Underwing

Pequena Visita


O escuro encobria tudo, claro era sempre escuro por ali, e as iluminações eram lampiões pendurados pelos corredores, mas parecia que, quando a noite chegava a superfície, a escuridão abraçava o subsolo com mais vigor. Mas isso não impediria a menina, não agora que estava quase pronta.

Frisk tinha se preparado para qualquer incidente, com comida e água em uma mochila, além de outros objetos, como uma corda e sua faca de brinquedo, sem falar de seu arco, que ficava praticamente grudado em si durante quase todo o tempo. Estava determinada a sair daquelas paredes já tão conhecidas, dos labirintos arroxeados que começavam a sufocar de tão pequenos.

No dia anterior, depois que voltou para a “aula” de sua mãe, assim que passou os pés da madeira para o tijolo, o mundo começou a se encolher e uma sensação claustrofóbica lhe atingiu, o ar faltava em seus pulmões e um ataque começava a pôr suas garras no corpo da menina. Se controlou por muito pouco para que não assustasse mais ainda sua família.

Mas, depois do “incidente”, uma coisa não saiu de sua mente:

Já é tarde…

O que isso significava?

Pensava com a mente a mil enquanto procurava descer as escadas silenciosamente até o hall de entrada, tomando cuidado com o ranger das tábuas lisas que os degraus tinham, pronta para descer a próxima escadaria, agradecida por esta ser feita de pedra, que a levaria para a porta que guardava a saída das Ruínas, a qual sempre quis atravessar, mas nunca o fez por lhe faltar coragem, e também por obediência a sua mãe, que tinha lhe proibido de ir ali. Contudo, hoje ela iria atravessar a tal porta, precisava disso, um pouco de ar, um pouco de algo novo, um lugar onde não tivesse nenhum pecado.

Ao chegar no pé do último degrau ela apenas correu, nas pontas dos pés para tentar evitar o barulho. Não voltaria atrás agora, mesmo que alguém acordasse, só continuaria.

Enfim cara a cara com aquela porta, olhou ao seu redor certificando-se de que, ao contrário do que sua imaginação criou, ninguém havia lhe seguido, e realmente ela se encontrava sozinha no pequeno cômodo, pondo-se agora a analisá-lo, acabando por pousar o olhar em uma pedra consideravelmente grande, isso lembrou-a de que não trouxera nada para prender a porta, quer dizer, não sabia se precisaria de algo para prendê-la, mas é sempre bom se prevenir, e também não queria ser trancada para o lado de fora de casa, por mais que ela estivesse sendo uma grande prisão, então começou a arrastar a rocha, que se provou, além de grande, muito pesada. Quando finalmente conseguiu posicioná-la, estava sem fôlego, sentia como se tivesse corrido uma maratona, todavia não parou, caminhou até atravessar o portal, se encontrando com uma floresta coberta de neve.

Agradecia a sua consciência por não tê-la deixado sair de casa antes de pegar um casaco. Andou seguindo uma trilha, chegando até uma ponte com barras de madeira. Eram muito largas, então não teve dificuldade em passar por entre elas. Seguiu pela trilha e encontrou diversos quebra-cabeças, como os da Ruínas, porém, assim como as falhas barras de madeira, esses eram fáceis de contornar, ficara imaginando durante o trajeto quem foi o arquiteto incompetente que os tinha feito. O único momento em que realmente sentiu algum medo foi quando precisou atravessar uma ponte de corda, que se balançava e se inclinava para os lados sem parar.

Assim que chegou ao fim da ponte, ficou tão aliviada de ter sobrevivido que nem reparou por onde andava até chegar em uma cidade, onde parecia estar havendo algum tipo de festa, pois era tarde da noite e, como se desafiasse as horas, as ruas estavam bastante movimentadas. Todas as casas que enxergava estavam enfeitadas com pisca-piscas, igualmente as árvores, que tinham caixas com embrulhos coloridos embaixo de suas folhas. Apesar desse clima aconchegante de boas vindas que a pequena cidade oferecia, ela não estava se sentindo confortável lá.

