Um Breve Suspiro de Felicidade

O Imperfeito Não Participa do Passado


Do lado de fora da janela embaçada, a neve de meio de inverno caía tranquila desde a madrugada. Era cerca de cinco da tarde e o sol iria logo se pôr. Toris parou por um instante diante da paisagem da rua coberta pelo tapete branco, ponderando se nevaria até a noite. A bandeja de prata estava gelada em suas mãos, que buscavam o mínimo de alívio tocando o quanto possível com as pontas dos dedos o bule quente, mas não adiantava muita coisa. Bem que um chá o faria bem, mas não era para ele todo aquele arranjo. Conferiu se estava tudo de acordo, se o leite estava na temperatura ideal e se tinha posto a quantidade certa de biscoitos para acompanhar. Assim sendo, seguiu seu caminho pelos longos corredores, que sempre lhe davam uma sensação ruim de estar sendo observado por todas aquelas pessoas nos quadros que cobriam as paredes.

Já se passara anos desde o primeiro dia que passou pela primeira vez por aquele corredor, com a mala pequena de tudo que teve tempo para juntar tremendo em suas mãos, os ombros encolhidos instintivamente para se esconder dos quadros, e a presença amedrontadora de seu novo dono atrás de si, o guiando pelo lugar.

Toris foi levado pelos corredores e escadas até um quarto pequeno de canto, onde foi empurrado para dentro como foi para a casa e para aquela vida. Era pequeníssimo, com três camas, uma cômoda e uma janela tão pequena que mal servia para entrar ar ou luz. Era mais mofado e empoeirado que o resto da casa; fedia. Era sua nova prisão.

No quarto propriamente dito só ficava durante as poucas horas de sono. A maior parte do tempo passava trabalhando exaustivamente dentro da casa, mas não tinha permissão de sair. Demorou muito tempo para receber uma tarefa na cidade, mesmo que fosse uma simples ida ao supermercado. No começo, ainda, era acompanhado por homens armados, outros moradores do casarão incumbidos de impedir qualquer fuga. Toris não entendia a atitude deles, que eram tão prisioneiros quanto ele, porém com o tempo seu chefe afrouxou e não exigia companhia de seguranças.

Mesmo assim, todas as chances que tinha de abandonar o mofo generalizado do casarão e sentir o vento fresco em sua pele era como tirar férias. Recarregava suas energias e voltava a acreditar na possibilidade de se livrar de sua vida atual e voltar a ser dono de si mesmo, escolher onde moraria e com quem, e ter permissão de ir e vir quando quisesse. Mas logo que os prédios iam rareando e as calçadas iam se enchendo mais de folhas caídas ou neve, anunciando a volta para casa, que sua esperança era rasgada de novo pela implacável realidade.

Com o tempo, a ideia de que seu destino era apodrecer em cativeiro parecia cada vez mais plausível, e Toris aos poucos se acostumou com ela. Já não pensava mais no quanto queria ir embora, só aceitava seu destino e procurava se concentrar em manter-se são e salvo trabalhando sem falhas. Depois de tantos anos passando por aqueles corredores assustadores, um dia como aquele era só mais um de um longo calendário de tortura vagarosa.

Toris precisou subir um andar de escada com a bandeja, o que era um sacrifício para seus joelhos debilitados, porém não tinha muita opção, não poderia querer que houvesse um elevador no velho casarão da família de Ivan Braginsky.

Bateu na porta grossa de madeira do quarto do próprio com as costas da mão, mas não obteve resposta. Depois de insistir mais uma vez, ouviu um baixo “pode entrar” e girou a maçaneta devagar.

— Com licença, senhor. — disse com a cabeça baixa assim que pôs os pés para dentro.

