Um cara mau

Os dois lados da moeda


Como sede de operações especiais e treinamento tático, o complexo dos Vingadores era um prédio de arquitetura imponente e, ao mesmo tempo, acolhedor. Era cercado por belas árvores e um jardim bem cuidado. Os dormitórios, localizados no andar superior, aconchegantes na medida certa; assim os ocupantes se sentiriam mais a vontade em meio aos desafios do trabalho duro realizado ali. Sala de estar, vídeo games e até piscina faziam parte das distrações do lugar.

Desde que se mudaram para lá, cada um dos membros da equipe se familiarizou com algum espaço específico do edifício – um simples local para pensar ou apenas respirar ar puro. Para Natasha, observar a natureza a sua volta de cima do terraço era a única maneira de ‘fugir’, mesmo que por minutos, da rotina frenética que vivia. Por esse motivo, Steve sabia onde lhe encontrar.

—“Você vem muito aqui, não é?”, perguntou ele, encostado na porta de acesso àquele andar.

—“Como descobriu?”, indagou ela, sem se virar para olhá-lo. “Anda me espionando?”

—“Claro que não.”, respondeu ele, se aproximando calmamente. “Mas se não está em nenhum canto lá de baixo... Posso presumir que está no nível mais alto do complexo.”

—“Gosto do silêncio que encontro aqui. Consigo pensar com clareza.”

—“Legal. E no que estava pensando até eu chegar e atrapalhar suas reflexões?”

Natasha abaixou a cabeça e levou as mãos ao rosto – lágrimas pesarosas tomaram conta de seus olhos.

—“Eu não entendo, Steve!”, disse ela, com voz embargada, soluçando bastante.

Rogers prontamente a envolveu num terno abraço. Por confiar nele, Natasha retribuiu, deitando sobre seu ombro sem conter a angústia que lhe devastava. Não havia o que dizer – o silêncio foi a melhor opção de consolo que ele pode lhe oferecer.

—“Por quê? Por que ele foi embora, Steve?”, ela repetia.

—“Nat... Por que acha que Bruce foi embora?”, perguntou ele, num tom de voz suave. “Todos nós achamos que ele resolveu se afastar por um curto período de tempo. Vai voltar quando a poeira baixar. Só faz dois dias.”

—“Eu quero acreditar nisso... Quero muito. Mas algo me diz que as coisas não são tão simples como parecem ser.”

—“Lembra do que Nick disse? Acharam os destroços do quinjet no oceano. Ele deve ter parado sobre algum lugar da Ásia, ou Oceania. Logo o acharão!”

—“E se Bruce não quiser voltar?”

—“Por que não voltaria?”

—“Depois de tudo o que aconteceu... Ele tem medo do que possam tentar fazer...”

—“O que pode ser feito contra o Hulk, Nat?”, indagou Steve.

—“Nada. E é aí que mora o problema. Quanto mais tentarem o deter, mais pessoas estarão em perigo e isso tudo é uma droga de círculo vicioso.”

—“Banner não ia querer isso.”

—“E é por esse motivo que tenho convicção de que ele não vai voltar...”, ela disse, tristemente.

—“Vamos dar um jeito.”, prometeu Rogers, beijando-lhe a testa com carinho. “Arranjaremos notícias sobre ele.”

Natasha sentiu um peso enorme sair de suas costas apenas por desabafar com o fiel amigo. Era tudo que precisava naquela hora – um bom ouvinte e um ombro para chorar.

*****

A aeronave da S.H.I.E.L.D. atingira quinze mil metros de altitude quando contrações musculares involuntárias tomaram conta do seu corpo na mesma proporção em que seus batimentos cardíacos diminuíram para o ritmo de um sujeito normal. O verde que recobria sua pele fora substituído pela característica pigmentação ligeiramente pálida que lhe dava um aspecto nada saudável – resultado da intensa atividade de seu organismo durante as horas de luta que se precederam naquele dia. Banner observou seu rosto natural no reflexo da tela de comando do quinjet, soltando um suspiro longo e desanimado. O mesmo sentimento de culpa que vinha logo após a transformação se fazia presente em cada pedaço do seu interior, com uma intensidade quase insuportável, assim como a vontade de poder acabar com a sina que lhe fora imposta.

Revirando o compartimento de mantimentos, Bruce encontrara algumas barras de proteínas, garrafas d’água e energéticos; o suficiente para lhe sustentar até que chegasse ao seu destino. Com o modo furtivo ativado, não podia ser rastreado, embora pudesse se comunicar com o complexo quando quisesse.

Natasha fora a última pessoa que Bruce contatou. Ela o orientou a dar meia volta até a Helicarrier e se juntar ao grupo no retorno para casa. Sem hesitar, ele simplesmente encerrou a comunicação entre eles e traçou uma nova rota. Os incidentes em Georgetown, na África do Sul, em Sokóvia e em Nova Iorque não foram esquecidos a ponto de que ele pudesse conviver normalmente em meio às pessoas sem ser alvo de críticas e retaliações, sem que o temessem.

Cada minuto em que estivera acima do oceano significou uma oportunidade de mudar de ideia e voltar para o quartel general. Mas sua mente ansiava por paz e serenidade – coisas que não conseguiria com facilidade se permanecesse na sede operacional a espera da próxima calamidade que exigiria o seu segundo lado. Mas para onde fugiria? Se o mundo inteiro carregava consigo o fardo cada vez mais pesado da hostilidade e da intolerância? Dentre todas as possibilidades, a mais remota se tornou a mais acessível.

—“Stark... É o único que pode me ajudar...”, pensou ele.

