– Mas tem algum indício de estupro?

– Não senhor. Poucas partes do corpo foram localizadas até agora, como dedos, um pé, uma mão e agora a região do tórax.

Eles estavam falando dela, eu podia ouvir.

– Seja quem for que a esquartejou teve um imenso trabalho para separar a região do tórax do abdome. Já se sabe com o que o culpado fez isso?

– Não. Talvez algum tipo de serra, eu não sei. Tudo o que se sabe é que a morte foi devido a dois tiros seguidos de espingarda. Um bem no peito e o outro provavelmente na cabeça.

– Como podem saber se a cabeça não foi encontrada ainda?

– O laudo provou que quando o tiro foi dado no peito ela já estava morta. A possiblidade de outro tiro na cabeça é devido o fato de terem encontrado fragmentos de massa cerebral nas roupas da menina, que inacreditavelmente não se degradaram.

Eles estavam falando da minha filha. Meu anjo.

– Compreendo Tony, mas não necessariamente foi um tiro, certo?

– Realmente não dá para se saber. Mas pessoalmente, não consigo imaginar outra coisa que estraçalhe os miolos de alguém sem ser um tiro.

– E por acaso tiros de espingarda tem todo esse poder de destruição, garoto? E tenha mais respeito com a vítima.

– Perdoe-me senhor, mas nunca se sabe né.

Eu não aguentei. Eles estavam falando de Clara, a minha menina. Eu precisava intervir. Não dava mais para ficar ouvindo os detalhes que ninguém queria me contar com meus ouvidos do outro lado da porta da sala do delegado.

– Com licença, mas os senhores estão falando da minha filha.

Eu falei de um jeito que parecia não expressar a tamanha dor que eu sentia. Não parecia surpresa, nem sofredora. Mas por alguma razão, eles me encaravam como se eu tivesse visto um fantasma.

– Com licença senhor, vou chamar o senhor Nielman – Falou o rapaz mais novo, deixando a sala logo em seguida.

– Infelizmente senhora Silver, essas informações devem ser mantidas em sigilo pela policia. Qualquer dado só será divulgado com o encerramento do caso.

– Eu sei, é só que... é só que...

Eu não pude me conter. Como aquilo foi acontecer justo com a minha menina? Minha única filha. Era como se o maior presente que uma mulher pode querer tivesse sido dado à mim, eu fui a escolhida, para depois a vida toma-la de volta.

– Por favor, senhor, você não poderia me contar nada sobre o caso? – Implorei, já em prantos.

– Sinto muito senhora, mas infelizmente eu não estou autorizado. Mas eu posso lhe oferecer uma água, ou um chá. Ou um café quem sabe...

– Obrigada. Mas tudo o que eu quero é a minha Clara de volta.

Novamente, eu estava soluçando. Por mais que pensando a frase tivesse soado um tanto forçada, como uma chantagem emocional, ela não foi. Ela era sincera, infelizmente. A súplica de uma mãe que teve sua razão de viver arrancada de seus seios inesperadamente. Pude percebê-lo ficar sem graça, enquanto me oferecia lenços de papel para tentar me controlar.

Eis então que ouço uma batida na porta, e tanto o rapaz como um senhor mais velho entram.

– Poderia fazer alguma coisa por vocês? Trazer alguma bebida? – Perguntou o rapaz.

– Não, obrigada – respondi, tentando e acalmar – Eu não posso demorar. Tenho de ir ver a minha mãe no hospital.

– Quanto a isso senhora – completou o delegado – eu realmente não sei o que dizer. Juro que não fiz por mal, e lhe ofereço todas as minhas desculpas. Eu ofereço até a pagar os remédios ou na estadia hospitalar, caso seja muito caro – ele me olhava com um tom de piedade, enquanto o outro senhor arrumava-se em sua mesa para começar o depoimento.

– Não precisa, é sério... – Respondi.

– Eu insisto! – retrucou, olhando firme em dentro dos meus olhos.

– Está bem. Mas não é por isso que estou aqui – me controlei.

– Infortunadamente, você tem muita coisa sobre o que depor aqui hoje.

– E – recuperei o folego – aonde quer começar.

– Comecemos com a sua mãe.

– Com a minha mãe? Mas não vejo o que ela tem a ver com essa história – me surpreendi.

– Aparentemente a senhora não estava muito presente em sua vida nos últimos meses. E agora, repentinamente, faz questão de ir visita-la.

– Eu não sei no que isso interfere no caso, mas, eu nunca tive um relacionamento muito bom com a minha mãe. Éramos muito diferentes. E ainda somos. Mas eu sei que ela não está bem, e não sei se suportaria perder mais alguém na minha vida.

– Vocês duas brigavam muito? – Perguntou, com o tilintar dos teclados da maquina de escrever ao fundo. Por que será que não haviam trocado-na por algo mais moderno, como um computador?

