Unfinished Business

Stripped down and torn apart


"Então essa é a diferença entre contar uma história e estar dentro dela: o medo"

Patrick Rothfuss

Abril, 2008

Descartei a arma sem me importar em perdê-la e corri até o local da queda de Ryan. Agachei-me e verifiquei seus sinais vitais. Fracos, mas existentes.

–Chame os paramédicos - ordenei para uma J.J completamente atordoada.

–O que você… - balbuciou.

–Não dá tempo para explicações, J.J. Liga para a ambulância - berrei.

Meu marido estava deitado de bruços e uma poça de sangue começava a surgir gradativamente abaixo de seu corpo. Tentei manter a calma, mas não há treinamento para esse tipo de coisa. Ponderamos riscos e consequências durante toda a nossa existência, pensamos e repensamos, e fazemos isso porque apreciamos o controle. Decidimos aonde queremos ir ou se devemos ficar, tentamos incessantemente trazer ordem ao caos, buscar algo que faça sentido, para sentir que somos úteis, aliás, realizamos grandes feitos. Porém muitas vezes a vida toma nossas escolhas como dela e usurpa a ilusão de que estamos a frente de uma situação. Quando vi Ryan ao chão, a única certeza que eu tivera durante minha vida, quase pude ouvir o universo gargalhando. Era uma ironia cruel. Eu estivera com o poder de controle e mesmo assim havia perdido o jogo.

–Ryan, Ryan, meu amor. Você pode me ouvir? - murmurei enquanto Ryan produzia alguns grunhidos. Sua bochecha estava colada ao chão e seus olhos semiabertos, mas não aparentava estar cônscio do que ocorria ao seu redor. - Ryan, fique comigo, ok?

Senti o gosto salgado das lágrimas invadir minha boca e Jennifer tocou meu ombro, contudo não virei para olhar em sua direção.

As luzes da ambulância invadiram a escuridão solitária da noite e os paramédicos me afastaram de Ryan. Colocaram-o na maca e o levaram. Aleguei ser a esposa e minha entrada no vagão emergencial foi permitida, J.J seguiu em nosso encalço em um táxi.

Pude ver a horda de movimentos dos dois enfermeiros, eles tentavam estancar o sangue e faziam pedidos um ao outro de objetos, desconhecidos a mim, com voz autoritária.

Naquele momento, agi de forma completamente impessoal. Aquilo não parecia estar acontecendo comigo, senti-me como se assistisse a um filme ou tivesse um vislumbre distante da vida de outra pessoa. No instante em que aquele ruído agudo e contínuo indicou a ausência de batimentos cardíacos de Ryan, fui conduzida a um estado atemporal. Fitei, atônita, a reanimação e, em seguida, os olhares desanimados dos paramédicos.

–Sinto muito - um dele começou a falar - a bala perfurou…

Não prestei atenção no resto da explicação, simplesmente arranquei o desfibrilador de suas mãos e tentei alcançar Ryan. Eu não percebi, mas estava aos prantos. Mais tarde, no hospital, recordei o silêncio e as imagens distorcidas, como se tudo estivesse acontecendo em câmera lenta, mas é impossível que tenha sido daquela forma, aliás, o barulho agudo persistia, os enfermeiros tentavam me controlar e eu gritava. Gritei até que a voz falhasse e a garganta começasse a arder, implorei pelo perdão de Ryan, mas ele não podia mais me escutar.

Um dos enfermeiros me segurou enquanto o outro injetava um sedativo em meu braço. Tudo tornou-se etéreo, havia algo enevoando a ambulância e, subitamente, eu estava em uma sala de hospital. Não lembrava se eu tinha ficado inconsciente tampouco como chegara até ali.

–Agnes, eu sinto muito - J.J adentrara a sala e me olhou de modo que parecia estar pedindo permissão para se aproximar.

Eu a abracei como se minha vida dependesse daquilo, como se, caso eu não segurasse em alguém, desfragmentaria.

–x-



Alto demais. Alto demais. Bum. O barulho era alto demais. Bum. Qualquer linha de raciocínio que eu persistia em tentar manter era engolfada pelo som dos tambores. Bum. Apertei os olhos com força, pois sentia que, caso os abrisse, desmoronaria. Quis gritar, contudo meu algoz previra isso e enfiara um pano de cozinha em minha boca. Todo aquele torpor gerado pela revelação de J.J me abandonara e, pela primeira vez, me sentia tentada por uma fagulha que insistia deliberadamente que eu lutasse. Bum. O único problema era o incessante e estrondoso tambor em minha mente que não me permitia pensar. Sacudi a cabeça, na tentativa de afastá-lo e comecei a me contorcer na cadeira, no intuito de afrouxar as amarras e me libertar daquele som infernal. Bum.

