Underwing

Mas... o que aconteceu?


—-- Frisk, Leah! O jantar está pronto! --- Toriel grita da cozinha, grito qual eu e Leah respondemos em uníssono com um "ESTOU INDO!".

Desço as escadas um pouco sem vontade, não sei o que aconteceu, desde que voltei para casa tenho estado meio indiferente à tudo, até mesmo à comida, que é uma das coisas que eu mais gosto em todo o mundo. Fico pensando se isso tem alguma ligação com o que fiz.

—-- Prontinho --- a monstra diz, me despertando de meus pensamentos e me fazendo voltar o olhar para a comida que tinha acabado de pousar sobre a mesa ---, podem vir comer.

Comemos em silêncio, todos estavam famintos, mas, quando eu já havia quase terminado, ela começou o assunto, o que eu tanto queria evitar.

—-- Bem, eu tenho ido até a cama de flores, e notei que nos últimos dias as Ruínas têm andado bastante quietas --- nesse momento quase me engasgo, mas consigo disfarçar ---, eu, pelo menos, não vi absolutamente nenhum monstro, isso aconteceu com vocês também?

—-- Sim, eu também não vejo ninguém andar por aí faz, no mínimo, uns três dias. --- Leah diz, então eu empalideci, os músculos tão rígidos quanto pedra, apertando meu garfo tão forte que os nós dos meus dedos estavam mais brancos que meu rosto --- Frisk, você está bem?! --- ele diz colocando a mão em minha testa para medir a temperatura.

—-- Estou sim, só uma tontura que me deu! --- solto uma risada nervosa --- Bem, voltando o assunto, não vi ninguém, estranho né? --- então ponho uma garfada cheia na boca, na tentativa de desfazer a tensão que me encobria.

—-- Mas o mais estranho --- Leah tomou a palavra de novo --- é que as Ruínas estão completamente sujas, parece que alguém não limpou a casa durante um ano, ou mais, e quando finalmente faz isso, espalha a poeira por aí.

Não consigo dizer mais nada, e Toriel também parece que não. A expressão em seu rosto era de medo, mas eu não tinha certeza, não consegui identificar, mas desconfiei de que ela já tinha percebido o que aconteceu, só não queria nos contar, ou mesmo suspeitava de um de nós. Entrei em desespero internamente, se tivesse um ataque ali mesmo não me surpreenderia, mas sou obrigada a prestar atenção novamente quando ouço o barulho do garfo arranhando o prato e percebi que já havia comido tudo. Uma oportunidade de escapar.

—-- Eu queria terminar essa conversa, mas estou muito cansada, então já vou subir. --- digo me levantando.

—-- Claro, pode ir. --- Toriel diz, ela me analisa com os olhos de quem procura algo, mas sem perder a doçura que continha neles --- É até bom que durma cedo hoje, quero lhes ensinar algo amanhã, e tem que ser logo de manhã, ou não conseguirão aprender tudo. --- ela termina, olhando para Leah, como que dizendo para ele ir dormir também.

—-- Boa noite. --- digo aos dois, sem esperar para saber se o moreno subiria comigo. Ao chegar em meu quarto apenas me joguei na cama, me enrolando nas cobertas, e adormeci.

Não foi um sono tranquilo, repleto de pesadelos com rostos deformados, uma grande e fantasmagórica luz e poeira, muita poeira, eles me fazem não querer dormir, mas meu corpo exige isso mais do que eu gostaria.

Eu estava tendo esse tipo de sonho com bastante frequência desde o meu ataque, Na verdade acho que só havia tido ele todas as noites, e até mesmo quando tirava um pequeno cochilo. Não importava o tempo, assim que eu fechava os olhos uma luz forte me acertava e minha visão era preenchida com os rostos se desfazendo em poeira.

Apesar dessa grande frequência, eles me assustavam, e muito, tanto é que, na manhã seguinte, acordo arfando e prestes a cair da cama, o que realmente acontece. Sinto o choque térmico do encontro da minha pele quente com o chão frio, mas não me movo, fico pensando sobre o que sonhei. Conversando, na verdade.

—-- Por que? --- pergunto baixo, já estava cansada, só queria um pouco de descanso adequado.

Não sou eu, e eu já te falei!

—-- Mas não tem como ser outra coisa, afinal é você minha cabeça, não?

Não houve resposta durante alguns poucos, mas eternos segundos, eu queria uma resposta, um motivo, queria saber por que isso acontecia, é pedir demais?! Eu já me irritava com isso quando o silêncio foi rompido:

Sou sua cabeça como um todo, mas sou dividida e essas partes de mim são independentes, quem está fazendo isso é a sua consciência

Fazia sentido e por isso concordei aceitando a resposta, mas ainda queria que parasse, precisava que parasse, quando abri a boca para pedir que minha cabeça fizesse algo, um barulho estrondoso surgiu vindo da minha porta, me dando um susto enorme.