– Não, nunca fomos de brigar. Mas confesso que de uns anos para cá, começamos a discutir diariamente. Desde que a esquizofrenia a alcançou.

– Poderia me dizer sobre o que discutíamos?

– É um assunto pessoal.

– Senhora, peço que coopere com a investigação.

– Eu sei, só não vejo como isso ajudaria no caso.

– Em muito – olhou fixamente para me braço esquerdo, que segurava o outro de maneira auxiliadora.

– E o que aconteceu com o seu braço? – Estremeci. Agora sabia onde ele queria chegar, porém, eu não estava pronta para isso.

– Eu apenas o machuquei na parede de casa – Falei, quase que gaguejando, com o som sumindo gradativamente.

– A senhora tem certeza disso? Não teria sido outra coisa, ou alguém?

– Eu acabei de perder a minha filha senhor. Tenha dó.

– Ter dó exatamente do que?

– De mim. Da minha vida. Tudo só acontece comigo. Ele não tem culpa por fazer isso. É sem querer.

– Ele quem e culpa do que?

– Meu marido, culpa de me bater. Eu mereço.

Eu havia acabado de condenar meu marido para a cadeia. Ele arrancou de mim o que eu não queria falar.

– Então ele bate na senhora, estou certo? E por isso você brigava tanto com a sua mãe. Ela sabia de tudo.

– Sim. Ela sabia – voltei a chorar – Mas, por favor, não o prenda! - supliquei - Ele não tem culpa. Se ele me bate às vezes é porque eu mereço. Eu não sou uma boa mulher. Eu sou uma filha ruim para minha mãe, uma esposa ruim pra meu marido, e fui a pior mãe que a minha filha poderia ter.

– E por que a senhora acha isso?

– Não me faça dizer essas coisas – eu soluçava.

– Mas preciso entender pelo o que a senhora estava passando.

– Eu não era uma boa amante para ele, sabe? Não dormíamos juntos há meses. Minha mãe foi de uma clinica psiquiátrica para a UTI, e foi preciso eu quase perdê-la para entender o quanto eu a amava! O quanto eu sentia a sua falta! – estava gritando – E que ela sempre esteve certa quanto a tudo em minha vida. E veja onde estamos agora? A minha filha está morta e eu não consigo entender o que aconteceu com ela!

Demos uma pausa. O chá que eu não pedi foi-me entregue e bebido na pressa. Acalmei-me novamente. A respiração aos poucos voltava ao seu normal. Não desejo a ninguém a dor, ou mesmo um terço de toda a dor que agora eu sinto. A dor de perder um filho. Eu estou sem chão.

– Podemos voltar agora?

– Tudo bem. Dei uma golada na terceira xícara de chá que me fora servida.

– Você me disse que se considera uma mãe ruim. Pela sua filha ter sido brutamente assassinada, e eu sinto muito por isso. Mas existe algum outro motivo para a senhora se considerar assim?

– Eu não sei, talvez...

– Então existe algo – chegara a hora de falar.

– Não é algo que e tenha feito, eu sempre tentei ser sua amiga e só queria o melhor. Afinal, ela era a minha filha. Meu bebê – eu precisava contar.

– Então o que aconteceu?

– Foi algo que eu não fiz – era agora.

– Prossiga – Disse o sr. Armstrong.

– Eu não sei se alguém contou para vocês, mas, aparentemente Clara estava envolvida com um homem mais velho.

– Não, não sabíamos – Negou, mas dava para sentir a falsidade no tom de sua voz.

– Pois bem. Eu sabia de seu envolvimento com um rapaz da escola, entretanto ela nunca me contou quem era. Eu não tinha nem ideia. Não sabia que ele trabalhava na escola ao invés de ser um aluno.

– E quem seria esse homem?

– O Dr. Hopper. Antigo professor e atual orientador dela. Ou melhor, último – uma lagrima de ódio escorreu pela minha face.

– Continue.

– E aparentemente ela contou alguma coisa para ele que realmente o preocupou. Algo que o fez ir até a nossa casa, no mesmo dia. Clara havia ido se encontrar com Lucy, minha mãe, que tinha fugido da clínica outra vez. Como ela nunca me contou o tal lugar misterioso para onde ela sempre fugia, eu a mandei atrás de sua avó. E nessa hora o homem apareceu em nossa casa, segundo meu marido.

– A senhora não estava presente?

– Não. Eu cheguei alguns instantes depois. Não sei o que aconteceu ao certo, mas quando cheguei minha filha estava em prantos arrumando suas mochilas para ir embora de casa.

– E você a deixou ir?

– Eu não sei, eu não disse nada. Ninguém me contou o que estava acontecendo. Eu estava em choque. Quando percebi ela estava saindo pela porta e seu pai a chamando de puta barata. Perdão pelo palavreado chulo. Mais tarde fui saber que ela levou a avó de volta para clínica no mesmo dia e que confessou que o cara que apareceu em nossa casa era seu namorado, e que iriam se casar. E bem, meu marido surtou.