Algo se remexia dentro de Frisk, o mesmo desejo por sangue que teve nas Ruínas, junto de um incômodo em suas costas, pequenas cutucadas fáceis de suportar, mas ainda assim que surpreenderam a garota, afinal nunca teve qualquer tipo de problema nessa parte de seu corpo. Apesar dessa nova dor, se é que pode ser chamada assim, o que estava causando mais desconforto, e consequentemente, ganhando mais de suas atenções era a sua sede.

Sua cabeça girou e perdeu o equilíbrio, estava muito tonta, se continuasse ali não acabaria bem, podia sentir isso. Muitos monstros no mesmo lugar estavam desestruturando seu autocontrole, precisou se afastar. Foi para detrás de uma casa, procurando conter toda a violência que quisesse sair de seus atos.

—-- Oi! --- ela pulou de susto. Um pequeno monstrinho amarelo sem os braços se aproximou, com um grande sorriso que mostrava presas afiadas; seria assustador se não fosse tão desajeitado --- Você está bem? Eu posso ajudar em alguma coisa?

Hesitou em demonstrar qualquer reação, a respiração agora precisava ser forçada para dentro de seus pulmões e, de novo, perdeu o controle.

—-- Pode, pode sim... --- então, mesmo que quisesse, não pôde evitar, sacou a faca de brinquedo e o atacou. Mas, de alguma forma, parou no meio, algo a impedia, mais especificamente uma luz azul tremeluzente e fraca. O monstrinho saiu de baixo de Frisk tremendo de medo, correndo para perto de um outro monstro. Este pareceria ser bastante desleixado se visto em um lugar qualquer, com a jaqueta azul e bermudas pretas largas e as pantufas cor-de-rosa encardidas, Frisk até achava que tinha passado o olho por ele enquanto ainda estava na festa; mas neste momento ele emanava um ar ameaçador, com a órbita esquerda brilhando em azul e amarelo.

—-- Quem é você? --- a caveira perguntou, sua voz era rouca e arrastada, quase morrendo de tédio mesmo no tom de ameaça que tinha soado.

—-- Não te interessa, palhaço! --- Frisk respondeu seca e rude. Não responderia nada, ao menos sua língua precisava controlar.

—-- Como adivinhou que sou o palhaço da região? --- a voz do outro era pura ironia --- Mas de qualquer forma, também sou um sentinela, se puder ser considerada um perigo, isso me interessa mais do que imagina. ---a garota grunhiu raivosa, era só o que faltava, ser pega. Se calou e não ousou emitir sequer um som --- Acho que não tenho escolha... --- foi tudo que conseguiu ouvir antes de sentir algo perfurando sua barriga. Iria morrer? Era o que achava e parecia. Porém, quando tinha certeza de estar deixando esse mundo, quando até conseguia sentir as mãos gélidas da morte, levantou em sua cama, ofegante e suando.

Aquilo não tinha sido um sonho, não podia ter sido um sonho, era real demais, doloroso demais. Olhou em volta de seu quarto, reparou na mochila que arrumou antes de sair. Não havia sonhado com o futuro, não é?

Estava rindo feito uma idiota, incrédula com o que aconteceu. Uma luz recaiu sobre seus olhos, a cegando por um momento. --- Minha criança, está tudo bem?

—-- Ah... é, s-sim.

—-- Tem certeza?

—-- Sim, por que não estaria?

—-- Então o que faz acordada a esta hora? --- Toriel estreitou seus olhos em desconfiança. Essa pegou a menina de surpresa, não soube o que responder, e pela demora a guardiã já soube que havia algo errado --- Sabe que pode me contar, se abra comigo.

—-- Mãe... --- hesitou, pouco, determinação enchendo seu corpo inteiro --- ... será que eu poderia… --- fraquejou mais uma vez, mas seria agora ou nunca, essa era sua única oportunidade, então disse quase como uma ordem --- Eu quero sair das Ruínas!