‘’Os pés ligeiros de Aecanis saltaram de telhado em telhado.A noite estava alta,a lua era uma fatia prateada magra e carrancuda no céu vermelho,preto e esfumaçado. O Luz Da Meia-Noite que ainda nem era a luz da meia-noite corria com uma rapidez inumana.

Aecanis não tinha pai nem mãe,demônio algum tem.Desde que se entendia por gente sabia que se criou sozinho.Era um daemon tenebris o que significava que não devia nada a ninguém e,consequentemente,ninguém devia nada a ele.Já estava saindo com cuidado da infância mesmo faltasse muito para chegar realmente a fase adulta,talvez nem tivesse essa sorte.Poucos tinham.

Pulou do telhado e caiu de pé no chão.Olhou de relance para um caco de vidro que revelou sua imagem.Pequeno,magro,moreno e feroz.De olhos vermelhos como sangue fresco,pupilas horizontais felinas e chifres que brotavam do seu crânio.Umas coisas pequenas e nada pontudas.Asas escuras e maltratadas encolhiam-se em suas costas.

Um passo acima dos diabretes.Demônios infantis que nunca cresciam ou se tornavam adultos.Não era diabrete algum mas ainda era o que chamavam de ‘’filhotinho de demônio’’.

Escondeu-se em uma pedra irregular.Olhou para a entrada de uma caverna escura.A passagem para o Mundo Mortal.Ainda era novo demais para tentar se aventurar nele.Podia ser mais forte que um humano adulto,mais inteligente,mais rápido,só que lá fora haviam outros demônios.Eles matavam os de linhagem Tenebris,pois quando estes ficavam crescidos poucos eram páreos para sua força.

Tinha três décadas,e nunca havia saído do Inferno.

Inspirou suavemente o cheiro de enxofre e carne putrefata.Estava quente,como sempre.

Dizia-se que o inferno era o lugar dos demônios,porém não é bem assim.O inferno é inóspito para qualquer tipo de vida,o pobre garoto virava-se como podia.Vivia em um estado permanente de fome e sujeira,havia perdido a conta das vezes que se esgueirou secretamente entre as punições dos mortais para arrancar pedaços de seus membros e come-los ainda crus.Isso quando tinha sorte.

Mas quando envelhecesse,quando ficasse maior e mais forte...Sairia para o Mundo Mortal e iria viver por lá.Roubaria e mataria,mas viveria.

Então começou a ouvir vozes,caiu no chão e se encolheu contra a pedra.Não podia ser visto.Nunca.

—Não consegues!-Gritou uma voz imponente,cheia de ira-Então és uma incapaz!Ordeno-te que faças algo e que fazes?Que fazes?Voltas de mãos abanando e o rabo entre as pernas!

—Meu senhor!-A voz sedosa e quase ofídia de uma mulher soou-Pedistes que eu fizesse um trabalho que para mim não é possível!Terias mais sucesso em exigir que uma macieira produzisse uma cebola!

—Desculpas esfarrapadas!-Gritou mais uma vez,então parou,como se pensasse-Mas,hei de dar-te uma única chance de te redimes-te comigo.Que sugeres que eu faça?Quem enviarei para desencaminhar o amado de meu Pai?

- Marido meu e querido de meu coração-A voz da mulher era envolvente e se agarrava aos outros.Implorando para ser ouvida e obedecida-Mandai um de linhagem Tenebris,não são eles que reinam nas sombras e comandam a escuridão tais como amantes?Qualquer um deles pode enviar a mentes puras pensamentos tão terríveis e obscuros que deixariam até mesmo os piores daemons enrubescidos.

—A mulher é sábia-Concordou o homem em tom manso-E tem mel na língua além de veneno.

Já curioso,o pequeno menino olhou de esguelha para fora das limitações da pedra e viu um casal.

A mulher era uma loira de olhos azuis maldosos.Tinha traços finos e delicados.Mas eles transbordavam perversidade,o corpo era curvilíneo e sedutor,mas esbanjavam pecado.Aec reconhecia esse tipo de traço.Certamente era uma sucúbo,mesmo havendo uma certa dose de...antiguidade?Não,ela parecia apenas mais primordial do que todas as outras que ele já vira.

