Um cara mau

Um dia de cada vez


—“Seu antigo quarto está intacto.”, disse Tony, abrindo a porta do cômodo. “Ou seja, bagunçado do mesmo jeito que você deixou.”

—“Ah, obrigado por isso.”, agradeceu Bruce, sorrindo de leve.

—“Grandão, bem vindo de volta. Vou te deixar à vontade. O jantar será servido às sete e meia. Não se atrase.”

Bruce acompanhou atentamente quando Tony saiu do quarto, fechando a porta atrás dele. Correndo os olhos pelo lugar, sentiu-se meio deslocado. Talvez porque havia passado quase quarenta e oito horas como um fugitivo: depois de chegar em Nova Iorque, se hospedou numa pensão extremamente simples em Long Island. De lá, partiu para Midtown Manhattan, região central do Condado de Manhattan – localização do arranha céu onde estava agora. Felizmente, todos os outros estavam no complexo, ou seja, não saberiam do seu regresso repentino.

Calmamente, ele retirou suas roupas e caminhou em direção ao banheiro. Após um bom banho, fez a barba e selecionou as vestimentas para o jantar. Em pouco tempo, estava pronto para encarar o casal que lhe esperava no andar inferior.

—“Está novinho em folha, Bruce.”, disse Pepper, sorrindo gentilmente.

—“Obrigado, Potts. Nada como uma ducha para melhorar o dia.”, respondeu ele, sentando-se no lado oposto ao dela. “Cadê o Tony?”

—“Foi buscar o vinho.”

—“Certo... Está aqui desde quando?”

—“Voltei para a torre logo depois que a equipe retornou de Sokóvia.”, explicou ela. “Tony ainda ficou um dia inteiro no complexo, resolvendo algumas pendências. Uma delas, pra tentar achá-lo.”

—“E a equipe, está bem? Steve, Thor...”

—“Bom, Steve sempre tranquilo. Ansioso para começar o treinamento dos outros. Thor voltou para sua casa. Isso indica que não sabemos quando ele vai voltar.”

—“Como está a Natasha?”, perguntou Bruce, sem rodeios.

—“Acho que bem... Por quê?”

—“Porque é a namoradinha dele, Pep!”, exclamou Tony, que apareceu de repente, assustando-os.

—“Namorada? Você não me contou isso, Tony!”, reclamou Pepper. “De qualquer maneira, fico feliz por vocês.”

—“Er... Não estamos namorando.”, ele se apressou em dizer.

—“Tá falando sério? Todo mundo viu o flerte de vocês naquela festinha de outro dia e na casa do... Quer dizer, no quinjet.”, retrucou Tony, que por pouco não falou sobre Barton e sua família.

—“Eu sabia que deveria ter vindo a essa festa. Como pude perder isso?”, disse Potts.

—“Você não ia gostar do final, amor. Teve tiro pra todo lado. Por que acha que trocamos os vidros?”, Tony disse, sorrindo.

—“Okay, chega de falar sobre isso.”, Pepper falou. “Podemos ouvir o Bruce agora. Por que não quer que o encontrem? Quero dizer... Você deveria ter ido com os outros... Mas está aqui.”

—“Prefiro me manter longe, sabem?”, respondeu Banner. “Já me expus demais... E já causei muito estrago também.”

—“Ficando aqui, você acha que está numa distância segura?”, questionou Tony, enchendo as três taças que estavam sobre a mesa. “Não ficaria melhor com a equipe, ajudando nos laboratórios?”

—“Já comprovei que não há lugar seguro. Eu estava na Índia, ajudando pessoas, quando me trouxeram para cá.”, explicou.

—“Ué, te trouxeram para ajudar o mundo, lembra? Não como médico, mas como um vingador. E convenhamos: é muito mais legal! O que seria de mim sem você para me aparar no ar quando saí do buraco de minhoca?”, relembrou Tony.

Bruce sorriu sem humor.

—“Apenas um ato de destruição é capaz de anular mil atos de heroísmo. Isso faz as pessoas esquecerem imediatamente de quem as salvou.”, ressaltou ele, dando um gole generoso no vinho em sua taça. “Não importa quantas gotas de sangue derramemos por este planeta; somente se lembrarão do que foi derrubado e nunca do que foi construído.”

—“Tem razão...”, concordou Tony. “Sokóvia é um exemplo disso. Fizemos o possível para evitar perdas civis. Eliminamos o Ultron e a ameaça de extinção. Mas agora somos vistos como vilões.”

—“Não os culpo. Não deveríamos ter sequer pensado em inteligência artificial. Apenas arcamos com as consequências das nossas ações, Tony.”

—“Sim, eu admito minha culpa nisso. Ainda assim, não pensamos duas vezes em enfrentar o problema. Fomos lá e resolvemos!”

—“Gente!”, disse Pepper, interrompendo-os. “Já chega disso, okay? Vamos aproveitar o jantar, ouvir uma música e falar de coisas boas. O que acham?”

—“Por mim, tudo bem.”, assentiu Bruce.

—“Pra mim também.”, Tony concordou. “Então, o que houve entre você e Romanoff? Vocês combinam, sabia?”

Pepper fuzilou Tony com o olhar. Ela já havia percebido que a simples menção do nome de Natasha mexia com Banner.

