Poucas coisas faziam com que Dulce desistisse de algum projeto que tinha em mente. Uma delas era a falta de apoio de quem estivesse a seu lado, isso a desanimava e a fazia rever o planejamento do projeto em questão. Outra era o risco que era colocado a partir do momento em que decidia colocar em ação. Por último, Dulce decidia desistir quando havia uma barreira muito grande que não a deixava seguir. No caso do concurso, Dulce tinha três problemas.

Com o atentado na escola, Dulce tinha conseguido o apoio do estúdio de dança da cidade, que não era assim tão aberto mas tinha concordado em ceder o espaço para os ensaios. No entanto, ao comunicar a Margaret a solução pra o problema, esta tinha sido contra e tinha dado uma bronca enorme por Dulce não ter comentado antes de ter feito.

— Você não está autorizada em negociar em nome da escola — a diretora proferiu. — Nós temos regras em relação a isso, contratos, tudo tem que ser muito bem conversado e acordado antes de colocar as crianças lá dentro.

— Margaret, você tinha alguma melhor opção que essa? — Dulce perguntou, em tom de desafio.

— Não. E nem você poderia ter feito — Margaret estava irredutível.

— Está feito, conversado, eles estão de acordo com o que combinamos. É tudo questão de publicidade — argumentou.

— Não podemos usar nossos meninos como moeda de troca, isso não é ético.

— Os meninos não são moedas de troca. São o resultado de um treino árduo — Dulce, que antes estava dando voltas na mesa de reuniões da escola, sentou-se de frente para a diretora, segurando as mãos dela. — Veja, eles não vão conseguir competir se não ensaiarem. Eles não vão conseguir ensaiar se não tivermos um lugar para isso. E não podemos deixar que as crianças paguem pelo erro de outra pessoa. Eles irão ensaiar num espaço adequado e competir. É para isso que estou aqui, para defender esse direito deles.

— Dul, isso é ótimo. Mas não podemos fazer as coisas assim, de sopetão. Temos que ter uma estratégia, um papel assinado, tudo certinho. O que diremos aos pais?

— Já tenho pronto o texto explicando sobre a mudança de local e a frequência dos ensaios também, com a data e o horário certinho. — Dulce tirou de dentro de uma pasta um papel com um texto explicativo e entregou a Margaret. — Também explico aqui que a escola de dança cedeu gentilmente o espaço de graça e que, em gratidão, vamos colocar o estúdio como patrocinador.

— Certo. Eu vou colocar no modelo timbrado. — Margaret tirou o papel da mão de Dulce, lendo-o rapidamente e indo até o computador da sala. — Mas eu preciso que você faça algo para que eu fique tranquila com essa situação.

Dulce assentiu, em concordância. Faria qualquer coisa para não perder esse aliado importante.

— Vou fazer um contratinho em duas vias, explicando os termos. Que eles nos ajudam com o espaço e a dança durante esse período e nos horários que você colocou aqui e, em troca, a gente promove o nome deles na capital. Sem menção a dinheiro. — A diretora olhou séria para Dulce antes de sentar-se à frente da tela para digitalizar o documento. — E você se encarrega de que tenhamos tudo assinado e arquivado aqui na escola. Vamos assinar nós duas e Daisy.

— Considere feito, chefe.

Dulce concordou, sem maiores questionamentos. Se esses eram os termos da escola, então ela seguiria. Ela sabia que seguir com os ensaios era uma forma de continuar e mostrar ao autor dos atentados que ele não mudaria a vida dela fácilmente, ela lutaria contra isso. Por outro lado, ela sabia que seria um risco. Ele tinha pedido a ela que o encontrasse, e ela estava evitando por enquanto, porém chegaria o dia que o encontro aconteceria. Até lá ela teria que estar atenta, não queria que ele inventasse boatos sobre ela e divulgasse por aí. Isso acarretaria consequências não apenas a ela, como também à escola e às crianças.

Em relação às barreiras que envolviam o concurso, ela tinha muitas. Passara os últimos dias com dores e estava convencida que em algum momento elas a venceriam e isso atrasaria todo o cronograma de ensaios. Fora isso, ainda havia o receio de Dulce em encontrar-se com seu passado no dia da apresentação. Seus medos a corroíam.