Ivan Braginsky estava de costas para ele, encarando a neve da janela de seu próprio quarto. Toris sábia o quanto ele odiava a neve, embora fosse tão fria quanto ele. Talvez não fosse o ar gelado que embaçasse as janelas, e sim seu olhar fixo. Sem dúvida alguma, ele era um homem para ser temido, tanto por seus aliados quanto por seus inimigos. Quanto a seus subordinados, como Toris, o medo era o que mais os mantinha fiéis. A maioria enxergava Ivan como a encarnação do mal, outros poucos, também ele, julgavam ingenuamente que Ivan pudesse ser apenas um incompreendido e perturbado. Mas não pode deixar de notar que suas luvas estavam sujas de sangue seco.

— Está frio hoje, não está? — sua voz atravessou a sala muito branda, mas fez Toris endurecer no lugar. Nunca era bom sinal quando ele puxava conversa, sobre ele nada nunca era bom sinal.

— Sim, está... — concordou em um sussurro, que era tudo que poderia fazer.

Ivan lhe dirigiu um olhar, mas não disse nada. Passou rapidamente esse olhar para o relógio sobre o criado mudo e então voltou para ele, enquanto pegava um cigarro.

— Está um pouco adiantado hoje. — o coração de Toris deu um salto. Sair do cronograma até mesmo por um chá poderia significar punição, como podia ser tão descuidado de não checar as horas? Mas Ivan não parecia precisamente bravo, apenas pouco surpreso. — Está muito ocupado?

— Ah? — ele demorou para assimilar a pergunta, já imaginando o pior. — N-não...

— Ótimo, então não tem nada para fazer agora? — ele tinha uma expressão inocente, inofensiva, mas Toris continuava com a guarda alta.

— Não exatamente, eu...

— Preciso que de alguém para passar na cidade pra mim antes que escureça.

Toris soltou o ar, notando só então que esteve o prendendo durante todo tempo. Ainda tinha muito trabalho para terminar, mas um pedido como aquele era tranquilizante para alguém que já criava todas as possibilidades de castigo por não estar fazendo nada na cabeça.

Recebeu um envelope lacrado e a única tarefa de deixá-lo no correio para que fosse entregue o mais rápido o possível. Aquilo era estranho porque antes de terem a permissão para sair do casarão e sentir uma amostra do que seria a liberdade, Ivan deixava acumular muitas coisas que precisavam ser feitas fora de lá, então o que ganhavam era sempre uma lista enorme de afazeres. Mas ele só entregou aquilo e não adicionou mais nada.

— É importante. — justificou, percebendo o receio de Toris. Ele não ousou mais questionar, apenas ficou com aquela pulga de curiosidade atrás da orelha para saber o que tanto poderia ser.

Foi saudado quando atravessou a porta do casarão por uma brisa congelada no rosto, que fazia meses que não sentia. Mesmo que a sensação fosse incômoda, era boa, por mais que desejasse naquele momento um dia ensolarado. A caminhada até o ponto de ônibus e do ônibus até o correio foi tranquila, Toris passou a maior parte do tempo observando as pessoas ao seu redor, andando, passeando, seguindo com suas vidas sem terem compromisso de voltar depois. Sentia falta de todas elas, que nem sequer sabia o nome. Da velhinha que levava seu netinho para passear e apontava para os pombos na calçada, aos altos engravatados ao telefone, andando de pressa para resolver os problemas de algum funcionário incompetente. Quanto mais tempo Toris passava longe das pessoas, mas sentia saudade das pessoas.

Estando sozinho, não foram poucas as vezes que nessas pequenas missões a ideia de tentar sumir seduzisse sua mente, mas bastava olhar ao redor para abandoná-la. Se houvesse mesmo essa chance, Ivan não os deixaria sair jamais, se deixava, é porque sabia que poderia pegá-los nos confins da Terra se necessário. Enquanto estivesse fora de casa, estava sendo observado pelos vários “aliados” de Braginski, que nada mais eram que fantoches com medo, que não hesitariam ao denunciar qualquer subversão detectada longe dos olhos do chefão. Chefão não deles, nem de Toris, Ivan Braginski era o chefão de toda a região, e se Toris saísse, ele saberia antes mesmo que tivesse tempo de se distanciar. Não só estava preso numa casa, como estava preso numa terra.

