Unfinished Business

Counting started


"O destino é difícil. Será que tudo está predeterminado? (...) Portanto, se o destino é real, nós temos alguma opção?"

Bernard Cornwell

–Sim, sim! Pode deixar o Spencer subir e meu… Ahn, irmão - pigarreei - levou minha única chave. Será que o senhor poderia arranjar uma reserva?

Meu coração palpitava e eu sentia como se cada célula do meu corpo tivesse despertado. O choque de adrenalina expulsou a sonolência e minimizou os efeitos do álcool. Estava na hora de revidar. O relógio marcava 22h50, portanto meu tempo era curto. Iria sair dali, simplesmente isso. Talvez não fosse o mais inteligente a se fazer, porém eu iria fugir e deixar os planos de capturar meu algoz para depois.

–Como assim não tem uma chave reserva? - não fiz esforço algum para controlar a antipatia e o desespero em meu tom. - O senhor precisa ter uma chave reserva!

Antes que eu pudesse continuar contestando, a voz do outro lado da linha me interrompeu e precisei me segurar para não cair.

–Não precisa se preocupar, Sra. Weston. Seu irmão está aqui na portaria e vou pedir para que ele acompanhe o cavalheiro até seu apartamento. - disse de forma amistosa. Deixei o telefone escorregar.

Droga.

Tentei esvaziar a mente e pensar no que fazer, mas estava assustada demais. De alguma forma, conseguira arrastar Reid para meu abismo pessoal. Pude ouvir o tom resoluto de J.J ao dizer que isso aconteceria ressoar em meus ouvidos. Ela esteve certa desde o início.

Ouvi o tilintar das chaves, duas vozes conhecidas preenchiam o ambiente e, da forma mais assustadoramente peculiar, Spencer estava à minha porta.

–Agnes! Encontrei seu colega... Como é mesmo, ah sim, Dr. Reid! Esbarrei nele na portaria. Parece que vamos ter companhia para o jantar, hein? - falava com um ar de sarcasmo e animação, seu sorriso me irritou a tal ponto que quase pensei em atingi-lo e revelar a verdade naquela hora, porém ao olhar para o coldre no cinto de Reid, percebi que ele estava desarmado. Provavelmente já teria passado em casa depois do trabalho e viera somente pois... Na verdade, eu não fazia ideia do porquê.

–Só apareci para ver se você estava bem, não quero ser um estorvo - seu desconforto era evidente.

–Não, não! Imagina se você iria nos atrapalhar, não é, Agnes? Nunca conheci nenhum dos colegas da minha irmã - passou o braço pelos meus ombros com tamanha naturalidade que conseguiu até mesmo acobertar meu impulso de repeli-lo. - Sente-se, por favor.

Spencer hesitou, mas obedeceu, sentando-se na poltrona indicada. Eu estava de tal maneira aterrorizada que não pude esboçar nenhuma reação. Elaborei diversos planos em minha mente sobre qual seria a melhor forma para proceder. Cogitei se eu e Reid conseguiríamos subjugar o sujeito, porém era uma arma contra dois agentes, sendo que um deles se encontrava em estado de quase completa embriaguez. Imaginei que, se eu seguisse o show particular, em algum momento, aquele sujeito ficaria entediado e deixaria Reid ir embora. Virei para meu irmão e lancei-lhe um olhar suplicante e esperei que ele entendesse o recado. Faça o que quiser comigo, mas o deixe ir. Recebi um sorriso sádico em resposta.

Sentamo-nos ao sofá, de frente para Spencer, e evitei olhar diretamente em sua direção. Sabia que naquele exato momento seu cérebro estava borbulhando de informações e que ele percebera que havia algo fora do lugar. Procurei relaxar e aparentar normalidade, aliás, ele não podia desconfiar de nada. Olhei ao redor e notei que meu apartamento não apresentava nenhum indício de que alguém estivera sendo mantido como refém nos últimos dias, a única coisa que diferia seu estado atual do antigo e habitual, era a ausência de meus cães e uma mochila jogada em um dos cantos na extremidade da sala.

–O que foi isso na sua testa? - perguntou franzindo o cenho.

Passei a mão instintivamente sobre o curativo mal feito em meu rosto e sorri.

–Abusei um pouquinho da bebida e escorreguei na cozinha.