Mesmo com todas essas questões permeando o projeto, Dulce não se deu por vencida. Com a ajuda de Margaret ela enviou os comunicados para os pais das crianças e conseguiu as assinaturas necessárias. Em poucos dias os ensaios voltariam ao normal.

Sentada no sofá da sala de Gabriel, ela parecia que não estava ali. Ele comentava animado sobre algo que tinha acontecido no aeroporto durante a semana, mas não prestou atenção em nenhuma palavra, até que Gabriel percebeu que estava falando para as paredes.

— Nesse dia, eu resolvi voar com o retorno da torre desligado. Toda uma aventura, o que você acha?

— Sem retorno? — Dulce perguntou, voltando à realidade, depois de passar alguns minutos sem ouvir sobre o que o namorado falava. — Não pode fazer isso, pode?

— Então para me dar bronca, você pode me ouvir? — Gabriel questionou, erguendo as sobrancelhas.

— Desculpe. Eu estou um pouco longe hoje.

— Dul, o que está incomodando? — Gabriel era assim. Ele deixava de lado tudo o que queria falar para ouvir e tentar ajudar. Era uma das coisas que Dulce mais gostava nele. — Fale um pouco para que eu possa entender e te ajudar.

— Não é nada. Eu estou distraída hoje, é só isso — Dulce disse, sem muita importância.

— Está preocupada com o concurso de novo? Ou com o stalker solto por aí?

— Um pouco dos dois, para falar a verdade. — Dulce estava encostada em Gabriel, mas nesse momento se levantou para ficar de frente para ele. — Eu não estou segura quanto aos riscos disso tudo, mas sei que preciso seguir adiante.

— São ossos do ofício. De ser líder.

— Eu não gosto de ser líder, exige tanto, tem tantas consequências. — Ela baixou os olhos, voltando na posição que estava antes. — É bastante exposição.

— Acho que você consegue lidar com exposição, já fez isso antes pelo que eu entendi, não é?

— Por muitos anos. Eu sei da parte boa e da parte ruim. O problema é que a parte ruim, quando acontece, é num nível astronômico…

Dulce não pode terminar de falar, interrompida pela campainha. Gabriel se levantou e, minutos depois voltou com um pacote em mãos e uma carta.

— Certo, eu não estava esperando nenhuma encomenda — ele comentou, colocando a caixa sobre a mesa de centro da sala. — Devemos abrir?

— Talvez a carta primeiro, o que acha? — Dulce ponderou.

Ele esteve de acordo e, com ajuda de uma tesoura, eles abriram envelope. Dentro havia mais um daqueles bilhetes que, agora, Dulce guardava como uma coleção macabra de provas de que algo estranho estava acontecendo. Juntos, eles leram as palavras que explicavam o pacote que chegou junto.

“Você não me deu nenhum sinal de que se encontraria comigo. Não é possível que tenha medo de conversar. Vou marcar uma nova data e eu espero que você compareça. Ah, em sinal de paz, envio um presente. Espero que goste.”

O bilhete não fazia menção a nenhuma nova data, apenas que seria marcada. O casal olhou para o pacote sobre a mesa, ainda receosos sobre o conteúdo. Bem, uma pessoa que tinha estado ameaçando e chantageando não poderia ser de confiança para mandar um presente. No entanto, Dulce tirou das mãos de Gabriel a tesoura e cortou as fitas que mantinham a caixa fechada.

Dentro dela havia revistas. Diversas, de vários anos diferentes, em que Dulce tinha sido alvo de boatos e especulações. Seu nome e sua imagem estavam estampados nas capas e Gabriel olhava ao mesmo tempo com curiosidade e assombro. Dulce, por sua vez, sentiu medo. No meio das revistas havia um novo bilhete, que dessa vez trazia escrita uma data, um horário e um endereço. Ela precisaria encontrar essa pessoa, ou não ficaria em paz.

***

Semanas de total correria, ensaios e trabalho duro, tanto da parte de Dulce, quanto das crianças, que agora já estavam na segunda fase dos ensaios e estavam empenhadas em aprender as coreografias que Jorge ensinou. Parecia que tudo corria bem: os atentados cessaram, ninguém mais viu sinal de bilhetes misteriosos e Dulce já sentia que a confiança voltava para perto dela.