Refletia sobre isso e mais alguns assuntos na volta pra casa, encarando somente o chão logo que começou a se aproximar da rua do casarão outra vez. O pequeno passeio tinha voado em frente aos seus olhos, quase como se nem tivesse acontecido. Essa era a pior parte. Mas naquele dia específico, Toris notou uma coisa diferente na paisagem de sua velha rua, uma pessoa.

Encolhido no casaco grosso e sujo de neve, ele passou a se aproximar mais devagar, para garantir que estava vendo alguém real e de carne e osso, não algum espírito ou miragem. O estranho daquela situação era que nunca tinham pessoas passeando por aquela rua, como se todos os moradores soubessem exatamente quando não sair de casa para evitar encontrar um vizinho ou um pedestre. Mas aparentemente aquele ali não.

Ele estava parado no capacho da casa ao lado da sua, vasculhando os bolsos com uma expressão impaciente. Também estava bem agasalhado, mas seu casaco era branco como a própria neve que o sujava e tinha zíperes dourados nos bolsos que combinavam de certa forma com seu cabelo. Loiro, coberto por uma toquinha de lã preta que parecia ter sido feita a mão. Mas não eram suas roupas que fizeram Toris interromper seu caminho a alguns passos de distância, e sim seu rosto. Quando a aproximação foi suficiente para distinguir os traços delicados de sua fisionomia, se ele segurasse alguma coisa nas mãos, elas já teriam ido para o chão.

Sua parada brusca chamou atenção do outro, fazendo-o virar a cabeça rapidamente, em alarme. Sua presença pareceu incomodá-lo de imediato, visto que ele se contraiu no lugar e deu um passo para trás. Já estava escuro e ver alguém parado te olhando numa rua deserta era naturalmente alarmante, mas Toris nem se lembrou de considerar isso, ainda estava assimilando a situação.

— Feliks?! — o nome saiu por impulso logo que o alcançou em sua mente, causando espanto ainda maior no dito cujo. Toris tentou recuperar a distância anterior avançando, tentando se certificar que não era uma alucinação.

Arrancou o capuz o mais rápido que pôde, a fim de fazê-lo se lembrar de quem era, se fosse mesmo seu melhor amigo de infância que estava a sua frente, depois de tantos anos. Com os cabelos longos e o rosto exposto sob a luz dos postes, Toris tinha as sobrancelhas franzidas de incredulidade e uma pressa estranha de se sentir. Feliks era uma conexão com sua vida antiga que apagara havia tanto tempo, não fazia sentido estar ali. Por um instante, se arrependeu de tê-lo abordado, inclusive pensando na grande possibilidade de sequer ser ele, mas uma voz aguda interrompeu suas suposições.

— Toris? Toris! — foi só o que conseguiu entender antes de sentir um peso contra seu corpo jogá-lo na neve, num abraço caloroso demais para combater.

O gorro do casaco o impediu de bater a cabeça direto no gelo. Apesar do choque pela temperatura em suas costas, as mãos sob as luvas que encostaram em seu rosto ainda estavam quentes.

— Mas é você? — Feliks riu, parecendo não conter a própria felicidade, de uma forma que até Toris julgou exagerada. A neve diminuiu para uma gostosa garoa de flocos sobre eles. — Não acredito..

— Eu que não acredito. Está mesmo tão feliz em me ver? — Toris duvidou sorrindo, tanto quando chegou a duvidar que Feliks Łukasiewicz ainda se lembrasse dele de verdade.

Ele se levantou, espalmando as roupas antes de oferecer uma mão para ajudá-lo, e deu uma risada curta, um pouco zombeteira, bem como ele.

