– Você tem certeza de que dá conta? – me perguntou.

Claro que eu tinha certeza. Havia esperado por um momento desses toda a minha vida. Ninguém quer ser secretário para sempre, por mais que receba um bom salário. E mesmo que por um único dia, substituir um de meus companheiros de trabalho, o Sr. Nielman, seria uma honra. E pensando no Sr. Nielman, espero que ele esteja bem.

– Sr. Armstrong, sabe de alguma novidade no estado do Sr. Nielman? Ainda não tive tempo de ir fazer uma visita para ele.

– Sim Tony. Aparentemente ele está se recuperando, mas os médicos creem que ele foi intoxicado por algum gás que deve ter inalado. Mas como não sabem se foi isso ao certo, ele passará por mais exames.

– Ah sim. Bom saber que o Sr. Nielman está bem.

Por mais que eu esteja feliz por poder fazer algo além do que entregar relatórios e servir bebidas, eu realmente me sinto mal por ele. Mas um gás toxico? Aonde ele teria respirado isso?

– E ele me deixa acontecer justo hoje, que interrogaremos o Sr. Silver. – reclamou o Sr. Armstrong, num tom um tanto raivoso – E até que um estenotipista oficial da cidade vizinha apareça, teremos perdido tempo demais. Então espero que você faça o melhor que poder. Mas caso se perca, pedi que deixassem um gravador na sala.

– Obrigado. Farei o melhor que puder.

Nunca me senti tão bem e aflito em toda a minha vida. Ele estava confiando em mim. Não exatamente, porque havia pedido permissão para que o interrogatório fosse gravado, mas mesmo assim posso sentir um certo peso sobre os meus ombros.

– Mas senhor, tenho novidades dos exames toxicológicos. Alguns novos dados chegaram hoje mais cedo do IML.

– Deixe-me ver isso – tomou os papeis da minha mão, mas sem ser grosseiro. Havia sido consumido pela pressa em descobrir qualquer novidade.

– A vítima, Clara, realmente estava morta quando foi dado o tiro em seu peito, mas não podemos mais nos basear na possibilidade dela ter levado um tiro anteriormente na cabeça. Os fragmentos cerebrais encontrados, apesar de mínimos, foram identificados como sendo de um ‘Canis lupus familiaris’, melhor dizendo, um cão doméstico.

– Hmm... Continue – encarava os papeis aflito.

– Outra coisa é que arranhões superficiais foram encontrados em suas costas, o que pode ser um sinal de que a garota tenha sofrido agressão antes de ser morta, uma vez que apresentaram cicatrização, o que quer dizer que ela ainda estava viva quando foram feitos.

– Sim. Eu havia suspeitado quando vi as fotos das partes do corpo encontradas.

– E aparentemente há frascos da unha do agressor permaneceram no corpo, e o DNA deu positivo para Samuel Castro.

– Não posso crer nisso! – O vi abaixar a cabeça, num gesto de quem havia se desapontado extremamente, mas logo em seguida voltou à expressão inicial.

– Mais uma coisa senhor, o resto do corpo foi encontrado, fora a cabeça. E últimos exames revelaram a prática de atos sexuais recentes. Mas ainda não se conhece o parceiro.

– Cada vez que aprofundamos mais nessa historia mais me sinto mal pela vítima. Nunca quis tanto solucionar um caso para dá-lo como encerrado. – concordei com a cabeça.

Uma movimentação então começou na delegacia. Por não ser grande e possuir poucos trabalhadores, com a maior parte policiais fazendo a segurança, qualquer pequena movimentação de funcionários era percebida. E essa de pequena não tinha nada. A voz de dezenas de repórteres com suas câmeras e microfones apontando para a entrada tornou a curiosidade de qualquer um ali dentro incontrolável. Eu já sabia o que estava acontecendo, e como ficaríamos sem um auxiliar hoje, corri para a copa para programar a cafeteira de preparar cafés e chás para o próximo interrogado. O senhor Silver havia acabado de chegar.

– O que vocês querem de mim? – Falou o Sr. Silver com a maior naturalidade possível, com uma expressão facial um tanto sonsa. Pelo menos para mim. E para o senhor Armstrong: nunca o vi olhar tão firmemente nos olhos de qualquer acusado.

– Queira se sentar, por favor.

– Esse aqui ao meu lado é o meu advogado. Creio que não há problema dele ficar aqui, estou certo? – deu um sorrido psicopata. Ele era um psicopata, eu sentia.

– Creio que os procedimentos do depoimento já lhe foram explicados pelo seu advogado. Entretanto, eu reforço o fato de que qualquer mentira aqui dita é considerada um crime perante a lei, e implica em diversas consequências diretas para o senhor e qualquer outro envolvido.

– Sim eu já sei de tudo. O que eu não sei ainda é o porque de terem me prendido em minha viagem de férias.