–20 minutos! - anunciou, quase solenemente. - Como se sente, Agnes? A história é verdadeira?

Não o vi caminhando até mim, ou ouvi seus passos, mas senti o calor que emanava do seu corpo quando ele se ajoelhou a minha frente e retirou o pano que sufocava minha voz. Naquele momento, a enxaqueca havia se tornado forte demais e a dor me fez vomitar. Grunhi violentamente quando ele usou dois dedos para arregalar meus olhos, a claridade súbita me fez berrar, mas meu grito foi abafado por uma mão.

–Não, não. Calma, quietinha. Isso mesmo. Você vomitou nos meus sapatos, nada lisonjeiro, não? - seu tom era afável, mas não pude fitar sua face porque minha visão estava prejudicada.

Recordei as manhãs em que eu acordara com uma ressaca monstruosa, a sensibilidade à luz e todo o enjoo. Aquilo era milhões de vezes pior, a náusea era quase insuportável e pensei que iria desmaiar.

–Quero conversar, mas pelo visto você não vai ser muito útil enquanto estiver assim, então vou afastar você um pouquinho, tudo bem?

Senti a cadeira em que eu estava sentada ser erguida e movida para o lado. Demorou alguns minutos até que constatasse que o barulho interno cessara, pois mesmo após ser transferida de local, continuei escutando aquele som, como uma espécie de eco. Um alívio indescritível se apoderou de mim quando finalmente pude notar a ausência daqueles tambores e deixei que meu corpo escorregasse na cadeira.

–Quanto tempo você acha que isso vai durar? Alguma hora, estranharão minhas faltas no trabalho e virão procurar por mim - blefei, a voz era um fio oscilante.

Aaron me dera uma semana para repensar minhas decisões e eu não seria aguardada antes disso e, se eu não aparecesse ao final desse prazo, presumiriam que desistira do emprego.

–Ah, então você mentiu para mim? Ainda é a agente Weston? - eu sentia seus olhos pregados em mim, sondando e analisando.

–Espero que seja homem o suficiente para me matar porque, se eu sair daqui viva, vou caçar você e não perderei tempo com essa porcaria de destruir mentes, enfiarei uma bala no meio da sua testa - rosnei. Embora os pingos tivessem parado, sentia uma dor de cabeça lancinante e isso me tornava imprudente. Estava apavorada, mas não pela perspectiva da morte e sim pela ideia de recebê-la lentamente.

O homem gargalhou.

–Já estamos partindo para a hostilidade? Acho que é hora de voltarmos ao nosso jogo - disse lentamente, como se saboreasse cada palavra. Novamente a cadeira foi erguida e comecei a me debater freneticamente. Aproveitei a vulnerabilidade da curva de seu pescoço, já que ele estava inclinado sobre mim, e mordi usando toda meu estoque de força restante. Ele largou a cadeira de imediato, provocando um baque surdo e imaginei se meus vizinhos, que eu nem ao menos conhecia, viriam checar a fonte do barulho. Recebi um tapa no rosto que me fez largar camisa, pele e carne, escorregar da cadeira e tombar no chão.

–Sua vadia! - ele não gritou, a voz era um murmúrio repleto de perplexidade. As mãos pressionavam o local do ataque enquanto seus olhos me fitavam, cheios de surpresa.

–Eu matei a droga da sua família, agora pegue a minha arma e atire. Vamos! Ou talvez você prefira uma das minhas facas, vamos, eu digo a você onde pressionar minha garganta - sibilei.

Não, eu não estava sendo corajosa ou nobre, longe disso, estava me acovardando, clamava por uma morte rápida, não aguentaria aquele barulho na minha mente pela segunda vez. Esperava quebrar seu espírito paciente e seduzi-lo com a raiva. Vislumbrei um traço de hesitação no seu rosto e imaginei ter conseguido o que eu queria, porém ele se afastou e só então notei que o telefone estava tocando. Quando retornou, portava uma faca que usou para cortar minhas amarras, tão logo estava com os pulsos livres atingi um soco em seu rosto e impulsionei meu corpo, levantando-me. Minhas pernas estavam rígidas devido a falta de movimento dos últimos minutos, mas a adrenalidade me deu a habilidade que eu necessitava. Chutei seu abdome e recebi um golpe nas costelas que fez com que eu me curvasse. Aproveitando a vantagem, o homem agarrou minha nuca e bateu minha cabeça contra a parede, não forte o suficiente para me fazer perder a consciência, mas pude sentir o sangue escorrendo pela minha testa.

–Você vai atender o telefone e dispensar quem quer esteja querendo falar com você, está entendendo? E se ao menos pensar em dar uma de espertinha, aceitarei sua sugestão e enfiarei uma bala na sua cabeça.