— Você desapareceu. Não me deixou telefone, endereço, nem me ligou, não me deixou nem saber que estava vivo, bocó. — ele tirou uma das luvas e acertou o rosto dele com ela de brincadeira. — Me deve uma por essa.

Toris riu, acariciando a bochecha atingida.

Feliks estava diferente, bem mais alto do que quando eram pré-adolescentes, embora ainda fosse no mínimo uns dez centímetros menor que ele. Tinha o queixo mais fino e os olhos menores e menos brilhantes, mas a cor parecia um verde ainda mais forte. Seus cabelos estavam um pouco mais curtos e mais saudáveis, seu nariz estava mais arrebitado. Já não era mais uma criança, tampouco ele. Mas as coisas não pareciam diferentes.

— Você não mudou nada.

­­— Ah, quanto a isso você está desatualizado... — disse num tom provocante, com as mãos na cintura. — Mas que você não mudou nadinha eu também arrisco dizer.

— Acabou de provar que não mudou nada.

— Ora... — mais uma risada, ainda mais zombeteira, denunciando sua falta de resposta.

Toris se assustou ao perceber que de repente se sentia extremamente leve com aquela companhia, como não se sentia desde que seus amigos foram todos trocados por colegas de trabalho. Embora tanto tempo tivesse passado, Feliks ainda era a pessoa com quem mais gostava de estar.

— E então... — ele prosseguiu, encostando-se a um dos postes. — O que anda fazendo da vida, Toris Laurainaitis?

A verdade seria uma péssima ideia naquela hora, contar que era uma espécie de servo para um homem cruel e esquisito e que provavelmente não tinha permissão para estar conversando era a mesma coisa que o expulsar a pontapés. Se esquivar da pergunta, por outro lado, não machucaria ninguém.

— Nada de mais. — respondeu rápido. — E você?

— Nada de mais. — geralmente, quando perguntavam, Feliks começava a tagarelar sobre si mesmo e não havia reza braba que o calasse, mas ele se limitou a isso para provocá-lo. — Aliás, está frio aqui, não acha? — passou as mãos pelos próprios braços, encolhido. — Não quer entrar?

Estranhou de imediato o convite, e só então entendeu que Feliks se referia a própria casa, na qual estavam parados em frente. Respondeu um “Sim!” animado quase de imediato, mas a imagem do casarão sendo a casa ao lado o obrigou a hesitar. Já era quase hora de todos dormirem então não faria falta, mas se a carta era mesmo tão importante, era possível que Ivan o esperasse acordado voltar. Mas o sorriso de Feliks fazia ser tão difícil recusar. Por só alguns minutos, acho que não vai fazer mal... pensou finalmente, e não pode deixar de se alegrar com o saltinho de comemoração de Feliks quando aceitou.

— Você mora aqui? — perguntou logo que entraram. De certa forma, torcia para que a resposta fosse negativa.

— Acabei de me mudar. — respondeu, orgulhoso. — Não é lá grande coisa, mas quando eu terminar de pintar tudo de rosa vai ficar fabuloso.

Toris olhou ao redor, era uma casa bonita de paredes bege, aconchegante. Os cômodos eram todos conectados, de forma que da sala era possível ver o quarto e a cozinha, separados apenas por uma linha imaginaria. Os móveis eram poucos e velhos, um sofá, uma mesa pequena com duas cadeiras, uma cama de solteiro, um criado mudo, um armário, um biombo, fogão, pia e geladeira, só. Quando eram mais novos, Feliks costumava tagarelar sobre como um dia seria um multimilionário e viveria numa mansão gigantesca, mas aparentemente o destino também não fora generoso com ele.

— Fique a vontade. — Feliks tirou os sapatos sem discrição e jogou num canto qualquer, depois largou o casaco no sofá, reforçando o que dizia.

Ele foi à cozinha para servir algo para beberem, mas Toris permaneceu perto da entrada, acompanhando seus movimentos com o olhar. Ainda não estava claro pra ele se aquilo estava realmente acontecendo. Ele nunca confiou em coincidências.