Dúvidas sobre isso foram rapidamente dissipadas quando Bruce direcionou a nave rumo a Nova Iorque. Parecia ilógico; seria difícil se esconder ali. Porém, julgava que Tony podia ajudá-lo sem contar à equipe sobre seu verdadeiro paradeiro. O primeiro passo seria chegar a torre Stark sem ser visto; depois, entrar no edifício sorrateiramente, falar com ele a respeito da situação e, enfim, cruzar os dedos, torcendo para que o amigo realmente lhe estendesse a mão.

*****

Torre dos Vingadores, Nova Iorque:

—“E a cidade caiu do céu tão rápido que sequer pudemos sair de lá lhe dando adeus... Ultron já estava caído em algum canto e o peso da imensa estrutura de vibrânio e terra compacta forçaram meus ombros até que desintegramos tudo. Foi o fim do caminho onde eu nos coloquei.”, disse Tony, fixando o olhar em algum ponto vago do teto.

—“Tony... Por que você se culpa tanto?”, perguntou Pepper, um tanto aflita. “Cada pedaço disso tudo pertence a um universo maior. E a culpa não é de ninguém.”

—“É, mas fui eu quem começou com isso. O Ultron deveria ter sido um aliado. Uma droga de erro e a falta de juízo me fizeram chegar perto demais do que não entendia e num passe de mágica o ‘Salvador da humanidade’ surgiu e o resto você vê na TV.”, justificou ele.

Para a maioria dos observadores, esta última confissão de Stark soaria, no mínimo, como ultra reveladora. Não era seu feitio admitir qualquer erro que fosse. Contudo, Pepper o compreendia e tentava o aliviar do remorso por ser sua ouvinte e companheira mais próxima.

—“Aliás, você ainda não me falou sobre o Visão.”, disse ela, deitando-se sobre seu colo.

—“Acho que a nossa cama serve para outras coisas além de conversas por horas a fio.”, retrucou Tony, sorrindo maliciosamente e olhando-a nos olhos.

—“Tony!”, Pepper repreendeu. “Lembra de como você ficou quando não me falou sobre Nova Iorque e suas insônias constantes?”

—“Eu estava paranoico... E você nervosinha... Época sombria pra nós dois, né?”, comentou ele.

—“Bastante. Agora me fale sobre o Visão!”, insistiu ela.

—“Bem...”

Tony foi interrompido pelo alerta do celular. O número que aparecia na tela era desconhecido, mesmo assim ele decidiu atender.

—“Quem deseja falar com a mente mais brilhante deste planetinha adorável?”

Pepper revirou os olhos e sorriu.

—“Tony? É o Banner. Está sozinho?”

—“Agora estou.”, respondeu ele, levantando-se rapidamente e saindo do quarto, deixando Pepper sozinha e confusa. -“Por onde tem andado? Todo mundo está te procurando sem parar.”

—“Estou bem. Mas preciso da sua ajuda.”

—“É só pedir.”, disse Tony.

—“Tudo bem... Vou dizer onde estou. Por favor, não surte.”

—“Qual é? Não confia em mim?”

—“Claro que sim, ou não estaria falando com você agora. Bem, estou escondido há exatas duas horas no almoxarifado da torre.”, Bruce disse, sem rodeios.

—“Você o quê?”, perguntou ele, como se não tivesse o ouvido direito. “Como chegou até aqui sem ser rastreado ou impedido de entrar no edifício?”

—“Eu te ajudei a reconfigurar a segurança do prédio, não lembra?”

—“É por isso que o Ultron surgiu...”, provocou Tony, sorrindo descaradamente.

—“Muito engraçado. Pode ficar com essa parte da culpa pra você. A minha já é grande o suficiente...”, retrucou ele.

—“Ei, relaxa! As coisas estão se acalmando... Saia de onde está escondido e venha até aqui.”

—“Não quero ser visto. Os funcionários já saíram?”

—“Sim. O prédio está vazio. Somente Pepper e eu. Tudo bem ela saber?”

—“Acho que sim... Vou subir. Até mais.”

Guardando o telefone no bolso, Tony foi surpreendido por Pepper, que estava parada na porta de acesso à sala de convivência do andar.

—“Com quem estava falando, amor?”, perguntou ela.

—“Com um amigo.”, respondeu ele. “Que, a propósito, vai jantar com a gente esta noite.”

—“Quem?”

—“Banner. Mais uns minutinhos e ele entrará por essa porta.”, disse ele, olhando para o relógio no pulso esquerdo. “Isso te dá pouco tempo para me beijar loucamente.”

Tony se aproximou dela com certa rapidez, esperando que fosse correspondido. Pepper, no entanto, se afastou mais rápido ainda, colocando seu dedo indicador sobre os lábios entreabertos a sua frente.

—“Onde ele estava, por que só apareceu agora e por que aqui em casa?”, questionou.

Tony franziu o cenho.

—“Espero saber de tudo isso tanto quanto você, Pep!”, retrucou ele.

—“Vamos descobrir através dele mesmo, então.”, concluiu Pepper, indo em direção ao grande estofado que ali ficava.

A porta de entrada se abriu e, em seguida, Bruce entrou no cômodo com certo receio. Pepper e Tony o fitaram espantados. Dois dias desaparecido lhe custaram alguns quilos, lhe renderam uma barba crescida, olheiras e uma exaustão claramente visível. Ele vestia um conjunto de moletom exclusivo de agentes da S.H.I.E.L.D; fora o único encontrado no quinjet.

—“Er... Olá, gente... Atrapalhei alguma coisa?”