Anjos e demônios se odeiam.São inimigos mortais.Não devem nem sequer conhecer-se.

Ao menos essa é a teoria,a prática é diferente.Anjos podem conhecer demônios,podem ser amigos,podem até se amarem se forem discretos o suficiente.Há casos que até eles têm filhos.Os filhos são exilados,mestiços e odiados,mas existem.Afinal,eles podem.Hora ou outra via-se anjos perdendo asas por terem ido longe demais a favor de demônios ou daemons tendo os chifres arrancados.

Shophyen não estava brincando.Aecanis já tinha visto seu punhado de demônios amarrados ao chão,enrolados em grilhões,com Cães De Caça Infernais arrancando seus chifres com ferro em brasa.O processo envolvia dor,sangue e fogo.Os gritos dos desafortunados deixariam a mente de um humano em eterno desespero.Mas Aecanis não era um humano,por isso,limitava-se em agradecer por seu bom-senso de não sair por aí se arriscando por aqueles bastardinhos emplumados.Sabia quantos Cães estavam apenas esperando para os donos folgarem a coleira para saltarem em cima dele.

Assim,mesmo tendo seus contatos,não se arriscava.Era sensato.O inferno iria congelar antes dele perder os chifres por um anjinho imberbe.

Só que Alecan não era um anjinho imberbe.Alecan estava mais para um potro genioso que se debate contra as rédeas do que para um anjinho obediente.Era um daemon preso em um corpo de ângelus.Por isso que constantemente ele metia-se em confusões e Aecanis via-se fadado a tirá-lo das enrascadas.Lembrava-o tanto ele mesmo quando mais jovem!Se ele tivesse tido quem o tirasse de encrencas não seria o que havia se tornado.

Por vezes por um único fiapo de sorte,não perdeu a cabeça inteira ao invés de apenas os chifres.Demônios podem ser amigos de anjos,mas há um limite para o que se é permitido.Há sempre um limite para tudo.

No entanto,a verdade era que o Luz-Da-Meia-Noite não se importava.Por Alecan que era equivalente a cem mil dele,valia a pena se enroscar em correntes de ferro ou ter que se virar para fugir dos Cães De Caça.

E por isso que ele estava ali.Por isso que estava entrando no lugar que prometeu nunca mais pisar os pés.Por isso que quando o cheiro de enxofre invadiu suas narinas ele não fez careta.Por isso que estava na Domus Tenebris.Porque quando se tratava de Alecan,simplesmente valia a pena.

*******

A Domus era um terreno neutro,onde se encontravam anjos e demônios.Mas como ficava no mundo mortal,era mais demoníaco do que angelical.Era o lugar perfeito para ir se você precisava de informações sobre qualquer coisa que fosse suficientemente importante para causar o mínimo de rebuliço.O que era praticamente tudo.Todos os frequentadores da Domus eram incrivelmente mexeriqueiros.Quando se é imortal,as vezes não há muito mais o que se fazer do que alvejar a roupa alheia.

Aecanis odiava o lugar.Ali reinava seu passado como tirano soberano.Foi na Domus que a roda da sua vida girou.Foi na Domus que havia gargalhado,sorrido,chorado,encontrado e perdido,confiado e sido traído.Ele sabia que era covarde por odiar o local.

‘’Foge do passado como o diabo foge da cruz’’Quis sorrir para a ironia.Tinha gosto por ela.Que havia sido sua vida senão irônica?

Todavia,limitou-se a entrar no local.Havia mesas espalhadas pelo recinto,uma pista de dança,um bar e muitas pessoas.Demônios em forma livre,anjos com suas esplendorosas asas alvas.Sem brigas.No máximo,discussões acaloradas.

O clima era cheio de conversas.Confotável de um jeito quase vulgar.

Mas não tinha tempo para se importar com isso,não tinha tempo para se sentir confortável não importa quão vulgar isso fosse.Seguiu para o bar e sentou-se em uma cadeira de frente ao balcão.Uma linda negra veio o atender,sorrindo maliciosamente.

—Príncipe-Sorriu-lhe,fazendo uma mensura levemente zombeteira-É uma lenda por essas paragens. O que o senhor deseja?

—Um Oliver Martini-Pediu-lhe,olhando-a nos olhos- E uma conversa com você,Lilithy?

—Como me reconheceu?-A mulher suspirou,voltando a ser a bela loira Lilithy que era.

—Tenho dois olhos-Explicou-lhe-E um faro admirável também.

A rainha do inferno pegou a bebida do homem e serviu dois copos,sentando-se atrás do balcão.

—O que você quer?-Perguntou-lhe-Nunca mais andou por aqui,nunca mais andou por lugar algum,na verdade.Sei o quanto odeia a minha querida Domus Tenebris,então é uma surpresa.

—Também é uma surpresa vê-la aqui-Sorveu um gole da bebida,qual desceu queimando a garganta-A proprietária em pessoa.Achei que encontraria alguém em um naipe mais baixo.Murmur ou Mefisto,por exemplo.

—Com certeza pode os achar aqui também-A mulher virou uma boa parte do líquido na boca-Mas estou tirando umas férias de Lúcifer.Está insuportável.Mas não vou entendia-lo com minhas desavenças conjugais,uma vez que são tão frequentes.Diga-me o que traz um Príncipe aos meus reinos?

—Alecan-Respondeu-Quando,como e onde?