— Água ou vodca? — ouviu-o perguntar da cozinha, com um sorriso brincalhão e dois copos na mão.

— Á-água, por favor... — pediu, estranhando a oferta. Já era uma péssima ideia estar ali, não precisava piorar tudo com álcool. E o cheiro de vodca o trazia más lembranças.

Da sala, o viu encher os copos e voltar, entregando-o um e ficando com o outro para si. Se sentou no sofá, e fez sinal para que Toris imitasse, e assim o fez. Frente a frente, o silêncio entre os dois pareceu durar vários minutos. Estava um pouco nervoso pela forma como Feliks o analisava, como um jogador de xadrez analisava o tabuleiro antes de uma jogada. Por fim, ele bebeu um gole, tombou a cabeça no sofá, e suspirou.

— O que te traz a esse fim de mundo, Liet?

Um sorriso abriu-se no rosto de Toris assim que notou o quanto sentia falta daquele apelido.

— Era o que eu ia te perguntar. — sorriu — Estou aqui já faz tantos anos, e você...

— Vim por emprego, sabe, tentar a chance numa cidade nova, ou sei lá... — ele disse aquilo com um sorriso quase amargo, provavelmente por estar procurando um lugar diferente quando teoricamente já era para ser famoso. — Mora por perto?

— Er... Mais ou menos... — mentiu, e desviou de assunto. — Com o que trabalha?

— Eu pinto. — anunciou, batendo palmas com animação.

— Sério? — Toris arregalou os olhos. Na escola, Feliks sempre afirmava que com certeza absoluta trabalharia com moda, e passava o dia todo rascunhando vestidos em todos os pedaços de papel que encontrava, então aquilo até fazia sentido, mas continuava o surpreendendo.

— Aham. Um amigo meu me ensinou. Ainda falta desempacotar meus materiais, mas quero ver se volto a pintar logo a tempo da exposição que vai ter naquela super galeria do centro, sabe?

Não, Toris não sabia, sequer sabia da existência de tal galeria, que com certeza nunca esteve na lista de afazeres de Ivan. Mas Feliks parecia tão feliz ao explicar que não interrompeu.

— É para mostrar jovens artistas da atualidade e divulgar suas obras. Imagina, Toris, é minha chance de brilhar! — os olhos dele cintilavam com o pensamento dos holofotes. — Não é demais?

— Sim, é demais...

Agora que estava animado, Feliks não pararia tão cedo de se gabar. Começou a falar de toda a sua carreira até então, sua opinião sobre a arte contemporânea, até os tipos de pincéis que gostava mais e a textura da tela. Toris deixou-se divagar em sua voz alegre e relaxar. Em situações normais, todas aquelas informações o deixariam triste por perceber que não havia feito nada de interessante para poder contar, mas não era o caso. Estava feliz de ouvir sobre Feliks, era como voltar ao passado.

Eram amigos desde criança, Toris passou a infância e parte da adolescência inteira sendo arrastado para as ideias malucas de Feliks e pagando o pato no final das contas. Ele era egoísta e egocêntrico, mas sua companhia era tão divertida que ele relevava as tantas vezes que era deixado de lado. As conversas que tinham eram sempre o ponto alto de seus dias, talvez por isso depois de tanto tempo eles ainda conseguiam conversar como se nunca tivessem se separado. Se não fosse por uma longa dívida com Ivan, talvez nunca tivessem de fato.

— Falando nisso! — Feliks interrompeu a si mesmo no meio do assunto sobre o próprio, estalando os dedos — Acho que tenho um álbum nosso em algum lugar por aqui!

Ele se levantou, caminhando até o criado mudo para vasculhar as gavetas. Depois de fracassadamente fechar a última com força, ele foi para o armário, enquanto Toris só assistia a cena sorrindo pela pressa dele para achar umas fotos velhas.