A data marcada pelo jornalista, repórter ou seja lá o que fosse o autor dos vários atentados pela cidade, já se aproximava, ainda que ele estivesse em silêncio. Dulce pensava e reiterava a cada dia se realmente iria aceitar o convite, tinha as opiniões contra, que vinham de Gabriel e de Jorge, e a favor só tinha o apoio de Paola. Ela concordava com a amiga que fugir mais dos problemas não resolveria e não ajudaria ninguém, muito menos a ela mesma. Mas enquanto o dia não chegava, ela tentava não pensar nisso e seguia ensaiando no estúdio de Daisy, já que a escola ia sendo reconstruída pouco a pouco.

— Muito bem, meninos! — Dulce sempre tentava validar o esforço das crianças, ainda que houvesse pontos para melhorar. — José, nessa parte que você vai para a direita, tente atrasar só um pouquinho seu movimento. Quando tentarmos de novo, tente se lembrar. Mateo, dê um passinho para frente, verá que assim não precisará se preocupar em não trombar com as meninas.

As crianças pareciam chateadas quando ela as corrigia, mas era seu papel e não podia ter pena de fazer os apontamentos. Como professora, era ela quem tinha que olhar os defeitos para ajudá-los a melhorar. Mas ela notou que eles estavam desanimando frente às críticas, então precisaria conversar com eles novamente.

— Crianças, vamos voltar a fazer nosso círculo? Vamos lá, precisamos conversar… — Ela esperou que todos se posicionassem, para então começar a dizer o que precisava. — Vejam, eu entendo que essas semanas estejam sendo muito difíceis para vocês. Primeiro, esse atentado que assustou todo mundo, e aí as rotinas de aulas mudaram, e ainda a gente começou os ensaios. Eu sei que vocês acham super chato eu ficar apontando os erros e corrigindo toda hora. Mas vocês entendem por que eu faço isso?

Os meninos se entreolharam, esperando algum porta voz tomar a iniciativa de responder, entretanto, ninguém quis dizer nada. Então Dulce prosseguiu:

— Eu preciso mostrar para vocês, como quem está de fora da apresentação, onde é que vocês estão errando, onde precisam melhorar, porque muitas vezes vocês sozinhos não conseguem perceber de onde estão. Eu tento ao máximo valorizar também aquilo que está certo! Pensem comigo: é como numa prova de matemática. Vocês podem tirar um oito, e ainda assim, se errarem alguma conta, o professor precisa descontar os pontos, não é?

Eles assentiram.

— Ele precisa mostrar onde é que vocês erraram para que numa próxima vez fiquem atentos e acertem. Eu tenho que fazer o mesmo. Mas eu também vou ter que dizer que vocês estão indo super bem! Para tão poucas semanas, aprenderam tudo muito rápido. Algumas coisas se perdem aí no meio, porque é um grupo grande e às vezes fica confuso mesmo.

— Como você sabe? — José perguntou, tomando coragem em se colocar.

Dulce suspirou antes de abrir algo tão íntimo a eles.

— Vocês devem lembrar que eu tinha uma memória muito ruim quando comecei a dar aulas para vocês, não é? — Esperou que eles concordassem antes de continuar. — Eu lembrei algumas coisas. Eu já passei por muito que vocês estão passando, então posso afirmar que o processo de grupo é bem difícil, mas o resultado é muito legal. Tudo bem?

As crianças afirmaram com a cabeça, seguidos de uma ordem de Dulce para que se levantassem para repassar as músicas mais uma vez antes de sair.

Ao final do ensaio, os alunos pareciam estar cansados, mas um pouco mais animados. Dulce sentiu que a conversa que tiveram tinha feito toda a diferença na egergia do ensaio e saiu satisfeita, depois de deixar o estúdio de Daisy em ordem. A recepcionista olhava com cara de poucos amigos enquanto todos se despediam e saíam, apenas falando algo quando a professora passou por ela.

— Ei! — ela chamou. — Deixaram uma coisa aqui para você.

Ela estendeu a mão entregando um pedaço de papel bem amassado e rasgado, que que claramente continha uma frase escrita numa letra muito familiar a ela. E isso fez com que Dulce sentisse um frio na espinha como há muito tempo não sentia.

