Vermelho em sete atos

Ato 7 - Vermelho como...




Ato sete – Vermelho como...

– Você realmente não pode vê-lo?

Os olhos castanhos avelã mostravam, antes de tudo, incredulidade, as sobrancelhas franzindo-se levemente. Incredulidade era, ele reconhecia, apesar de toda a força capaz de colocar abaixo Ikebukuro e toda a raiva que sabia poder conter seus músculos, o sentimento mais negativo que podia, no momento, sustentar contra o rapaz ao seu lado.

O silêncio prolongou-se antes que recebesse um resmungo preguiçoso como resposta. O resmungo, entretanto, foi tudo o que recebeu, sua espera retribuída apenas com um remexer em busca de aconchego nos lençóis bagunçados. Bufou irritado. A irritação, entretanto, assim como a força ou a raiva, não o atingia verdadeiramente. Lançou-se de volta ao colchão, farto de inclinar-se em direção aos olhos cerrados de Orihara Izaya em busca de respostas.

Sua atenção voltou-se, involuntariamente, para seus arredores e a careta não pode ser contida. O quarto estava um caos. Ainda mais do que ao abandoná-lo naquela manhã enquanto, irritado, tentava ignorar o fio vermelho preso a seu dedo mindinho esquerdo.

A cama permanecia no chão, apenas o estrado e o colchão a permitirem que a confusão de espuma e lençol ainda fossem chamados daquela forma. Os pés, todos os quatro não fortes o suficiente para resistirem à fúria do homem mais forte de Ikebukuro, se espalhavam em lascas de madeira pelo quarto.

Mesmo que, entretanto, em outras circunstâncias a destruição ao seu redor fosse o suficiente para despertar em Heiwajima Shizuo a fúria, naquele momento, com os olhos castanhos-mel fixos na desordem confusa de tecidos, penas e madeira, não sentia nada além de um comichão de desconforto a torcer-lhe o nariz. Ele entendia, mesmo que não plenamente, que a cama, ou a ausência dela, não era seu maior problema. Seu problema era, verdadeiramente, o que havia sobre dela, afundado nos lençóis brancos.

Com um bufo alto, voltou resignadamente os olhos para o rapaz deitado ao seu lado.

Duas piscadas, bem rápidas e consecutivas, precederam os lábios a separarem-se e o peito a acelerar-se em quase desespero. As pupilas a dilatarem-se até quase cobrirem de negro as íris avelã ao fitar o fio vermelho tão carinhosamente preso a seu dedo mindinho entrelaçar-se preguiçosamente ao corpo nu de Orihara Izaya.

Uma volta no calcanhar esquerdo, o contorno na panturrilha direita, duas voltas em ambas as coxas pálidas antes de perder-se na virilha, enrolando-se carinhosamente aos fios negros, então a subida em curva pelo umbigo pequeno e dois enlaces firmes na cintura, uma volta frouxa no pescoço, tocando sutil as marcas de dentes antes de descer em curvas desleixadas pelo braço esquerdo para, por fim, terminar em um bonito laço no dedo mínimo esquerdo. Vermelho intenso contra a pele alva marcada por seus toques.

– Não posso. – a voz rouca, baixa, pegou-o de surpresa, arrastando os olhos presos aos contornos do fio para os olhos castanho-avermelhados a fitarem-no com diversão. Buscou na memória o significado da negação, torcendo os lábios ao encontra-lo.

– Por que me beijou, então, pulga? – “E por que está aqui?”, quis emendar.

– Duas possibilidades. – anunciou, remexendo-se como se ciente de que a cada vez que o fazia tinha o fio a sensualmente moldar seus contornos – Ou você inventou a história só para me beijar e isso seria interessante. Ou você estava falando a verdade, o que também é interessante.

Torceu o cenho, confuso, antes de deixar moldar-se em seus lábios um riso discreto.

– Mentiroso.

– Como, Shizu-chan?

O discreto riso elevou-se até soar pelo quarto. O som, estranho até a ele mesmo, progressivamente endurecendo em carranca furiosa o outrora descontraído e debochado rosto do informante mais perigoso de Ikebukuro.

– Você é um mentiroso, pulga. A merda de um mentiroso. – acusou uma segunda vez, sem, entretanto, sequer tom de fúria na voz. Os olhos vermelhos estreitaram-se em sua direção.

– Eu? Você está insinuand-?

– Ele é igual a você, Izaya. Igualzinho... – declarou, ignorando o olhar furioso que recebia e alargando seu sorriso ao notar que, gradualmente, surpresa preenchia as íris rubras – Eu sei que está mentindo... Desde que começou a ment-

– Cala a boca, Shizu-chan.

– Desde que começou a mentir... – continuou, ignorando a interrupção, as mãos a involuntariamente moverem-se pelo lençol branco –... ele começou a se aproximar... Esgueirando-se como uma pulga, sondando minha reação. E agora todo encolhido no meu colo, enrolado em mim... – a pontas dos dedos tocaram sutis a curvas dos quadris, correndo em carinhos que o homem mais forte de Ikebukuro nunca imaginara-se trocando com seu pior inimigo – Você está mentindo, Izaya.

