Vermelho em sete atos

Ato 6 - Vermelho como olhos de pulga




Ato seis – Vermelho como olhos de pulga

Estranhamento e familiaridade. Pressa e calma. Raiva e excitação. Instinto e desconfiança. Heiwajima Shizuo, suas inspirações pesadas, seus pés em choque contra o asfalto, suas batidas irregulares no peito, não era mais capaz de distinguir seus contrastes. Punhos cerrados ou relaxados. Cigarros acesos ou apagados. Olhos abertos ou fechados. Nada era capaz de mudar a sensação de estar a perder-se numa via de mão única. A sensação de ser concebido para seguir o caminho marcado em vermelho mesmo através de suas pálpebras fechadas em disritmia com o receio que percorria seu corpo como correntes elétricas a cada novo passo.

Saberia, verdadeiramente, lidar com tudo se pudesse apenas livrar-se do fio preso a seu dedo mindinho esquerdo. A sensação era, afinal, a mesma de sempre, a mesma a qual já se acostumara há anos. O cheiro. O arrepio em sua espinha. Os pelos em pé. A respiração descompassada. Não sabia, entretanto, lidar com a estranha simetria entre suas sensações e as que traziam-lhe o fio vermelho. Não podia conter o estranhamento diante da incapacidade de determinar onde começavam suas reações à perseguição e onde terminavam as desencadeadas pelo fio. Seu coração agitava-se e um nó moldava-se. Sua respiração oscilava e o fio tremulava. Seus passos cravavam-se com força e a linha excitava-se. A estranheza ao notar que seguir seus instintos para encontrar Izaya era o mesmo que deixar-se guiar pelo fino fio vermelho preso a seu dedo mínimo esquerdo

Mesmo antes de vê-lo, sabia que ele sorria enquanto o esperava. Ao, entretanto, finalmente encontra-lo, mal pode vê-lo ou a seu sorriso.

Piscou demoradamente, sabia que precisava de tempo para que o fio acalmasse-se, para que deixasse de enrolar-se em volta do rapaz a sua frente até quase cobri-lo por completo. Quase sorriu, um riso que nada teria de felicidade, ao perceber que o vermelho só deixara de fora de seu casulo a mão esquerda onde, mesmo a ainda considerável distância, os olhos castanhos mel podiam distinguir um laço vermelho.

E esperou, em disparidade à fúria em seu peito, até que todas as voltas se desfizessem e o fio pousasse protetoramente no chão ao lado de Orihara Izaya.

– Soube que tem agido estranho, Shizu-chan... – o sorriso, os olhos, o deboche, o canivete: Izaya era exatamente o mesmo de sempre. O mesmo, exceto pelo fio da cor de seus olhos a agitar-se ao seu redor. O fio que, inegavelmente, tinha seu mindinho como destino final.

– Sabia que era culpa sua, pulga. – a voz escapou-lhe fraca, arranhando sua garganta. Não teve certeza de que o rapaz o havia ouvido até assistir seu sorriso alargar-se, roubando para o rosto agora deformado em malícia a atenção quase absoluta do homem mais forte de Ikebukuro.

– Para você sempre é, Shizu-chan...

O sorriso. Os olhos. O deboche. O canivete. Mesmo que fossem os de sempre e perfeitamente moldados para seu descontrole, não foram eles a desestruturarem Heiwajima Shizuo. Os nós a desfazerem-se e o fio a encolher-se até tornar-se curto o suficiente para quase sustentar-se no ar fizeram-no.

– Não está vendo?! – rugiu, em explosão, o peito a mover-se violentamente – É cego?! Acha que sou idiota. Enrolando em você, espalhado a sua volta e agora encolhendo com a merda de um sorriso como o seu... Debochando. De mim. Preso a mim o dia todo. Me atormentanto. Me confundindo. Me arrastando até aqui. Eu vejo, Izaya. Eu consigo ver que está saindo de você!

Os olhos vermelhos como o fio que agora desfazia mais um de seus nós arregalaram-se ao limite antes de correrem ao redor em evidente pânico. Direita, esquerda, a trás, a desfocarem-se em inquestionável esforço antes de, por fim, focarem-se a frente, nos olhos castanhos-mel.

– Não faça-se de estúpido, maldito! – gritou, sustentando o olhar do outro, ignorando plenamente o fio a alongar-se e envolve-los como se desesperado para ser notado por ambos. Assistiu os olhos perderem-se para os lados mais uma vez antes de levantar a mão esquerda e exibir sua própria ponta do laço – Não se faça de idiota, Izaya...

A espelhá-lo, o rapaz abaixou a mão direita que ainda mantinha firmemente o canivete e, lentamente, incerto, levantou a esquerda.

Shizuo tinha certeza de que não eram seus, que eram culpados por eles o fio vermelho fino que agora assumia sua menor forma, unindo os dedinhos um ao outro em linha reta, mas não pode evitar que a raiva em seu peito cedesse espaço a outros dos estranhos sentimentos de familiaridade. Por manter seus olhos atentos ao curto fio, soube que Izaya se aproximava mesmo antes de sentir seu cheiro intensificar-se, seu calor tocá-lo e sua respiração roubar seu ar. Desviou o olhar, entretanto, a tempo de fitar bem próximo aos seus os olhos castanho-avermelhados, grandes, receosos, curiosos.

A mão esquerda, aquela que ele sabia presa pela linha vermelha, tocou sua nuca segundos antes que os lábios de Izaya tocassem os seus, leves como se prontos a afastar-se. Os olhos não cerraram-se, nenhum deles. O segundo toque aprofundou-se, entretanto, com uma piscada longa. Um experimento, gritaram os olhos vermelhos ao afastarem-se para dentro do foco dos castanhos-mel.

– Quer me beijar?

O sussurro soprou-lhe o rosto e, como ordem, fechou-lhe os olhos. Foi a vez de sua mão esquerda, aquela da ponta oposta ao fio a entrelaçar sua nuca, enlaçar a cintura do rapaz cujos lábios tocava mais uma vez, agora, a sua vez, a sua resposta. Das incertezas a preencherem seu peito, nenhuma relacionada à pergunta de Izaya. Nenhuma a impedi-lo de tocá-lo mais uma vez, de apertar os dedos na cintura fina, de colar mais os corpos, de receber repetidamente os lábios nos seus, de experimentá-lo com a ponta da língua e marcá-lo com seus dentes.

Ainda mantinhas seus contrastes. Ainda sabia do sorriso, da malícia, do canivete e do deboche. Não podia, entretanto, ver nenhum deles ao fechar com força os olhos.

De olhos fechados, também não pode ver quando os castanho-avermelhados cerraram-se como os seus ou quando o fio vermelho alongou-se, mais uma vez, para envolver a ambos.