fazendo encará-la de olhos arregalados enquanto ela bebia um copo inteiro de uma vez do suco que Celine tinha trazido – Temos muito o que fazer. Mas, fica com o Tommy aqui pra ele não ficar sozinho Celine. Enquanto ele espera o bolo – ela disse sorrindo e já colocando o braço para Key subir nele – Tchau pra vocês dois – ela disse saindo com Rendon acenando logo atrás dela.

Aquela baixinha iria me pagar por me colocar nessa situação constrangedora. Vou matar aquela pirralha.