Não incomodou-se pelo silêncio. Não esperava confissões. O fio a agitar-se enquanto percorria seu braço até a ponta dos dedos a tocarem a pele arrepiada era toda a resposta que precisava.

– Então é assim mansinho que fica depois de gozar, Shizu-chan? Patética sua tentativa, monstro. – “Patética a sua tentativa, pulga”, quis cuspir de volta com a mesma ira que o outro, desistindo ao perceber que, provavelmente, Izaya tinha razão. A irritação parecia recusar-se a ocupar seu corpo tão plenamente preenchido por endorfina, o sorriso discreto como se preso a seus lábios – Você realmente o vê?

A pergunta pegou-o de surpresa, franzindo-lhe o cenho.

– Você não? – insistiu, recebendo um aceno negativo com a cabeça – Como você soube do que eu falava, então?! Conhece a lend-?

– Ora, por favor, Shizu-chan, você também a conhece.

– Conheç-?

– Fez tudo igual. Até levantou a mão esquerda com cara de bobo e tudo mais. Seu irmãozinho ficaria orgulhoso...

O deboche na voz era palpável. Não era ele, entretanto, a intrigar o ex-barman.

– O que tem Kasuka com isso, pulga?

– Está brincando, né?! O clipe foi lançado na semana passada. Tenho certeza que viu, Shizu-chan. – franziu os lábios sondando a memória. Lembrava-se que na semana anterior houvera o lançamento de um clipe, estrelado por Kasuka, de uma banda nova, não compreendia, entretanto, de que forma aquilo relacionava-se com as insinuações sarcásticas de Izaya – Está falando sério?! Sei que assistiu ao clipe. Acessaram do computador do seu trabalho, tenho certeza que foi você... Mesmo seu cérebro de protozoário teria notad-... Não... Não pode ser... – as sobrancelhas negras finas ergueram-se em sinuosa curva – Você foi capaz de assistir o clipe sem nem prestar atenção na história?! – o riso alto ecoou pelo quarto, arrepiando cada um dos pelos de Shizuo – Você não é mesmo humano, Shizu-chan! “Você é a sorte / a sorte a brilhar vermelha como faróis / a sorte atada a meu dedo / a sorte enlaçando os nossos destinos” – cantarolou o informante, a voz forçosamente enjoada – Bastante brega, devo dizer... Mas seu irmão fez ótimo trabalho chamando atenção e está tocando em todo lugar! “Destinos atados” o nome da música.

Os olhos castanhos-mel abriram-se aos limites. Não era capaz de lembrar-se da música, suas memórias plenamente ocupadas por imagens do irmão mais novo a vagar sem rumo pela cidade com o rosto sério a progressivamente iluminar-se, mas isso explicaria o porquê de Kasuka conhecer a lenda. Não pode evitar sentir-se estúpido.

– Você está corando, Shizu-chan?! Sério isso?! Você não sabia mesmo! – declarou entre risos – Então agora eu entendo porque não posso ver meu lado do fio! Digo, se o seu é igual a mim, o meu deve ser como você, não é?! Se ele é como você, deve ser meio burro. Não consegue nem fazer a função dele direito... Deve estar por ai batendo em outros fios como um monstro descontrolado ao invés de estar “atando meu destino” ao destino do amor da minha vida.

A raiva a crescer em seu peito estancou de súbito, desaparecendo sem deixar resquícios. Só teve certeza, entretanto, de que assim o era ao perceber arregalarem-se os olhos castanho-avermelhados a fitarem-no em denúncia de que tanto ele quanto o rapaz que momentos antes aconchegara-se invasor em seu peito entendiam o que acabara de ser dito.

– Amor da sua vida, hein?! Você devia ver sua cara agora, pulga.

– Cala a boca, Shiz-

Os olhos de Heiwajima Shizuo não estavam abertos quando o fio vermelho desapareceu. Mesmo que, verdadeiramente, ele não tenha desaparecido de imediato. O fio demorou-se, prendendo-se aos dois amantes tão firme quanto eles prendiam-se um ao outro. Reluzindo animado e, teimosamente, recusando-se a deixá-los, mesmo que desaparecer fosse exatamente a forma de provar que havia cumprido o que devia. Permaneceu, por fim, rebelde, por mais tempo do que deveria, afinando devagar, afinando até tornar-se tão diminuto quando os gemidos sôfregos que escapavam dos que unia. E demorando-se tempo o suficiente para que refletisse-se nos olhos que tanto tinham de sua própria cor, orgulhosamente convencendo-se de que eles haviam aberto-se apenas para encontrá-lo. E, obstinado, jurou ter deixado um pouco de si mesmo ali, nas íris rubras, apenas para garantir que não se esqueceriam dele.

Não esqueceriam-se.

Precisariam, verdadeiramente, quando em quando serem lembrados. Umas vezes mais do que outras. Algumas desesperadamente. Outras nem sequer um pouco.

De toda forma, entretanto, a visita de um prepotente fio vermelho que decide que sua interferência no destino é extremamente necessária para que tudo assuma o devido rumo não é algo que Heiwajima Shizuo poderia facilmente esquecer. Não quando lembrava-lhe, afinal, tanto Orihara Izaya.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.