Ele é doente ou o que? Quanto cinismo pra uma pessoa só!

– Senhor, você está envolvido em uma investigação criminal. Investigação essa da morte da sua filha. E todo e qualquer acusado ou testemunha deve permanecer aos arredores até o fim das ações e a baixa do caso.

– Ah, é isso? Por que não disseram antes? E tinha mesmo a necessidade de me deixarem ir para a casa para depois me algemarem e me fazerem passar a noite na cadeia? De me deixarem descobrir da pior maneira que minha casa havia sido queimada e minha esposa estava morta?

Eu me arrepiei. Eu não tenho nem ideia do que é isso que estou sentindo agora. É como uma repulsa obsessiva, um ódio e ao mesmo tempo a capacidade de não compreender o que os meus olhos viam, meus ouvidos ouviam e meus dedos digitavam. Como alguém podia falar tão friamente da morte da filha e da esposa, mesmo em tais circunstâncias?

– Realmente, liberá-lo foi um erro dos policiais que estavam lhe transportando.

– Posso denunciá-los por danos morais, pela vergonha que me fizeram passar. E por me prenderem sem eu ao menos ter cometido um crime! – completou o Sr. Silver, que pela primeira vez se exaltou.

– O simples fato de ter fugido do país sob o conhecimento do caso o torna um fugitivo da justiça que caso não saiba, é um crime. Não lhe fizeram passar vergonha, você foi apenas detido pelo o que cabe a lei do nosso país. Mas acho que o seu advogado poderá lhe explicar isso mais detalhadamente depois. – uma grande pausa – E então, podemos conversar civilizadamente? Outro levantamento de voz e posso prendê-lo aqui mesmo por desacato a autoridade.

– E o que deseja saber?

– Primeiro de tudo, por que marcou a viagem tão em cima da hora sabendo da investigação de assassinato de sua filha.

– Eu sempre quis ir a Paris.

O QUÊ? EU NÃO OUVI ISSO.

– Então você confirma que viajou mesmo sabendo do caso? Seria isso uma confissão de fuga?

– Eu nunca mataria a minha filha, se é isso o que o senhor quer saber.

– E esse é o único motivo para você planejar fugir do país?

– Não, não é.

É agora. Ele vai confessar que matou a filha. Não posso crer que um pai faria uma coisa dessas, mas, eu sei que ele fez. Eu sinto. Ele vai dizer.

– Eu não gosto da minha sogra.

– Isso é tudo o que tem a dizer em sua defesa?

– Já disse que não matei a minha filha senhor.

– Então, permita-me prosseguir. – uma pausa – Onda estava quando soube da morte de sua filha?

– Em casa, com a minha esposa. Ela havia saído pra levar sua avó de volta para a clinica psiquiátrica, de onde fugira, o que fez, e aparentemente voltou em seguida.

– Tem alguma prova de que estava em casa?

– A minha única prova foi aparentemente queimada viva.

Não sei o que mais me aterroriza: o fato dele falar com tanta naturalidade ou o meio sorriso de canto de boca que esboça logo após falar. Estou começando a achar que ele esta se fingindo de psicopata para não ir preso quando o caso for desvendado e ele for declarado o culpado.

– Mudando um pouco de assunto, o senhor tem alguma arma em casa, senhor Silver?

– Sim, e muitas. O senhor deve saber que eu trabalho com caça.

– Sim, eu mesmo já comprei muitas de suas carnes. Mas o senhor usou alguma delas ultimamente?

– Nenhuma. Minha licença por posse espirou e tenho que renová-la.

– Nem mesmo para ameaçar um possível namorado de sua filha?

– Não entendo onde quer chegar.

– Temos a denuncia de que o psicólogo e também professor da antiga escola de sua filha, Sr. Hopper, com quem possivelmente a vítima mantinha um caso, foi na sua casa e de lá foi expulso pelo senhor, ameaçado por uma arma.

– Não sei do que está falando.

– Não adianta negar, senhor Silver. Temos mais de uma denuncia contra o senhor. Lembre-se de que mentir para a justiça é crime.

– Está bem, está bem. Esse homem apareceu na minha casa sim. Ele invadiu minha propriedade.

– Como?

– Ele surgiu lá dizendo que precisava falar comigo. Tudo num tom muito raivoso e desnecessário, e se tem alguma coisa que aprendi com meu falecido pai é que não devemos levar desaforo pra casa. Muito menos levar desaforo dentro da própria casa.

– E o senhor não sabe a razão pela qual ele apareceu em sua propriedade?

– Veio me acusar de calúnias. Ele é outro que eu devia denunciar.

– Prossiga.

– Bem, ele veio falar que minha filha contou pra ele que eu maltratava minha esposa. Tudo mentira. E não creio que ela tenha falado isso também. Ele devia era estar de olho na minha fazenda, mas não vou vendê-la. Está na minha família há quatro gerações. Então quando ele começou a se alterar eu peguei a minha espingarda e já mirei bem na testa. Mas eu não atirei e nem ia atirar. Nem se minha licença estivesse válida. Essa presa não vale a pena ser abatida.

