– E a senhora sua mãe, não comparecerá? – Me perguntou, num tom de intimação.

– Ela não poderá vir hoje. Mas ela ligou mais cedo e conversou com um rapaz chamado Tony, que disse que não haveria problema em eu vir no lugar dela.

– Espero que ela saiba que terá de comparecer mais cedo ou mais tarde, ou será dada como foragida da polícia e como consequência pode pagar multa ou até mesmo ser presa até o fim do caso.

– Sim, ela sabe. O rapaz deixou bem claro, segundo ela, todas as consequências aí que o senhor disse – Arrumei meu cabelo.

– Estranho, ele não me disse nada. Porém, prossigamos. Ainda temos um caso para resolver, não é verdade?

Por mais que ele esboçasse um sorrisinho no canto da boca tentando ser simpático, de nada ele me parecia. Aquele era o mesmo sorriso que meu ex-namorado costumava fazer quando estava sem graça. Eu odiava aquilo. E olha essa barba. Se esse tal se Sr. Armstrong a tirasse, com certeza pareceria uns 10 anos mais novo, no mínimo.

– O senhor é casado, Sr. Armstrong? – perguntei.

– Sim, e muito bem – me cortou friamente, porém ainda ostentando aquele amarelo sorriso – entretanto, quem faz as perguntas aqui sou eu. E então, podemos começar?

“Claro seu grosso estúpido. Aposto que não é romântico com sua mulher, porque não sabe como tratar uma dama” – pensei, mas tudo o que meus lábios puseram para fora foi um: “tá”.

E falando em lábios, estou simplesmente arrasando nesse novo batom de cereja da MAC, importado direto do Canadá. Modelo limitado, porém dinheiro bem gasto.

– Como queira. – voltou a falar – Mas antes, por se tratar da resolução de um crime, assunto que cabe a polícia investigativa, preciso que prometa dizer somente a verdade e nada além desta. Caso contrário, punições serão impostas, uma vez que é um crime mentir para a justiça.

– Eu prometo – cruzei os dedos; não pelo motivo que você está pensando: é que meu novo anel Tiffany’s, imitação é claro, está um tanto apertado, e nem posso me dar ao luxo de reclamar ou deixar de usá-lo, com o trabalho que deu para consegui-lo.

– Pois bem, temos a informação de que na noite de quarta-feira passada, Clara, a vitima em questão, havia buscado abrigo em sua casa. Estou certo?

– Sim, ela ficou por lá. Dividimos o quarto.

– E por quanto tempo ela ficou em sua casa?

– Ah, não foi muito. Menos de dois dias. Ela chegou na noite de sexta aos berros e saiu no entardecer do sábado.

– Aos berros?

– É. Parece que ela brigou com o pai, sei lá – ajeitei o decote.

“Quantas perguntas, meu Deus. Será que ele acha que eu a matei?” – pensei comigo mesma.

– E você sabe o intento pelo qual eles brigaram?

– Intento? Tipo o quê?

– A razão. O porque dela ter ido para sua casa.

– Ah sim, o motivo. Não use palavras difíceis comigo, por favor. Não sou muito boa em ortografia.

Pude ouvir – e ver – o outro senhor, que fica digitando tudo o que eu digo, abandonando a velha máquina de escrever para bater na própria cara. Ele estava louco ou o quê? Mas realmente, esse trabalho parece ser bem estressante. Daria o braço a torcer se não fosse essa blusa linda.

– Mas eu já lhe disse senhor: porque ela brigou com o pai.

– Isso eu entendi – fez uma cara estranha – o que quero saber é o motivo deles terem brigado. Você sabe?

– Ah claro! Por que não me falou antes? Pra que complicar coisas tão simples? Só que eu não sei se posso te responder.

– Não se esqueça de que está dando um depoimento para a justiça. Omissões podem ser consideradas como confissão de cumplicidade para com o autor.

– De novo falando difícil! – parece que ele não me escuta: talvez devesse aparar esses pelos da orelha, que meu Deus, estão um nojo.

– Esqueça. Apenas me diga: por que não pode me contar?

– Por que é um SDMA.

– Sadomasoquismo!? – Quase deu um pulo da cadeira. Eu sabia: ele estava louco.

– Não seu bobinho, ‘segredo de melhores amigas’.

– Maneire na escolha de palavras ou posso condená-la por conduta indecorosa ou desacato a autoridade.

– Desculpe. Disse bobinho na melhor das intenções – me redimi.

Que horror! Já imaginou como seria viver na cadeia? Eu ainda sou menor de idade, ele não pode fazer isso. Como eu ia lavar meu cabelo? Na pia? Eca eca eca.

– Mas então você se considera, ou melhor, se considerava a melhor amiga da vítima?

– Pra falar a verdade até que não. Ela só tinha um amigo na escola, aquele garoto estranho, um tal de Samuel. Todo mundo zoava ele. Nem sei porque eles eram amigos. Mas sabe como são as mulheres, né. Se uma precisa da outra já é como se fossem irmãs.

– Fugindo um pouco do assunto... Então, você conhecia o Samuel, certo?