—-- ACORDA PRA CUSPIR, FRISK, É HORA DE ACORDAR! --- vejo Leah parado com minha porta escancarada atrás de si, ele estava batendo com uma colher de pau numa panela como se sua vida dependesse disso! Se ainda estivesse em cima da cama, tenho certeza de que cairia de novo.

—-- O QUE QUE É ISSO?! VOCÊ QUER ME ENFARTAR?!! --- grito de volta, cheia de raiva, em horas como essas eu gostaria muito de ainda não ter nutrido nada por esse idiota.

—-- A culpa não é minha de você dormir feito uma pedra e não ser possível te acordar de outro jeito, me desculpa. --- ele diz sorrindo, porém não mudei minha expressão de puro ódio em nenhum momento --- Além disso, lembra que a mãe disse ontem que iria nos ensinar algo hoje de manhã? --- ele fez questão de frisar o horário do dia que eu menos gosto.

—-- Pois a culpa também não é minha --- digo tentando me defender ---, digo, acho que sou assim desde que era um bebê, então acho que não controlo isso. E sobre a aula da mamãe, não, eu não lembrava.

—-- Mas agora lembra, então se arrume antes do café, ou vai ficar sem!

Me levanto preguiçosamente do chão, me vestindo muito devagar, com minha curiosidade como a única motivação para não voltar a cama, mesmo que não voltasse a dormir, ali era quentinho e aconchegante. Depois de descer e comer, Toriel nos levou para fora de casa.

—-- Venha cá --- ela chama Leah ---, você irá gostar disso. --- então ela pôs a mão no peito dele, que brilhou de leve revelando, quando ela tira a mão, um coração azul claro. Me lembro do meu encontro com Flowey aos quatro anos, quando a mesma coisa aconteceu, mas de forma menos amorosa e, invés de azul, o coração, minha alma, era vermelho.

—-- O que é isso? --- ele pergunta.

—-- Essa é sua alma, a própria culminação do seu ser... --- ela começa uma explicação, da mesma forma que aquela flor, mas depois dessas palavras não consigo mais entender o que ela diz, a mesma sensação de quase morte que tive naquele encontro percorreu pelo meu corpo, contudo eu não senti o medo e terror daquela noite, ao invés disso veio um vazio, algo parecido com fome, mas era diferente, era mais forte, quase sentia que poderia me controlar.

Cambaleei, me recostando na parede para tentar recuperar o equilíbrio, então isso veio a minha mente:

Saia.

Corra.

Fuja!

Você não vai aguentar por muito tempo!

A mesma sede que me atormentou por anos voltou, e mais forte, não poderia ficar ali por muito mais tempo… eu não aguentaria por muito mais tempo…

Toriel e Leah estavam bastante entretidos, quando os olhei, Leah segurava um escudo azul, da cor de sua alma, em uma das mãos, enquanto que com a outra o que pareciam ser pequenos raios de luz lhe escapavam, tentando ganhar forma.

—-- Frisk! --- ele me chama entusiasmado --- Olha isso! É incrível!

—-- Tente também, minha criança --- Toriel disse com seu tom doce, mas pude ver outra coisa nele, uma certa tristeza acompanhava a doçura em sua voz e emoldurava seu olhar.

E aquela sede de novo.

Corre antes que faça, ande!

—-- Eu adoraria, mas preciso muito ir ao banheiro, já volto. --- eu disse e entrei correndo em casa, indo direto para o banheiro para ficar um pouco ali, pelo menos até que aquela sede parasse. Isso era o que eu pretendia.

Não demorou muito e ouvi batidas na porta, Leah queria saber se estava tudo bem, e então meus braços se mexeram contra a minha vontade, um abriu a porta bruscamente, fazendo Leah cair para dentro do banheiro, e, antes de qualquer reação que ele pudesse ter, minha mão pegou a faca de brinquedo que eu carreguei comigo desde que a achei.

A pequena faca foi até a garganta do garoto, a lâmina de borracha pressionando cada vez mais forte, que eu não duvidava que ele morresse em algum momento, só que por falta de ar e não por algum corte.

Eu não conseguia me controlar, mas então parei, afrouxando o aperto do brinquedo nele, só que o controle ainda não era completo, e eu ouvi palavras saindo da minha própria boca:

—-- Se você sequer pensar em dizer isso para ela, uma coisa pior que isso vai acontecer… entendido?

Ele assentiu com um maneado de cabeça, pude ver o terror em seus olhos e, enfim, ele saiu.

Já é tarde…