– Prossiga.

– Eu não sabia o que fazer. Então eu liguei correndo para uma antiga amiga da cidade. Ela tem uma filha que estudava junto com a Clara, mas nunca foram muito amigas. Pedi a ela se podia ficar com a minha filha, só um dia, antes que tomássemos um próximo passo, e ela assentiu. Eu anotei o endereço em um pedaço de papel e dei para minha filha, não podia deixá-la desamparada.

– E ela se foi?

– Que escolha de palavras... mais... não sei explicar – voltei a chorar – desculpe-me.

– A senhora não tem o que se desculpar. Ao menos não comigo.

– E qual o nome dessa sua amiga? E sua filha? Elas também podem ser peças fundamentais na história.

– Mary Elizabeth Curtis, e Julie Curtis sua filha.

– Sim, está anotado.

Nesse momento a porta se abre após ser suavemente tocada. Era Tony, com mais um chá: ouviu meu choro novamente. Agora me sentia um estorvo, gastando tanto de seus chás. Tão triste e pesada mais ao mesmo tempo tão relaxada e fora de mim. Eu era todos menos eu mesma depois da morte do meu anjo.

– Tony, chegou na hora certa. Preciso que faça uma pesquisa rápida para mim.

– Claro Sr. Armstrong, é só pedir.

– Quero que pesquise sobre Mary Elizabeth Curtis, Mary Curtis simplificando. E sua filha Julie Curtis. Preciso interrogá-las.

– Tudo bem senhor, já volto com informações.

– Eu posso ser dispensada senhor Armstrong? Acho que já cooperei com o que podia e tenho de visitar a minha mãe agora – Recuei.

– Tudo bem, mas ainda tem muita coisa faltando que precisamos conversar sobre. Seu depoimento não acabou por aqui. Apenas me responda, falamos tanto de seu marido... Você sabe algo de sua fuga que nós não sabemos?

– Eu realmente não sei. Sei tanto quanto vocês. Confesso que cheguei a ter um nó no estomago ao pensar que algo poderia ter acontecido com ele também, assim como minha filha – engasguei – Mas quando vi que parte de suas roupas e uma de nossas malas havia sumido, eu resolvi avisar a polícia.

– Você acha que ele tem motivos para fugir?

– Sim. Não da maneira que estão pensando – dou uma golada no chá – Talvez seja pela violência, eu não sei. Não sei o que se passa na mente dele. E acho que a verdade é que eu nunca soube.

– E você sabe da previsão dele de volta?

– Não, não fui informada. E a verdade é que agora que vocês sabem de tudo, eu realmente tenho medo de que ele volte. Eu o amo, mas, eu não sei, é um sentimento estranho, não sei como explicar. Mas não é bom.

– É normal não se sentir bem nas suas circunstancias. E pode deixar que todos os envolvidos são vigiados durante o caso, então a senhora estará segura. E só para informar, já que essa informação não é segredo, ele voltará daqui a alguns dias, se o tempo continuar melhorando como está.

– Obrigado então, eu já me vou. Até mais.

Logo que eu saí, enquanto assinava os papeis pude ver que Tony entrara na sala com as informações que o delegado tanto queria sobre minha amiga e sua filha, agora possíveis suspeitas do caso graças a mim. Sinto mal por ter as envolvido. Sinto mal por ter deixado a minha filha sair aquele dia de casa. Sinto mal por todos esses anos vivendo ao lado do homem que me acostumei a chamar de amor. Mas eu precisava alertá-las do que estava por vir. Eu precisava alertar Mary sobre o depoimento para poder ajudá-la. E salvar sua pele.

Finjo que vou ao banheiro antes de sair e casualmente erro o corredor para voltar à sala do Sr. Armstrong. Seco minhas lagrimas e torno minha respiração silenciosa. Ponho meus ouvidos atrás da porta.

– Então senhor, tenho endereço, numero de telefone e até mesmo o numero de alguns de seus documentos. Nenhuma delas tem ficha criminal, mas mesmo assim tem algo muito suspeito na mãe.

– Mary Curtis? O que descobriu sobre ela.

– Que ela está notavelmente interligada com a história por dois pontos cruciais. E aparentemente, nós já a conhecemos.

– O que quer dizer com isso Tony? É mais alguma das suas brincadeiras?

– Não senhor. É que a Mary Elizabeth Curtis que o senhor me mandou procurar nada mais é do que uma das enfermeiras que nos recebeu quando fomos interrogar a senhora Lucy.

– Não pode ser.

– E além disso, ela acabou de se divorciar. E adivinha qual era o nome dela de casada?

– Não vai me dizer que era...

– Isso mesmo. Mary Elizabeth Hopper.