—Denovo?-Lilithy suspirou-Sinceramente,ainda vai morrer por causa do bastardinho,no entanto vou responder pois quero assistir a essa sua empreitada-O homem revirou os olhos e a mulher sorriu de forma maldosa-Eu sou tão demônio quanto meu marido caro Aec,posso brincar também.O arcanjinho se meteu em uma encrenca séria desta vez,com Uriel.Desafiou-o abertamente perante todos os anjos e querubins.Faz cerca de 3 ou 4 dias.Uriel o amarrou em algum lugar que não sei onde é,amarrou-o pelas asas e deixou-o lá.Dependuardo.Gritando e sentindo dor-Contou,atenta as feições belas e angulares do daemon-O que vai fazer agora,principezinho?

Perplexidade banhou a expressão de Alecan.Alec já havia contrariado várias ordens expressas,já fora contra seus superiores.Mas nunca contra alguém como Uriel.O Arcanjo Do Julgamento era um nível extremamente diferente.Se ele fazia,estava feito.

Nem queria pensar no que aconteceria a um demônio que desfizesse suas punições.Ele estava tão ferrado!

O sorriso da loura alargou-se.

—E agora Aec?-Perguntou suavemente.Quase escondendo a maldade em sua voz.Quase.

—Bem...-O moreno suspirou e esfregou as têmporas-Onde ele está amarrado?

—Você vai mesmo assim?!-A mulher riu-se-Bravo!Bravo!Se Lúcifer me amasse com o mesmo ardor que você tem por esse anjinho eu seria a mais feliz entre as demônios! Perdão daemon,eu não sei onde Uriel o dependurou.Ninguém sabe.Acho que era para ele não ter que lidar com benfeitores como você.

O demônio rosnou,expondo seu caninos pontiagudos e a mulher continuou a rir.Então silvou para ele.A língua ofídia dançou em seus lábios.

—Então meus negócios acabaram por aqui,Serpente-Pegou o copo ainda pela metade e o bebeu por inteiro,de uma vez só.

—Vá pela sombra Príncipe-A loira encheu seu copo e levantou-o,como se fizesse um brinde a sua insensatez.

Do lado de fora da Domus estava frio e já anoitecera há muito.O tempo passava de forma um tanto maluca dentro do local.O céu estava de um negro raivoso e o vento tinha cheiro de chuva.

O demônio estancou.E agora?

Que faria ele?Não sabia onde estava Alec.E mesmo se soubesse...Mesmo se soubesse teria coragem de ir?

Aecanis parecia feroz,parecia mortal,parecia a definição perfeita de demônio,mas no fundo? No fundo era um covarde.Ele não tinha coragem de ir contra Uriel.Ele fez o que fez antes,pois eram anjos fracos os que puniam Alec,criaturas tão medrosas quanto ele.Cegos pela obediência.

Uriel?Uriel era um Arcanjo da primeira geração.Um verdadeiro.Estava acima dele.E se não estivesse faltava pouco.E mesmo faltando pouco podia muito bem arrancar sua garganta e ninguém falaria que ele não tinha razão.

A chuva começou a cair,e ele continuou parado.Seu cabelo ficou ensopado tais como suas roupas.

Então ouviu passos,não era lá coisa estranha,não estava há muito mais de 7 metros da Domus.Então viu.E seus olhos quase saltaram das órbitas.

Era uma mulher.Tinha cabelos ruivos levemente encaracolados,as extremidades e pontas dele chamuscavam em fogo vivo,mas sem se desfazer.A pele era morena,mas havia certo brilho afogueado nela.Na pele não,dentro da pele.As íris de seus olhos eram fogo.Não detinham a cor do fogo,simplesmente o era.Dentro de seus olhos haviam labaredas em movimento.Chamas de uma lareira viva.Tudo nela parecia ser assim.Ela não parecia ter fogo,ela era o fogo.

Era uma ignis.Uma videns.

Eram raros esse tipo.Viam o futuro e o passado.Eram mais que demônios e do que anjos.

Aecanis em toda sua longa existência só havia visto desses uma única vez.E não foi um encontro especialmente bom.

A mulher começou a andar em sua direção,e mesmo estando muito frio,o Luz Da Meia-Noite sentiu-se como se estivesse respirando perto demais de uma fogueira.

E então ela estava em sua frente.

Não fosse a chuva constante o homem tinha certeza que já estaria empapado de suor.

A ignis o olhou nos olhos.Praeceu o ler com a mesma facilidade de alguém que lia um livro.Aecanis sentiu-se nu.Exposto.Minúsculo e impotente.

A ruiva de cabelos flamejantes sorriu então e envolveu-o em um abraço repentino,pousando a cabeça em seu peito.

Aecanis sentia seu coração bater de maneira dolorosa a cada banque sôfrego.Ouviu a pulsação alta nos ouvidos.Sentiu cheiro de alguma coisa queimando.

—Coitadinho...-Murmurou ela em um tom maternal-Seu coração está todo dilacerado e vejo que nem sequer teve a oportunidade de usa-lo. Um coração tão quebrado quanto esse não causa nada além de dor ao dono-Sua voz era doce e envolvente.Mas era quente.Tudo nela era quente-Mas não tema,vou ajuda-lo tão certo quanto meu nome é Caminus.

E Aecanis ofegou.Tudo estva terrivelmente cheio de calor agora.Cheio de fogo.Ele sentiu-se como se estivesse dentro de uma...

‘’Caminus que é fornalha’’

Então caiu na inconsciência.