O homem era belo,de traços angulares e estranhamente andróginos.Sua pele era como o marfim,o cabelo negro tal qual carvão,chifres escuros e pontudos saíam de seu crânio e se encurvavam para trás,enrolanddo-se um pouco nas pontas.E os olhos...Olhos vermelhos-azulados.

De súbito,compreendeu quem era aquele.Só havia uma única pessoa em todo o inferno de olhos vermelhos-azulados.

Era o próprio Lúcifer.E a mulher decerto que seria a sua esposa...Lilithy.O casal infernal.

Engoliu em seco,pensando seriamente em de alguma forma escapulir dali correndo.Começou a afastar-se de gatinhas,voltando para as sombras.

Então uma mão envolveu-se,gélida,em seu pescoço e ele foi suspenso.

—Oras!-Uma voz levemente esganiçada soou-Havia um diabrete a escutar!

O casal virou-se,e observou-o.

—Mefisto-Lúcifer murmurou-Não tinha notado que estavas aí-Seu olhar se deteve em Aecanis,que contorcia-se,tentando se livrar inutilmente do aperto-Nem o garoto.

Menfisto sorriu seu sorriso mais rapino.Tinha cabelos tão negros que chegavam a ser azulados,tez morena e olhos âmbares com uma pupila menor do que o normal.

—Que hei de fazer com ele?-Indagou o demônio.

—Mate-o-Deu de ombros ao passo que sua mulher franziu as sobrancelhas.

—Solte-o-A Rainha Infernal ordenou-Existe algo de estranho nele.

—O que pode haver de estranho em um mísero diabretezinho?-Perguntou Lúcifer.

—Ele tem uma aura estranha-Repetiu a mulher-Solte-o!

—Obedeça minha esposa Mefistoales-O homem cruzou os braços e Mefisto pestanejou,atirando o garoto no chão.

—Qual é o seu nome?-Lilithy indagou,olhando-o nos olhos.

—Aecanis...-Respondeu de pronto,tossindo um pouco por causa do impacto contra o chão duro.

—És um diabrete?-Questionou a mulher.

—Não,senhora-Negou rapidamente-Sou um Tenebris.

O espanto que enevoou a expressão de Mefisto foi o mesmo que fez Lilithy sorrir.

****************

‘’Quero-o limpo!’’Bastou que isso fosse dito por Lúcifer e ao menos cinco criadas se engajaram com veemência no processo de banho de Aecanis.Deixaram-no quase em carne viva de tanto o esfregar,mas obtiveram sucesso na empreitada.No final de tudo estava cheirando a lavanda e mais limpo impossível.Vestiram-no com uma túnica negra e enviaram-no para a presença de Lúcifer e de sua real esposa.

—De fato,sem toda a sujeira-Começou o demônio-Não parece um diabrete,mas mesmo assim...

—Lúcifer!-A mulher exclamou,revoltada-Não sentes a aura do garoto?É fraca ainda,sua carne é jovem,mas definitivamente está aí!-Ela aproximou-se do jovem e puxou uma das asas extremamente negras de forma tão bruta que o menino guinchou-Olha para essas asas!São de penas!Penas!Negras como o breu!

O homem pousou a mão no queixo e o avaliou.Aecanis tentou ao máximo não aparentar que morria de medo.Sentir medo não era digno de um tenebris.

—De fato ele tem as cores certas-Assentiu suavemente-Mas você mesma pontuou,sua carne ainda está por demais tenra.Servirá?

A Serpente hesitou.

—Não sei-Confessou,então virou-se para Aecanis-Sabes usar teus dotes?

—Meus...dotes?-Estava consciente que todo daemon tinha alguns truques,no entanto nunca testou os seus.

—Sabes?!-Exigiu o Rei Infernal,impaciente.

—Sei!-Mentiu de imediato-Sim,eu sei.

—Ótimo-O homem sorriu de forma maldosa-Tenho um trabalho para vós...

—Que ganharei com isso?-Aecanis foi tomado por uma súbita onda de ousadia.Logo arrependendo-se disso,sabia muito bem que o homem a sua frente não era reconhecido pela bondade ou por ser compassivo.

A expressão de Lúcifer passou de perplexidade a ira em questão de segundos ao passo que Lilithy gargalhou.

