Uma Aventura Para Recordar

Dois Tigres; um confuso encontro.


Ataques vindos de todas as direções a fizeram recuar, erguendo a lâmina e bloqueando-os sucessivamente — vultos velozes e alvacentos deturpando sua percepção.

O albino não cedeu ou recuou sequer uma vez — suas investidas cada vez mais intensas e consistentes. Tigresa tomou nota da velocidade e força descomunais da qual ele dispunha; mas não se deixou intimidar, reagindo de imediato.

Com respiração ofegante e a lâmina à centímetros do pescoço, ela desviou , e instruiu seus companheiros:

— Vão na frente, alcanço vocês depois — saiu da direção de outra tentativa de corte, dessa vez cambaleando e quase caindo sob seus próprios pés.

— Mas... — ouviu Kuo choramingar ; mas foi incapaz de voltar-se para o pequeno, ocupada demais observando o drástico padrões de ataque do inimigo.

— Vão! — ordenou ela — Estão me distraindo, vão agora! — bramiu ainda sem olhar para trás, gradualmente se familiarizando com o ritmo do guerreiro.

O próximos instantes foram passados em silêncio. Ambos encaravam-se, estudavam-se, mantinham a postura ereta e alerta à qualquer tentativa de quebra da momentânea paz que ali se instalara.

— Por que mandou seus amigos embora, hein? — Yuan tomou a palavra; sua voz soou extremamente rouca, o que ela interpretou como resultado da fadiga.

A saliva invadiu sua garganta e permaneceu ali , exercendo seu papel como lubrificante e deixando um gosto estranho na boca, até o momento em que decidiu falar.

— Não interessa — retrucou simplesmente, esperando por uma reação.

Tigresa reconheceu quando as patas grandes e peluda se moveram em sincronia. Ou seu inimigo, apesar de exausto, estava inquieto; ou então, planejava surpreendê-la num contra-ataque .

Suas orelhas se animaram, vigilantes a qualquer movimentação ou som suspeito. Quando terminou, certa de não mais ser vigiada pelos colegas, preparou-se novamente e avançou na direção do tigre.

Como o previsto, ele desviou.

No intervalo de tempo que gastara — ínfimas frações de segundo — ela pôs seu plano em prática. Esgueirando-se e tendo a perfeita vista de suas costas, ela o chutou na dobra do joelho, deixando um profundo rastro de sangue na parte inferior da coluna — por onde sua espada passara enquanto retornava à posição original.

Fixou o olhar nos movimentos do tigre, calculando a velocidade que agora possuíam — alguns segundos haviam sido extraídos do ritmo original, ela percebeu.

Se permitiu um pequeno sorriso e atacou outra vez. Yuan teve sucesso em seu bloqueio, e mesmo evitou o acesso do oponente à sua traseira; mas, mesmo que alheio ao fato, agiu de acordo com as expectativas da mestra.

A guerreira esquivou-se de uma série de investidas — apenas observando, avaliando o padrões e estilo de luta do inimigo recém-chegado. A cada abertura que encontrou em sua defesa, atacou; ora cortando-o com sua lâmina, ora golpeando-o livremente — sempre tendo em mente os ponto-chave de que deveria acertar, aqueles que gradualmente reduziriam suas capacidades naturais.

Um deslize no entanto — no qual falhou ao vê-lo se aproximar por trás — resultou num corte profundo perpendicular às suas costas. Se virou à tempo de bloquear outro corte e impulsionou-se para trás, tomando distância.

Quando chegou ao ponto planejado, percebeu ter sido muito lenta. O tigre apareceu por trás dela e a chutou, enviando seu corpo a voar por entre uma imensidão de árvores e arbustos.

Sentindo-se colidir com a relva, —ocasionalmente quicando e deslizando na direção de um riacho— grunhiu, interrompendo o percurso com a pata fortemente fixada ao chão.

Sua visão começava à lhe falhar, turva, como se tudo o que via fosse uma ilusão que aos poucos se dissipava. Seus membros pareciam amolecer, perdendo a sensibilidade e cada vez mais predizendo abandoná-la.

Quando girou o pescoço, sentiu um forte ardência se alastrar; finalmente entendeu.

Havia sido envenenada.

Continuou ali; sentada, aguardando por uma melhora que provavelmente não viria enquanto o oponente cada vez diminuía mais a distância entre ambos.

Um riso sádico cortou o silêncio, salientado pelo tilintar vicioso do metal balançando e se arrastando sob a terra.

— Então, chegamos ao fim, huh? — zombou a voz, cada vez mais límpida e distante; ainda que um tanto quanto irritante.

Contradizendo o imaginação e expectativas de seu agressor — que envolviam protestos violentos nos quais bravamente negava rendição e declarava-se ainda capaz de lutar — ela apenas ficou lá, parada sem dizer uma só palavra.

— Então, é assim que vai ser? Sem últimas palavras, discursinho heróico, súplica por misericórdia... nada? — ele pareceu desapontado, sua lâmina balançando continuamente e cortando o vento ao redor dele — Mestre Shifu vai ficar tão decepcionado quando descobrir... — murmurou em falsa compaixão, sorrindo ao vê-la reagir.

Por um instante, ela hesitou.

— O que... disse?

Os olhos do tigre brilharam em maldade.

— O primeiro virou um vilão e foi preso; a segunda, que seria você, morta. O Dragão Guerreiro é praticamente inútil, e os furiosos não são lá grande coisa... — listou casualmente, sua voz jamais se alterando — Seria ótimo mostrar a eles seu cadáver. Me faz pensar... será que o velhote choraria ao te ver morta? — riu ele, em puro desdém.

Tigresa rosnou, as pupilas agora dilatadas, tremendo ao tentar se levantar.

— Desgraçado...

Yuan bufou, revirando os olhos e observando-a sem interesse.

— É só isso o que vai fazer, me xingar? Que chato.

A mestra se forçou a tentar novamente. Pressionou as mãos contra o solo e empurrou a lama sob seus dedos,aos poucos fazendo-se ereta, finalmente capaz de se manter de pé — ainda que com dificuldade.

— Na verdade, tem razão. — vociferou, usando seu pé para trazer a lâmina caída até ela.

— O que quer dizer?

Deu um passo à frente, finalmente abrindo os olhos.

— Não vou me render. — sussurrou, aos poucos sua voz ganhando força — Tem pessoas me esperando voltar; e não é um golpe covarde ou um covarde propriamente dito que vai me impedir de encontrá-los outra vez.

Um sorriso lentamente fez caminho pelas feições alvacentas do tigre branco — todo o sadismo e escárnio anteriores agora completamente perdidos. Embainhou a espada e deu leves tapinhas na vestimenta, certificando-se de deixar a si mesmo apresentável.

— O que...

Pelo que pareceu a vigésima vez aquele dia, ele riu.

— Meus parabéns, você passou — ergueu os braços e imitou a pose de um vencedor.

— Mas...

Interrompendo-a, retirou um pequeno frasco do bolso e lançou em sua direção.

— Faça bom proveito de seu prêmio. Ah, e tente não morrer.

A mestra confusa tentou reformular a sentença anterior, mas fechou a boca ao perceber que seu acompanhante já se movia na direção contrária.

Observando-o partir, desistiu de perguntar — sabendo que, por mais que tentasse, seria incapaz de mesmo falar no estado em que estava.

Seu próximo dilema foi decidir se beberia ou não do frasco.