“Estamos quase chegando ao dia que combinamos. Espero que não me falhe.”

— Quem deixou isso? — perguntou à recepcionista, tentando esconder o desespero na voz.

— Foi o carteiro.

— Tem certeza? — Dulce precisava saber se seu possível rival teria estado ali tão próximo.

— Não sou cega.

Dulce suspirou e virou as costas, esquecendo até de se despedir da moça. Saiu quase correndo, não fosse pelas limitações físicas que a impediam de andar mais rápido do que fazia. Precisava novamente falar com os amigos, já que Gabriel não estava na cidade. Precisava saber o que fazer.

Chegou em casa e encontrou Jorge e Paola sentados no sofá com expressões nem um pouco convidativas.

— O que aconteceu?

— Amiga, temos que conversar — começou a dizer Paola.

— Chegaram três bilhetes aqui — continuou Jorge.

— Então são quatro — respondeu Dulce, estendendo o papel que recebeu no estúdio.

O primeiro bilhete estava nas mãos de Jorge, dizia com a mesma letra já conhecida: “Espero que não tenha se esquecido do nosso compromisso. Já sabe que precisamos conversar e fazer alguns acordos.”. Quase o mesmo teor do que já tinha sido conversado algumas semanas antes, também por bilhetes. O segundo já trazia algo distinto, que fez Dulce ficar alerta: “Sei que você ainda está em dúvida sobre nossa conversa. Quero que saiba que já tenho tudo arranjado e ela precisa acontecer, se não quer que eu exponha os fatos.”. Como sabia ele sobre a dúvida dela? Resolveu, antes de dizer qualquer coisa aos amigos, ver o último bilhete. Este tinha um endereço, muito familiar a Dulce, ainda que ela não soubesse que estivesse tão claro em sua mente. Era o endereço de seus pais.

Ela colocou os bilhetes de lado, esfregando os olhos, numa tentativa de se acalmar.

— Amiga, o que você acha? — Paola perguntou, tentando descobrir o que se passava na cabeça de Dulce.

Ela demorou a responder.

— Eu acho que está passando dos limites. Segundo essa pessoa, ou eu converso com ele e “pago” alguma coisa pelo silêncio, ou conto tudo e ele ganha uma bolada por colocar na mídia. Ou, se eu não for, ele vai expor o que ele quiser para minha família. E sabe-se lá o que vai inventar sobre mim.

— E você chegou a tudo isso como?

— Jorgito… Acordos, para mim, querem dizer ou dinheiro ou exposição. E esse endereço aí é da casa dos meus pais. Eu já entendi o que ele quer…

— Mas você acha que seus pais acreditariam numa história cabeluda, se ele inventasse algo? — Jorge contrapôs.

— Quando a mentira é bem inventada, se usa elementos reais misturados com os absurdos, e tudo parece muito plausível. — Dulce respondeu, apertando os olhos e permanecendo em silêncio por algum tempo, não dizendo mais nada.

Paola se aproximou da amiga, pensando que algo não estava certo, colocou a mão em seu ombro, perguntando se ela se ela se sentia bem. De resposta recebeu um rápido “eu já venho”, e em seguida, se levantou. Nem dois passos foram dados por Dulce antes de que desmaiasse.

***

Abrir os olhos parecia doloroso, era uma luz afiada que entrava na retina e feria. Feria também a sensação de que tudo rodava dentro de um lugar branco, limpo, imaculado. Feria o som agudo que apitava ao seu lado. No fundo, Dulce sabia onde estava, mas não tinha muitas forças para deixar a ideia clara. Ela sabia que algum dia isso aconteceria, que acabaria recaindo e voltando ao hospital. As dores recentes indicavam que não demoraria muito a acontecer, e estava certa.

Tentou olhar à sua volta, com o pouco de controle que tinha, mas não viu ninguém. Voltou a fechar os olhos, quase se rendendo ao sono induzido pelos medicamentos, quando ouviu a porta se abrir. Alguns passos se aproximaram, dando a volta na cama e arrastando a poltrona para perto dela.

— Hoje era o dia marcado e você não apareceu — disse uma voz ao seu lado. — Achei que ainda estaria aqui. Vou expor meus termos e então conversaremos direito.