– Então o senhor realmente acredita que a sua filha não contou nenhuma mentira, como você mesmo diz, para ele?

– Não.

– Qual a razão de ter expulsado-a de casa então?

– Como o senhor sabe disso?

– Oras, esse é o meu trabalho. Agora me responda. Qual o motivo pelo qual você expulsou a própria filha de casa se não as mentiras que segundo você ela não contou?

– Por que ela me contou que estava junto dele. Nunca senti tanta vergonha na vida.

– Por quê?

– Por quê!? Filha minha não nasceu pra namorar homem. Não me entenda mal, ela não nasceu pra namorar ninguém. Tanto desgosto que essa garota me trouxe desde que nasceu, e eu trabalhando para sustentá-la... Pra quê? Pra depois ela falar que tá com um tal de Hopper? Isso não é nem um nome de verdade! Filha minha tem é que trabalhar pra botar dinheiro em casa.

– Então você a expulsou de casa quando soube. E qual foi à reação da sua esposa?

– Me pediu para voltar atrás, mas eu não voltei. Homem que é homem tem palavra.

Se essa entrevista não acabasse logo, eu iria vomitar.

– E o senhor sabe para onde ela foi?

– Acho que pra casa de uma amiga dela. Minha esposa me contou no dia seguinte que tinha pedido a uma amiga pra acolhê-la. Até agora não acredito que ela ignorou a minha palavra e fez isso. Sempre se metendo aonde não é chamada. Queimou meu filme. Até que morreu queimada.

– Falando sobre isso, sabe alguma coisa sobre o fogo na sua casa? Crê-se que o incêndio não foi acidental.

– Como eu iria saber? Eu estava preso em um aeroporto em Paris. Não esperava encontrar minha casa assim. Mas há seus lados positivos...

Do que diabos ele estava falando? Cadê o lado positivo nisso tudo?

– E quanto a sua sogra. Por que o senhor não gosta dela?

– Por que ela me dá despesas. E sempre foi contra meu casamento com sua filha. Velha intrometida. Sempre fez de tudo para nos separar. Fora que é a minha sogra. Não preciso de mais outro motivo para odiá-la do que esse.

– Manere nas palavras, senhor Silver. Vigie a falta de respeito para com os envolvidos no caso. Ou caso contrário, lembre-se, de que você está em uma delegacia.

Mais uma longa pausa. Acho que nem mesmo o senhor Armstrong era capaz de aguentar o clima pesado que pairou no ar com esse depoimento. Tanto cinismo. Tanta raiva. As emoções eras conflitantes e colidiam intensamente, sendo que todas essas eram negativas. Acho que seu descontentamento foi tão grande que ele escolheu acabar com o interrogatório mais cedo. Espero que caso o senhor Silver tenha de depor de novo, que o senhor Nielman ou outra pessoa possa me substituir, por que eu não sei se serei capaz de suportar tudo isso outra vez.

– Então é isso senhor Silver. Mas antes de sair, tenho outra pergunta que gostaria de lhe fazer.

– Diga. Preciso entrar em contato com o IML para saber de minha esposa.

– O senhor não tem nada mais a contar?

– Não. Não hoje.

Pude ver três policiais adentrarem a sala quase como se tivessem cronometrado o horário. E suas expressões não eram das melhores.

– Já que não tem nada a dizer, o senhor está preso por violência física contra Beatrice Silver. – admirei-o enquanto era algemado inesperadamente – Tudo o que disser poderá ser usado contra você no tribunal.

E então eu o vi saindo de sala. Sem dizer ao menos uma palavra. Sem contestar. Sem reclamar. Sem emitir um som de desaprovação. E o principal: ainda sem emoção alguma no rosto.

Vi então o advogado olhando feio para o senhor Armstrong, como se estivesse planejando uma vingança, enquanto os outros funcionários esbanjavam um sorriso de aprovação pelo feito. E após todos deixarem a sala, ganhei um sinal de ‘ok’ do senhor Armstrong. Eu sei que era pelo fato de terem prendido o senhor Silver, por pelo menos o crime de bater em sua esposa, mas eu preferia encarar como aprovação por ter executado o meu papel provisório perfeitamente. E minha nossa, eu me sentia tão bem. Tão bem que ao sair daquela sala, pedi permissão para tirar folga o resto do dia e fui fazer o que já devia ter feito há muito tempo: visitar o senhor Nielman.

E pra falar a verdade, acho que não podia escolher dia melhor para ir visitá-lo. Depois do que vi na clinica tive a impressão de ter solucionado ao menos parte do mistério. Não o mistério do caso de clara, mas sim o estranho incêndio que levou a sua mãe ao mesmo fim.

Mas será que eu estava certo?