— Achei! — ele comemorou, depois de já ter jogado vários de seus pertences no chão durante o processo. — E, urgh! Fede a poeira.

Toris se alegrou com a expressão de nojo dele ao trazer o velho álbum, de capa verde com as bordas rasgadas e páginas amarelando.

— Eu nem me lembrava que isso ainda existia. Eu tenho, tipo, um montão de tralha guardada, mas nesses momentos até que vem a calhar, né? — ele ajeitou uma mecha de cabelo atrás da orelha e abriu o álbum, colocando-o no colo de Toris.

— Eu me lembro desse dia... — o sorriso dele se alargou em frente a primeira foto, com os amigos da escola numa festa. Feliks estava com um chapéu cinza e uma blusa inteira brilhante que combinava com seu sorriso de orelha a orelha, enquanto puxava um Toris um tanto quanto envergonhado para tirar a foto, e por isso saíra tão desajeitado.

— Uh! Eu estou tão fabuloso nessa foto! — Feliks se debruçou sobre ele para apontar para uma foto na outra página. Era uma imagem totalmente aleatória dos dois em um dia qualquer, que tiraram simplesmente por estarem de bom humor. Parecia ter sido no dia anterior... — Eu super tenho que voltar a prender meu cabelo assim! Mas se bem que, tipo, eu tenho que aproveitar enquanto eu ainda não tenho nenhum fiozinho branco pra deixar bem solto. Aliás, eu estava pensando em fazer umas mechas cor de rosa ou deixar uma franja, o que acha?

— Eu... — Toris ia responder, mas foi impedido. Feliks batucou o indicador nos lábios, o encarando curiosamente.

— Na verdade, acho você ficaria melhor com uma franjinha mais ajeitada, que tal? — ele começou a pentear seus fios castanhos com os dedos, procurando uma forma que julgasse bonita para ele. — Ficaria adorável...

— Obrigado... — riu, sem graça pela forma com ele brincava com seus cabelos e sorria. Virou uma página do álbum para desviar sua atenção.

Passaram um bom tempo ali, vendo as fotos e rindo dos momentos felizes eternizados e caçoando disso ou daquilo que parecia zoado. Os ponteiros do relógio corriam na velocidade com que Feliks falava, mas Toris estava tão submerso em uma sensação de paz que nem o ouvia falar. Mas o tempo não lhe foi generoso na hora de arrancá-lo de seu estado de felicidade com um badalo alto ecoando na sala. De repente se dando conta dos acontecimentos, Toris deu um pulo do sofá.

— Está tarde, d-desculpa... É melhor eu ir...

Feliks se levantou logo depois, ainda sorrindo.

— Tem mesmo que ir? — ele forçou uma expressão amuada. — Esse lugar é tão chato, é a primeira vez que eu tenho alguém legal pra conversar...

Com Toris era a mesma coisa, de certa forma, mas não tinha tempo para ficar mais apesar de querer muito. Feliks o acompanhou nos poucos passos até a porta, com uma hesitação incomum no andar. Enquanto destrancava a porta, tinha o olhar fixo na maçaneta de modo suspeito.

— Então, hum, legal te ver... — Toris tentou se despedir de forma alegre, mas acabou soando nervoso.

O nervosismo, na verdade, pode ter sido um sintoma do que estava preste a acontecer. Antes que ele pudesse dar um passo para fora da casa e retornar a seu mundinho cinzento, duas mãos seguraram seu rosto com firmeza e o colaram em outro, num beijo. Toris arregalou os olhos, em frente às pálpebras fechadas calmamente de Feliks. Ele acariciava seus lábios com os dele com uma doçura que ele nem chegava a se lembrar da sensação, assim como tocava seu pescoço, para prendê-lo sem precisar fazer força nenhuma.

Aquilo se prolongou por vários segundos, até Feliks se afastar devagar, deixando-o completamente perdido e pasmo.

— Fica. — sussurrou em frente a seus lábios, ainda tão próximos.