Via Crucis
O Traidor.
‘’-Você não sabe como usar não é?-A garota indagou.Olhando para ele com os seus olhos dourados e oblíquos.
Era noite no Mundo Mortal.Ele tinha feito seu contrato.
Só tinha que fazer certo profeta se desencaminhar,plantar pensamentos ruins e só.O problema era que não sabia de fato fazê-lo.Tinham mandado uma garota com ele,pois ela sabia onde o homem estava e garantiria que Aecanis fizesse o serviço.
—Não precisa responder-Ela sorriu,malvada.Era ruiva como sangue coagulado e bela como só uma sucúbo pode ser-Você não é tão novo assim,mas nunca saiu do inferno,certo?
—Bem...-Murmurou suavemente,mais nervoso a cada momento.
—Você é um louco-Ela riu baixinho- Fez um pacto com o senhor do inferno,sabe disso?E não pode cumprir sua parte...Senhor Lúcifer detesta ser enganado.
—Não pode ser tão difícil assim!-Exclamou,entregando os pontos.A verdade era que estava com medo e ponto.
—Pobre rapaz,tão novo e tão acabado-A garota lambeu os lábios-Mas não tema,hei de ajuda-lo desta vez.Já deve ter despertado os dons,só terás de colocar maldade e escuridão nos pensamentos do homem.Você está certo,não é tão difícil e deve vir com ainda mais facilidade para você,é seu talento inato.
—Por quê?-Podia ser um pouco perdido quanto ao resto do mundo,mas sabia que raras eram as vezes que demônios ajudavam outros sem pensar em algo em troca.
—Pediste o que para o Rei?-Indagou-lhe.
—Que eu fosse um Príncipe-Confessou,nervoso.
—Então faço isso para que quando reinares,soberano,nas trevas lembre-se de mim-Respondeu,olhando-o nos olhos-Lembrarás de Sophyen e do dia que não morreu.E assim,por lembrares,eu reinarei tão soberana quanto ti.
Aecanis assentiu de forma apressada.
—Quem é o homem que desencaminharemos?-Perguntou ele.
—Chamam-no Judas Iscariotes –Esclareceu,então sorriu-Mas a partir de hoje,chamarão de Judas,o Traidor.’’
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Estavam no Plano Nulo. Era um lugar completamente neutro,como a Domus Tenebris,mas como ficava mais perto do céu do que do inferno,era mais angelical do que demoníaco.Lá,andavam anjos e demônios,no entanto,ninguém realmente gostava do local.
Diferentemente da Domus,havia qualquer coisa de estranha no local.Era desconfortável estar ali...Ninguém sabia realmente o porquê disso.
Era a mesma sensação de estar debaixo d’água,havia uma letargia nos movimentos,uma sensação de pressão nos ouvidos e no corpo.Sem falar que o local era de uma brancura enervante.
O céu era uma permanente coalhada de nuvens brancas,as palntas tinham a cor de plantas,mas eram esbranquiçadas.O solo em qual pisavam era de uma cor estranha de leite xucro. Aecanis não gostava da Domus,no entanto ali era mil vezes pior.
O moreno crispou os lábios,agoniado.Por que a ignis o trouxe até ali?
—Desconfortável?-A mulher o olhou.Olhos loucos.No entanto...No entanto...Perfeitamente sãos.
—É impossível não ficar desconfortável no Plano Nulo-Remexeu-se,inquieto.
—Eu tive um pai-Ela pronunciou,hesitante,como se ainda estivesse se acostumando ao som das suas palavras.Ela tinha qualquer coisa de estranho na voz.Um silvar agudo e gutural em todas as letras.Silvar? Não,estava mais para chiado.O chiado que o fogo faz ao se enredar me um pedaço de brasa-Falou que o desconforto mantém vivo.
Aecanis lembrou-se de sua infância perdida,do cheiro de carne e enxofre.Lembrou-se de esgueirar-se por qualquer fresta escura para se esconder.Lembrou-se que sempre tinha fome e que sempre estava sujo.O estado negligenciado o manteve alerta.Manteve-o vivo e respirando.Assentiu para a ignis,as palavras do pai dela tinham verdade.
—Teu anjo-Falou ela,de súbito-Está por aqui,além do Plano Nulo,um pouco além. Sabes o que há além do Plano Nulo?
—O Éden?-Respondeu,encolhendo as asas nas costas e franzindo o rosto para elas que se arrastavam,malcriadas,no chão.
—Pouco antes-Negou,balançando o cabelo em chamas.
Os olhos vermelhos de Aecanis arregalaram-se.
—O Jardim De Lilithy?-Indagou,incrédulo.Uriel havia colocado Alecan no Jardim?
—Não chamava-se assim antes-Os olhos desfocaram-se-Ela foi para lá e chorou,e sangrou,e amaldiçoou e tornou-se o que é.O que ela é, é mais do que seria e menos do que foi.Está lá. O anjo que não é anjo nenhum.
—Então vamos-Deu de ombros,começando a andar.A ignis também se pôs em movimento.
O silêncio pairou por um breve momento.Aecanis viu anjos brincarem uns com os outros,aos risos.Anjos novos.Viu os mais velhos o olharem com ódio e se afastarem até notarem a presença de Caminus e seus rostos estamparem um respeito relutante.Alguns demônios,estes muito jovens,sorriram para ele ou acenaram.Os mais velhos o olhavam,baixavam os olhos e afastavam-se.Sabiam que ele era pior do que qualquer demônio atreveu-se a ser
—Qual era o nome?-Perguntou,nervoso com os olhares lançados para si e pelo desconforto crescente do Plano Nulo-Do Jardim?Antes de Lilithy?
—Doce-Amargo-Respondeu-lhe- É onde as criaturas rejeitadas iam.Não podiam ficar no Éden,fugiam para o Jardim Doce-Amargo.É mais cruel que o Éden,porém mais real.A maioria das coisas cruéis são mais reais.
O homem assentiu.Ele era cruel e era real.
—Você não é mau-Caminus sentenciou,como se lesse seus pensamentos-Não de verdade...Nem de longe.
—Você sabe o que eu fiz?!-Ele engasgou-se com as palavras.
—Sei,mas isso não é maldade-A mulher sorriu,mas seus olhos apenas queimaram-Afinal,não há dia em que você não se arrependa,certo?
Aecanis desviou o olhar,fitando o chão pálido.
—Você não sabe nada sobre maldade-Sussurrou,crispando os lábios.
—E você?Sabe?-A mulher suspirou,em negação- Mas que posso fazer sobre isso?Que podia eu esperar?Você tem um coração defeituoso,não é de se surpreender que ele não saiba distinguir as coisas.
Aecanis engoliu a angústia,era um homem-feito.Um demônio.Um Tenebris.Não se magoava.
Mas aquilo havia doído.Para um coração defeituoso,aquele funcionava bastante bem no quesito de dor.
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