—Oh,meu querido-Ela fungou,limpando as lágrimas de riso-O rapaz está certo,é um Tenebris.Não pode ser subjugado por ordem alguma.Nem mesmo sua.

—Que seja então-Lúcifer revirou os olhos macabros-Que queres filhotinho?

Então,pela primeira vez em três décadas,Aecanis sorriu.’’

****************

Aec acordou em seu quarto.Assustado por nada em particular e com uma dor terrível nas...asas?

Franziu as sobrancelhas e sentou-se na cama.Estirou as asas com cuidado,não lembrava-se de ter as aberto,detestava dormir por cima delas,por isso as mantinha bem guardadas dentro das costas.No entanto estavam ali,abertas.Suspirou e acariciou sua plumagem.

Se havia algo em si mesmo que gostava,seriam as asas.Não eram como as maioria dos demônios.Umas coisas coriáceas,rasgadas e meio deformadas,até hoje indagava-se como podia-se voar com um par daquilo.

Suas asas eram de penas negras como a própria escuridão. Eram grandes o suficiente para se arrastarem no chão e de seus carpos despontavam a extremidade afiada de ossos.Eram lindas,mas estavam terrivelmente doídas.

Então,lembrou-se da noite anterior.Não havia sido um sonho simplesmente porque demônios não sonhavam,então como havia ido parar no seu quarto?Levantou-se da sua cama e saiu do recinto,indo em direção a cozinha.Talvez um bom café preto o ajudasse a pensar melhor.

Chegando nela,estancou.

A ignis da noite anterior estava sentada em sua mesa,servindo-se de uma fatia generosa do bolo que comprara anteontem.A mulher sorriu a vê-lo.

—O que você está fazendo aqui?-Ele rosnou-E o que aconteceu ontem?

—Quem fica perto do fogo está fadado a se queimar-Seu tom foi monocórdio,seus olhos o fitaram sem realmente ver-Você queimou-se um tanto.

O homem engoliu em seco.Videns são seres estranhos e meio loucos.Não se pode esperar respostas diretas deles.

O Luz da Meia Noite suspirou e sentou-se na cadeira.Ele já era suficientemente problemático por si só,não precisava de um ser do fogo para terminar de complicar a situação.

—Ótimo-Fez um gesto de tédio com a mão,mais do que um pouco irritado-Falou que iria me ajudar...Caminus...Esse é seu nome,não é?Então ajude-me.Diga-me, o que eu tenho que saber?

—Mais do que gostaria de ouvir-Respondeu prontamente- És um tolinho,mas há beleza em sua tolice.Queres um anjo que não é mais que um demônio,crente que ele é como você. Só há um de você como só a um dele.

—Não tenho tempo ou disposição para ouvir tantos disparates!-Exclamou,sem entender sequer uma palavra- Quer me ajudar?Ajude-me! Onde ele está?

—Mas não querias ouvir o que tinha que saber?-Ela sorriu,mas sua expressão continuou a mesma- Vou ajuda-lo a encontrar seu anjo,guiarei seu caminho.Para ir em frente terá que voltar,para começar a enxergar terá que ficar cego e para entender...-Ela esquadrinhou os olhos,como se enxergasse algo pouco nítido que estava a centenas de quilômetros dali-Veremos.Levanta-te e vamos.

—Para onde?-Indagou,estava ficando cada vez mais confuso.

—Aecanis,você me ouviu,achou ter ouvido, no entanto não escutou nada-A mulher se levantou-Vamos ver o anjo que não é anjo nenhum.Vamos acha-lo e talvez,só talvez,você comece a escutar.Não espero que enxergue,mas seria bom se o fizesse também.

Esfregou as têmporas,nervoso.Deveria ir com ela?Certamente que não queria!

Mas era por Alecan...

Era por Alecan!

—Tens medo?Isso é bom-Ela assentiu como se concordasse com algo satisfatório-Talvez o ajude a escutar,Filho De Seis.

Uma onda de vertigem subiu pela espinha do moreno.Sua face perdeu completamente a cor.

—Como você sabe?-Sua voz era um chispado sem vida.

—Oh...-Ela suspirou,cansada-Estava indo realmente bem.Muito bem.Você leva jeito,no entanto vai demorar tanto quanto qualquer outro,Filho De Seis.

E pela primeira vez,os olhos de fogo da mulher o viram por um breve segundo.