–Isso acontece com mais frequência do que ela gosta de admitir - o homem ao meu lado falou, em tom zombeteiro. Um pensamento aleatório invadiu minha mente. Toda aquela cena teatral me enojava, mas era necessária. Recordei o monólogo que fui obrigada a escutar quando entrei em minha casa e encontrei um invasor. Ele não queria me matar, mas sim me destruir. Procurar por um ponto fraco, algo que eu me importasse o suficiente para sofrer pela perda, tal qual ele sofrera a morte da família. Meus olhos encontraram os de Spencer mais uma vez, porém não mantive o olhar. Virei para o lado e compreendi perfeitamente os próximos passos daquele desconhecido. Ele atacaria Reid.

Contudo o inusitado aconteceu.

É doloroso admitir que uma agente do FBI, cujo trabalho consiste em analisar as mais diversas mentes criminosas, tenha se surpreendido completamente com as ações tomadas por aquele unsub em particular. Até aquele momento, eu o julgara como um vingador paciente, sádico, organizado e confiante. Diversas pesquisas foram necessárias para que ele decidisse a forma de me punir, afora isso, o tempo era outro fator crucial. Ele não cometia erros, não se deixava seduzir pela raiva e, por todos esses propósitos, eu deveria ter entendido que ele não sacaria a arma e atiraria em dois agentes federais, entretanto também não manteria Reid como refém porque, ao contrário de mim, alguém sentiria sua ausência. Apesar disso, me surpreendi e estremeci quando ele levantou do sofá.

–Posso ver que vocês dois querem conversar e eu tenho muito trabalho a fazer. Claro que não tão nobre quanto o de vocês, mas garanto que vão ouvir falar de mim, algum dia - gargalhou e curvou-se para cumprimentar Spencer - Foi um prazer conhecê-lo, Dr. Reid.

–Igualmente - respondeu, porém fez nenhuma menção de apertar a mão que lhe era estendida.

–Spencer não dá apertos de mãos - comentei com a voz opaca.

–Bom, de todas as formas, foi um prazer. - Fez um leve meneio com a cabeça - E você, irmãzinha, fique bem, viu? - inclinou-se para beijar minha testa e aproveitou para sussurrar no meu ouvido - Não faça nada que você vá se arrepender e espere minha ligação.

Recolheu sua mochila e saiu pela porta, ainda sorrindo. Eu estava em choque, atônita demais para mover algum músculo.

–Ele não é seu irmão - o murmúrio rouco de Spencer me trouxe de volta à realidade.

–O que?

–Ele não é seu irmão - repetiu. Então lembrei que, de fato, eu não tinha nada aparentemente em comum com o sujeito.

–Mães diferentes - expliquei.

–Não precisa me contar se não quiser - retrucou.

–Spencer, não sei do que você está falando, ele é meu irmão! Nós só não temos contato um com o outro, ele cresceu com a mãe em outro estado e não nos vemos muito desde que éramos crianças - menti e ele assentiu, mas ainda pude enxergar um quê de hesitação em seu sobrolho. - Espero que isso não soe rude, mas... Que diabos você está fazendo aqui? - gargalhei mais por nervosismo que qualquer outra coisa.

–Sei que Hotch deu uma semana para você repensar sua decisão, mas, para falar a verdade, eu não esperava que você fosse, de fato, repensar. Achava que a BAU era tudo o que você queria e, mesmo assim, não apareceu por dois dias, então...

–O trabalho não é tudo, Reid - menti, pela segunda vez. O trabalho, principalmente para pessoas como eu, é tudo. Ele representa uma pequena válvula de escape a qual você se agarra e tenta convencer de que há um propósito para sua existência. Me doía saber que aquilo também se aplicava a Reid.

–Posso fazer uma pergunta completamente diferente? - assenti e ele prosseguiu - Por que você ainda está usando as mesmas roupas de dois atrás? - Comecei a rir e ele seguiu a deixa.

–A ressaca não é gentil com algumas pessoas.

Ficamos em silêncio por uns instantes e notei que Spencer se preparava para partir, a comida chinesa permanecia intocada na mesa de centro da sala.

–Odeio comida chinesa - reclamei.

–Irmãos deveriam saber disso.

–Sim, deveriam - respirei fundo antes de fazer minha próxima indagação. Eu sentia todo o cansaço causado pelo estresse dos últimos dias jogado em minhas costas de uma vez só, mas o efeito do álcool passava lentamente e foi preciso muita força de vontade para me impedir de pegar mais uma garrafa de vinho, que fora trazida junto com outras pelo sujeito. - Você lembra do rosto dela?

Pensei que ele não entenderia a pergunta, porém eu sempre cometia o erro de esquecer com que estava falando.

–Nitidamente.