– Claro, ele era a maior graça. A piada da escola. Sempre com o mesmo casaco marrom de lã, e tinha um cabelo enorme também. Quase parecia uma garota se não fosse pela barba. Sem falar naquelas unhas que ele afiava: que coisa mais tenebrosa.

– Então não gostava dele?

– Nunca disse isso. Só acho que ele poderia se vestir melhor, sabe? Se fossemos amigos, daria umas dicas ótimas e aposto que conseguiria uma namorada.

– Tudo bem. Voltando então, eu sinto muito, mas se você não quiser acabar em um tribunal pelo juizado do menor, preciso que me confesse a razão pela qual Clara e seu pai brigaram.

Ele já sabia a razão. Dava pra ver em seus olhos. Conheço cada expressão corporal de um homem, e a dele nesse momento dizia: “eu só quero uma confirmação da causa, porque eu já a sei. Quero ver o quanto você sabe”.

– Olha, eu não queria fazer isso, mas tudo bem. Se for pra ajudar o senhor a resolver esse caso... – Abusei do charme: o clima naquela sala estava tenso demais, e meninas como eu não deveriam passar por isso.

– Prossiga.

– É que ela estava saindo com um cara a um bom tempo. E ele é mais velho e trabalha lá na nossa escola. Eu acabei descobrindo um dia quando os vi trocando olhares no corredor. Ela até tentou disfarçar, mas eu sou tipo uma expert quando o assunto se trata de relacionamentos amorosos. Eu mesma já tive vários: porque sou boa nisso.

Pude ouvir um risinho estridente do senhor que havia dado com a mão na própria cara. Que falta de cavalheirismo. E eu nem ao menos sabia o por que dele estar rindo. Espero que não seja de mim.

– Sr. Nielman, por favor. Contenha-se! – esbravejou o Sr. Armstrong – Trata-se de um caso muito sério.

– Tudo bem, perdoem-me pela indiscrição – se redimiu.

– Obrigada, o senhor sim é um cavalheiro – disse, pegando na mão senhor Armstrong, como um gesto de agradecimento. E tenho que confessar, pra um homem tão visivelmente rude, suas mãos eram notavelmente macias. Mas ele logo as tirou debaixo das minhas.

– E você sabia quem era esse rapaz com que ela mantinha um caso, segundo você? – corou.

– Claro! É o Dr. Benjamin Hopper. Ele é tipo um conselheiro lá da escola. Um homem adorável e super simpático. E é meu ex-padrasto também.

– E o envolvimento dela com um homem mais velho incomodava seu pai, certo?

– O meu pai? Não, ele já é falecido. Mas o Dr. Hopper sempre foi como um pai pra mim. Pelo menos nesses últimos anos.

– Eu quis dizer o pai da vítima.

– Sim. Resumindo, os pais dela brigaram e ela contou pro Dr. Hopper. Ele então foi tirar satisfação com o pai dela, como se pudesse, vejam só. Ao menos é um cavalheiro. – me perdi em minha própria fala – O pai dela expulsou o homem de lá com uma arma e quando a filha chegou, durante uma discussão, ela acabou revelando o envolvimento dos dois. O pai então a expulsou de casa e ela veio pra minha.

– E o que você achava do relacionamento deles? Afinal, ele era seu padrasto.

– Apesar de ter a desconfiança de que ele traía a minha mãe, eu não acredito nisso. Ele não é homem disso. E eu achava até muito daora, mas no dia em que ela foi parar na minha casa, em prantos, eu comecei a pensar que estava tudo indo rápido demais.

– Prossiga.

– Bem, resumindo a história, parece que os pais da Clara brigaram e ela quis se abrir com o Dr. Hopper, como psicólogo e não namorado. Mas ele resolveu se intrometer e tomar partido, e foi a casa deles para tirar satisfação. Eu pessoalmente achei isso puro cavalheirismo, porque homem tem que ser assim: machão, sabe? Defender a namorada sempre.

– Hmmm – murmurou como e não aprovasse o que eu acabara de dizer, mas mesmo assim continuei.

– O pai dela então expulsou o cara de lá com a arma e nisso a filha ligou. Ela costuma dar umas fugidas e parece que só a Clara sabe pra onde ela vai. Então ela busca a dona Lucy e a leva de volta para a clínica psiquiátrica onde trabalha. Falando nisso, minha mãe trabalha lá também. Mas voltando, o Dr. Hopper disse que foi a Clara que contou pra ele da briga, então quando a filha ligou ele contou a ela, achando que ele estava mentindo. Mas quando ela chegou em casa, acabou confessando que eles estavam juntos. E por isso o pai a expulsou.

– Você ainda não disse por que achava que eles estavam indo rápido demais.

– Ah, é porque depois de um tempo que ela chegou e se acalmou, resolveu ligar para o Dr. Hopper. Ela não sabia que eu escutei, ouvi “casualmente” atrás da porta, enquanto estava de passagem – fiz aspas com os dedos enquanto dizia casualmente – e eles estavam marcando de fugirem juntos no dia seguinte.

– Continue – fez uma cara de quem tivesse acabado de desvendar o mistério.