—“Acho que pode falar com a gente, Bruce.”, incentivou ela. “Somos seus amigos. Não é bom guardar esse sentimento pra você.”

Não era problema para ele admitir que sentia algo por Natasha. A verdadeira questão que impedia tal relacionamento era outra. Como poderiam ficar juntos levando a vida que tinham? Aliás, para ela, se desfazer do trabalho e ter uma vida ‘normal’ não seria difícil. Todavia, o mesmo não se dava com ele. Não existia um jeito de se livrar do Hulk. Estava fadado a conviver com essa realidade – sem saber ao menos quando seus dias chegariam ao limite.

—“Agradeço muito por me acolherem aqui.”, disse ele. “E confio em vocês sobre manter o meu segredo. Mas quanto a Romanoff... Não há muito que eu possa fazer. Seria crueldade da minha parte lhe dar esperanças de ficarmos juntos! Isso é impossível. Não tenho condições de ter família, de ser uma pessoa normal. Já aceitei isso, de verdade. Só preciso dar um jeito de voltar para uma vida tranquila, solitária. Onde eu não fique com medo das pessoas e onde as pessoas também não tenham medo de mim.”

Olhando-o com solidariedade, o casal sorriu de leve, sinalizando que o recado fora entendido.

—“Seu altruísmo é comovente.”, disse Pepper, procurando as palavras certas para consolá-lo.

—“Pepper tem razão.”, disse Tony, sendo o mais sincero que conseguia. “Você é uma pessoa incrível, amigo. Sempre pensando nos outros... Mas não acha que seria melhor esclarecer isso de uma vez por todas? Sei lá, dar a ela uma chance de se refazer...”

—“Não sei... Só quero ficar em paz por um instante. Ficarmos longe um do outro me parece ser o melhor agora. É doloroso, sim. E uma hora vai passar.”, concluiu ele.

—“Como quiser. Sinta-se em casa, de novo.”

Sabendo que podia contar com a ajuda de Pepper e Tony, Bruce decidiu permanecer na torre – pelo menos até pensar em outro lugar que o abrigasse sem mais problemas. Não era o correto a ser feito, pois seus amigos o procuravam sem parar, utilizando dos mais diversos recursos para isso. Depois de pisar em solo americano, ele configurou que o quinjet sobrevoasse até outro local, distante o suficiente para a quantidade de combustível disponível, o fazendo pousar sobre um ponto qualquer do oceano pacífico. O tempo de buscas se estendeu de horas para dias, até que os destroços da sua aeronave foram encontrados no mar de Banda, próximo a Indonésia.

*****

O barulho agudo da chaleira despertou-a de seus devaneios, trazendo-a de volta para a realidade. Apagando a chama do fogão, despejou, assim, a água fervente sobre uma pequena quantidade de chá desidratado que jazia na xícara, observando o líquido antes transparente tornar-se ligeiramente acastanhado, característico da bebida. Com cuidado, apanhou o recipiente para si e sentou-se na poltrona que ficava próxima a janela da cozinha. A lua banhava a mata ao redor do complexo, a noite estava fria. As instalações que mais cedo comportaram diversos recrutas e suas atividades estavam vazias e silenciosas – uns dormiam, outros aproveitavam o tempo livre da forma como desejavam. Natasha, porém, não conseguia se distrair tão absorta em divagações que estava.

Mesmo depois de desabafar com Steve, por exprimir suas preocupações e derramar as lágrimas que continha, o dia passou lentamente e nem mesmo sua rotina de intenso treinamento físico fora capaz de puxá-la para fora do poço profundo que sua cabeça havia criado e a lançado sem dó nem piedade. Os golpes desferidos contra o saco de pancada na academia perderam a força e a precisão, a luta corpo a corpo no tatame lhe rendeu alguns machucados e os habituais quarenta e cinco minutos de corrida ao redor do prédio foram substituídos por infames quinze minutos de corrida na esteira, em velocidade baixa. Só cumprira tabela; talvez assim não chamasse tanta atenção por conta da queda do seu desempenho.

Sam, Steve, Rhodes, Wanda e Visão juntaram-se a outros agentes para uma noite de pizza. Por ter se recusado a ir, ficara ali sozinha, envolvida pela solidão causticante. “Como seria bom se Clint estivesse aqui!”, pensava ela. Barton havia deixado a base assim que retornara de Sokóvia, pois Laura estava prestes a dar à luz. No momento emocionalmente difícil em que se encontrava, ele seria um dos poucos que lhe entenderia a mão, que daria o conforto que ela tanto ansiava.

Sem se demorar, depositou a xícara vazia no balcão da pia e seguiu de volta para seu alojamento. O cômodo, iluminado apenas pela luz difusa dos abajures ao lado da cama, parecia bastante aconchegante e isso lhe deu uma sensação de calmaria. Uma breve ida ao banheiro para a última higiene pessoal do dia e Natasha finalmente pode deitar-se sobre o colchão macio, agasalhando-se e abraçando seguramente o grande travesseiro que, nesta noite, seria sua única companhia.

O chá surtiu efeito em pouquíssimos minutos, a desligando da profusão de pensamentos. Ela dormiu ao cair da última lágrima, do último suspiro.

E assim, mais um dia se foi.