Não era exatamente aquilo que eu queria? Um tiro e, simples assim, tudo estaria acabado. Claro que não. Não estava procurando a morte, falara daquela forma antes devido ao pavor que os tambores causavam em mim, mas não, eu não queria morrer.

Fui até o telefone e o retirei do gancho. Senti o gélido cano da arma contra minha nuca e estremeci.

–Alô? - forcei a voz ao máximo.

–Agnes? Aaron me falou que você resolveu tirar uma semana de folga. O que diabos está acontecendo? Eu achava que voltar para a BAU era o que você mais queria - Matt Cruz esbravejou do outro lado da linha.

–Matt, não posso falar agora…

–Como assim? - ele me interrompeu - Se você acha que vou proteger seu emprego dessa vez…

Encerrei a ligação abruptamente e encarei os olhos azuis que me aguardavam.

–E agora? - perguntei, fingindo petulância.

–Agora nós vamos nos divertir, querida.

–x-

Dois dias se passaram desde que eu entrara em minha casa e encontrara meus cães mortos, que já haviam sido descartados no lixo. Nesse interlúdio, o homem que me fazia de refém saía do apartamento constantemente, para não levantar suspeitas. Comprava o café da manhã às 8h, o almoço 13h e o jantar às 23h. Dizia para o porteiro que eu me recuperava de um resfriado e eu duvido que alguém tenha se questionado se aquilo era ou não verdade, aliás eu não mantinha nenhum contato com vizinhos e afins.

O sujeito perdera a paciência para “brincar de gotas”, como ele se referia ao modo de tortura, porém encontrara outra forma tão eficiente quanto de me atingir.

–Me diga - perguntara no dia anterior - depois que seu marido morreu, o que você fez?

–Você provavelmente já sabe - respondi evasiva.

–Mas quero que diga mesmo assim.

Eu estava sentada no sofá, desamarrada e ele, na poltrona. Apontava a arma em minha direção.

–Comecei a abusar do álcool - falei com relutância e esperei que ele se satisfizesse com aquilo, mas seus olhos permaneceram inquisidores. Suspirei - Fui internada em uma clínica de reabilitação por 5 meses.

Ele sorriu.

–Agora sim! Não é bom ter alguém com quem conversar sobre essas coisas? Você não sente como se tivesse tirado um peso das costas? - seu olhar era leve e, enquanto falava, sacudia a arma em minha direção. Cogitei um ataque abrupto, pois ele não parecia empunhar a arma com força. Talvez se eu conseguisse chutar seu braço, ela cairia e… Não, ele não estava perto o suficiente. - E você vai para reuniões de grupo de apoio e coisas desse tipo?

–Fui por um tempo - aceitei que a melhor forma de distraí-lo seria continuar conversando - mas isso foi há anos.

–Sabia que eu também frequentei um desses grupos depois da explosão? Mas não deu certo, era tudo uma grande porcaria, ninguém daquele lugar tinha o direito de me dizer como lidar com a dor - seu tom era selvagem, ele falava desenfreadamente. Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro - Eles não entendiam.

Aproveitei que ele fora até a mochila e me afastei ligeiramente para o lado, ficando mais próxima à poltrona, na esperança de que quando ele sentasse novamente, eu pudesse atacá-lo.

–Trouxe um presente para você! Para lembrar os velhos tempos, hein?

Era uma garrafa de Vodca. Encarei-o sem acreditar ou entender qual era sua intenção.

–Ah, não me olhe desse jeito. Vai ser divertido.

E empurrou a garrafa em minha boca, me obrigando a ingerir o líquido. Primeiro senti a queimação na garganta e, simples assim, eu queria mais.

Desde então, em um estado semiconsciente, não arquitetei mais a minha fuga, somente permaneci jogada no sofá, com o corpo pesado demais para levantar. Minha noção de tempo fora afetada e eu sabia que precisava tentar escapar. Estava sozinha, era 22h30 e o sujeito fora comprar o jantar, não estava amarrada, tudo que eu precisava era chegar ao telefone e ligar para Hotch, já que a porta estava trancada. Ou talvez eu só devesse gritar. Mas não conseguia, minha voz não saia.

Então o telefone tocou, uma das provas da autoconfiança do sujeito. Ele estava convencido de seu controle sobre mim e, sobretudo, de minha desistência. Talvez tivesse "batizado" a bebida com algum remédio, isso explicaria meu excesso de sonolência. De alguma forma, dominei minhas pernas e levantei.

Era o porteiro, avisando que eu tinha uma visita.

Um sujeito que dizia se chamar Spencer Reid.

–Devo deixar que ele suba, senhora?