– E então eu estraguei tudo. Bem, não na realidade.

– Como assim?

– Eu esbarrei na porta quando ela terminou a ligação, e ficou bem óbvio que eu estava ouvindo. Mas ela nem brigou comigo. Tudo o que fez foi chorar novamente, e acabou me contando de seus planos. E bem, quando disse o que pensava ela não me deu a menor atenção. Ela já estava decidia a fugir. Não sei para aonde, ela não me contou, mas já havia tomado a decisão final.

– E você a deixou fugir no dia seguinte?

– Não exatamente.

– O que quer dizer com isso?

– Como eu não podia fazer nada, liguei para a única pessoa que poderia ajuda-la. Mudar sua ideia.

– Quem seria esse, ou essa?

– O seu melhor amigo oras, o Samuel.

O vi rabiscando alguma coisa numa folha de papel. Apesar de parecer de cabeça para baixo pra mim, dava pra ler que era algo envolvendo o Samuel. Acho que o suspeito havia mudado novamente, e graças a Deus não era eu.

– E então?

– Bem, eu disse para eles se encontrarem ainda de manhã, mas como ela é teimosa e ele sempre fez tudo o que ela quis: um pau-mandado mesmo, sabe? Desculpe a expressão. Eles foram se encontrar naquela noite mesmo. Ela, apesar de termos conversados tão poucas vezes, e mesmo sendo tão meiga, era muito cabeça-dura às vezes.

– Então ela saiu com o Samuel de noite, é isso?

– Sim. E por incrível que pareça, voltou toda sorridente e feliz. Como se nada tivesse acontecido. Como se tivesse achado o amor de sua vida.

– Você está insinuando que Samuel e Clara tinham...

– Não – o cortei – Mas alguma coisa aconteceu sim naquela noite. Todo mundo sabia que o Samuel só fazia tanta coisa para a Clara porque ele era todo apaixonadinho por ela. E bem, eu não sei o que ele disse ou fez depois, nem aonde se encontraram, mas ela voltou de lá totalmente mudada. Chegou e nem falou comigo. Deixou minha mãe super preocupada até. Ela foi direto ligar para o Dr. Hopper, e dessa vez não foi preciso nem ouvir escondido. Ela pôs o telefone no viva-voz e falou bem alto, já pra deixar claro mesmo.

– O que ela deixou claro?

– Que aquele seria o fim deles.

– Ela terminou com ele por telefone?

– Sim. Acho que ela preferiria ter uma conversa pessoalmente, mas estava tarde demais. E ela precisava desmarcar a fuga dos dois no dia seguinte, afinal.

– O dia do assassinato – disse em tom sério, e logo após fez uma longa pausa – e o que ele disse?

– Nada.

– Como assim nada?

– Ele não acreditou no que estava acontecendo. Típico caso de homem que não aceita que é corno. Tudo o que ele fez foi chorar. Não tentou conquistá-la de volta e nem tinha um pingo de raiva em sua voz. Só chorou e depois desligou o telefone.

– Mas ela não saiu de sua casa no dia seguinte?

– Sim. Ela disse que ia voltar para casa, mas ela nunca mais pisou lá.

– Como você sabe?

– Nós ligamos um tempo depois para saber se estava tudo bem, mas ela não havia chegado. Nem depois. Nem depois. Nem depois. Decidimos então procurá-la pela cidade, mas nunca mais vi a Clara.

– Senhor, preciso falar com o senhor urgentemente! – Entrou Tony na sala, sem bater, sem tocar, como se tivesse acabado de ver um fantasma.

– Vê se isso são maneiras Tony! Não vê que estou...

– O senhor não entendeu, você precisa vir comigo!

– Olha, depois eu vou Tony. E temos que conversar sobre esses modos.

– Senhor, me perdoe, mas o senhor precisa saber. Já que não quer ver ao menos ligue a televisão no canal 7.

Ele me olhou como uma cara de quem estivesse pedindo aprovação para ligar a TV, o que eu concedi, balançando a cabeça suavemente em forma de aprovação. Mas não aprovei o que ouvi na TV no instante seguinte. Acho que não houve uma pessoa naquela sala que não tivesse ficado com a boca aberta após a repórter, na frente de uma casa esfumaçada, dizer em alto e bom som:

“Estamos aqui de volta na casa na Segunda Avenida. A residência, que havia pegado fogo, teve as chamas contidas pelo os bombeiros, mas o incêndio deixou uma vitima. Beatrice Silver foi encontrada morta com queimaduras profundas, nesta que era a sua casa. A possibilidade do incêndio ter sido intencional repercute na vizinhança, uma vez em que sua filha, também falecida, Clara Silver, tem sido objeto de investigação por ser vitima de um assassinato. Mas, provas conclusas do real motivo do fogo só serão dadas no final da semana pelos bombeiros, com o resultado da perícia. O pai da vítima é apontado como principal culpado, além de um possível suspeito da morte da filha. Ele está foragido da polícia, mesmo tendo sido preso em Paris tentando fugir, e deportado de volta ontem pela manhã. Aqui é Emily Christie para o Jornal da Tarde, no canal Sete. É com você Matthew.”