–Imagino que sua super memória ajude nesse aspecto, mas... Sabe o que é engraçado, Reid? Vivi com um homem durante quase dez anos e, hoje em dia, tento invocar seu rosto e certos aspectos já não me vêm com tanta facilidade. - Dei uma risada amarga - Às vezes, preciso olhar algumas fotos para me lembrar.

–Já faz um tempo... - tentou me consolar.

–Não, Reid, não faz. Pelo menos não tempo suficiente - interrompi.

–Lembra quando você me disse para não transformar o trabalho na coisa mais importante da minha vida? Então... É difícil fazer isso quando ele é a única coisa que se tem.

–Mas não precisa ser assim, você ainda é tão jovem e tem tanta coisa pela frente...

–Todo mundo diz isso, mas chega um momento em que isso deixa de ser verdade.

–Mas não precisa deixar de ser! - insisti - Reid, a sua vida não acabou! Eu sei que você tem a sensação de que nunca mais vai sair do mesmo lugar, mas isso passa. J.J deixou escapar que você quer ter filhos, um dia - ele sorriu embaraçado - É quase como imaginar uma criança cuidando de outras, sem contar no fato que seus filhos iriam sofrer muito por serem as únicas crianças de sete anos que saberiam o que é a Teoria das Cordas - brinquei e nós rimos um pouco - mas tudo isso ainda vai acontecer. Você vê agora? Os melhores anos da sua vida ainda estão por vir.

–Talvez você esteja certa.

–Como assim "talvez"? Você pode, por favor, parar de duvidar da voz da sabedoria? - fiz um meneio com as mãos para me indicar.

–Então porque você acha que tudo isso que você disse se aplica a mim, mas não a você?

–Ah, Spencer... É complicado - esfreguei as têmporas - Algumas pessoas estão quebradas demais para que uma simples fita adesiva mude alguma coisa.

Nossa conversa me fez esquecer completamente o sujeito sádico que provavelmente estava planejando formas melhores de me atingir, porém o toque estridente de um celular acordou minha memória. Demorou um pouco até que eu encontrasse a fonte do barulho. Atendi e uma voz tranquila e leitosa encheu meus ouvidos.

–Não esboce nenhuma reação ao ouvir o que vou dizer. Se você for tão inteligente como espero que seja, ainda não contou nada para o doutorzinho. Se tiver contado, lamento muito. Responda com sim ou não: você disse alguma coisa?

–Não - respondi tepidamente.

–Ótimo. Agora, Agnes, nós vamos nos separar por um tempo. Nem pense na possibilidade de colocar sua equipe atrás de mim, isso só vai piorar as coisas. Usei minhas habilidades e já descobri onde seu amigo especial mora, então saiba que, a qualquer sinal que eu imaginar ver de que você está atrás de mim, ele morre. Fique quieta e espere minha próxima ligação, isso vai ter dar uma chance de salvar seu amigo - fez uma pausa e quando voltou a falar, seu tom era triunfante - Você vai me ver em cada esquina, vai chegar em casa com a arma à postos, temendo me encontrar. Eu sei disso, mas espere e não tente bancar a heroína, nós dois sabemos o que acontece quando você faz isso. Pessoas morrem. Até mais, agente Weston, você finalmente mostrou ser alguém interessante com quem jogar. A contagem começou.

E desligou.

Voltei para a sala e olhei para Spencer. Imaginei que tipo de pai ele seria e soube que minha caçada pessoal podia esperar, eu não iria tragá-lo para minha bagunça.

–Eu estou realmente muito cansada...

–Entendo. - levantou-se e fez menção de sair, mas deteve-se à porta - Te vejo no trabalho amanhã? - assenti com fervor e ele acenou. - Tchau, Agnes.

–Tchau, Spencer.

Joguei-me no sofá e afundei, só então soube que não aguentaria ficar naquele apartamento. Depois de uns 20 minutos da saída de Spencer, coloquei um casaco por cima da roupa suja de terra e sangue de dois dias atrás e saí. Andei até um parque próximo do meu prédio e sentei em um dos bancos, era tarde e somente alguns casais passeavam naquelas mediações. Apoiei os cotovelos na coxa e escondi o rosto com as mãos. Eu queria gritar, chorar, espernear, mas estava esgotada demais para aquilo.

Quando finalmente pensei que aquele dia tivesse finalmente acabado, meu celular tocou. Presumi saber quem era e, pela segunda vez no dia, meu palpite se mostrou errado.

Sim, eu com certeza iria trabalhar no dia seguinte. Tinha um caso em mãos.

E o relógio tiquetateava, enquanto a vida de alguém corria perigo.