Um Breve Suspiro de Felicidade

As Noites São Feitas Para Ocupar Nossas Mentes De Manhã


Toris vacilou algumas vezes antes de finalmente conseguir encaixar a chave na fechadura, tentando fazer todo o silêncio possível com o molho em suas mãos trêmulas. As luzes da casa estavam todas apagadas, revelando que provavelmente todos os outros estariam dormindo, e exigindo o dobro de precaução ao atravessar os corredores para não esbarrar em nada. Mas mesmo com todo o cuidado para manter-se em sigilo, nada poderia calar sua mente barulhenta, quase audível para todos os outros, ocupada em repreendê-lo com todos os xingamentos cabíveis.

Aquilo foi um grande erro, dizia a mente, como pôde ser tão inconsequente? Se descobrirem, ou melhor, quando descobrirem, vão acabar com a sua raça, Toris. Senhor Ivan não tolera insubordinações como essa, como pôde se deixar levar assim?

Foi com esses pensamentos que chegou ao seu quarto. Abriu a porta com todo o cuidado, para não acordar os dois rapazes com quem o dividia, porém esse esforço se provou em vão.

— Por onde você andou? — essa pergunta o recebeu de um jovem de olhos julgadores por trás dos óculos.

— Eduard? Você está acordado? — sentiu seu coração deu um pulo, embora considerasse Eduard um amigo que não representava perigo.

— Fale baixo. — ele bebeu um gole do chá que tinha nas mãos, que impedia de ver sua boca mexer. — Raivis está dormindo. Ele ficou acordado até bem tarde de preocupação, não vá acordá-lo.

— Desculpa... — sussurrou, fechando a porta atrás de si. — E-eu fui à cidade... Senhor Ivan mandou...

— São duas horas da manhã. Não poderia estar lá até agora. — ele estreitou os olhos. Toris sabia que Eduard não se convencia fácil e não aceitava informações pela metade. Mesmo que não o dedurasse, não seria fácil driblar suas observações. — Onde você estava?

— Perto. — não era mentira.

Onde? — insistiu, perdendo a paciência.

— Perto, já disse. — Toris começou a ajeitar sua cama para ir dormir, no intuito de evitar ter que olhar para ele. — Não precisa se preocupar.

— Se estava perto, não estava na cidade.

Droga.

— Escuta, eu...

— Com quem você estava? — cortou.

A pergunta de Eduard o pegara desprevenido, pois indicava que ele já desconfiava da natureza de seu sumiço e agora o julgaria ainda mais. Toris já se sentia confuso o suficiente, mas agora sabia que as coisas só piorariam. Mas se havia alguma possibilidade de contornar a questão, seu tom de voz apreensivo a destruiu:

— O que te faz pensar que eu estava com alguém?

Mas, para sua surpresa, Eduard não deu uma resposta rápida e inteligente que o fizesse confessar tudo. Ao invés disso, ele apenas suspirou pesadamente, tirou os óculos e os limpou com a própria blusa, desgastado com a situação.

— Toris, você sabe o quanto isso é perigoso. Você pode achar que sabe de todas as formas de escapar impune desse lugar, mas hoje você teve sorte. Não faça isso de novo. Nos preocupa.

— Eu não fiz nada. — insistiu, tentando convencer a si mesmo — E não vai acontecer de novo.

— Espero que não.

Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos, até uma terceira pessoa começar a se mexer e desviar a atenção dos dois. Raivis abriu os olhos devagar, tentando se levantar.

— Toris... — disse sonolento, esfregando o rosto. — O que aconteceu com você?

— Nada, Raivis... — Eduard sussurrou, delicadamente. — Volte a dormir. Na verdade, — ele virou-se para Toris — todos já deveríamos estar dormindo.

Ele apagou o abajur, e ninguém disse mais nada.

...

No breu, Toris pôde ver Feliks esticar um sorriso dissimulado ao olhá-lo da outra ponta da cama. Ele subiu no colchão, engatinhando com os pés um de cada lado de seu corpo, com aqueles olhos brilhado na escuridão.

— Então você não esteve com mais ninguém por quanto tempo? — ele riu da situação, parecendo orgulhoso — Que desperdício.

Disse isso levantando a camiseta de Toris até o alto da barriga, aproveitando para acariciar seu baixo-ventre, contornando os músculos aparentes do abdômen. Toris nada fez para impedi-lo, pois estava carente e deprimido demais com sua vida para resistir a um momentinho de mimo que fosse.

Manteve isso em mente o tempo inteiro, mesmo que apenas em segundo plano. Feliks inclinou-se para beijá-lo, beijo este que talvez fosse o décimo ou vigésimo da noite.

— Não se preocupe. A gente recupera o tempo perdido rapidinho.— Feliks brincou com um risinho bobo, chacoalhando os próprios ombros de maneira travessa e até fofa.

Seu hálito provava que não estava cem por cento sóbrio e Toris imaginou que sua situação era a mesma, visto que depois de uns três beijos aquele copo de vodca começara a parecer uma ótima ideia. Já não estava mais sóbrio o suficiente para pensar em todas as consequências desastrosas de estar ali.

Percebeu os botões de sua camisa serem soltos um por um, para deixar seu peito e pescoço livres para aquele que talvez pudesse chamar de amante. O sorriso dele ainda remetia de alguma forma ao Feliks melhor amigo que conheceu, e o deixava um pouco mais feliz por estar ali. Embora, no final das contas, Toris não sabia mais direito o que era felicidade.

A cama dele era de solteiro, os deixando apertados sobre ela, mas o próprio Feliks brincara que era porque não havia necessidade se ficarem muito separados, e Toris concordou, já que continuava sendo uma cama mais confortável que a dele. E logo que terminaram, caiu no sono ali mesmo.

Foi salvo apenas por um barulho no meio da noite vindo de alguma casa por perto que o acordou e o obrigou a situar-se. Confuso, com a cabeça e o corpo doendo, ele fez esforço para recolher suas roupas no chão e ir embora, sem dizer adeus.

...

— Talvez você devesse passar alguma coisa para esconder isso aí.

Toris estava escondido se olhando no velho e manchado espelho do banheiro dos funcionários, onde mal dava para ver as imagens refletidas, mas dava para enxergar claramente as marcas vermelhas que se estendiam por seu pescoço, ombros e colo. Seu cabelo era comprido o suficiente para cobrir a maior parte do que o uniforme deixava aparecer, mas bastava um pequeno descuido num momento de distração para colocar uma mecha atrás da orelha e se denunciar a pessoa errada.

Depois de muito se olhar e muito pensar, Toris concluiu que tudo que poderia fazer era tomar o máximo de cuidado para não levantar mais suspeitas, nem voltar a ver Feliks, por mais que quisesse. Porém, logo a primeira parte do plano deu errado, quando foi flagrado no banheiro por Eduard e seu instinto infalível. Ele apareceu subitamente atrás do espelho, como um espirito vindo buscar sua alma. Mesmo assim, antes ele que qualquer um dos outros treze moradores da casa.

— Hã? — deu um salto de susto, e perdeu a primeira informação.

— Maquiagem, talvez. — recomendou — Peça para a senhorita Katyusha, ela nem vai perguntar por que. Mas não peça à dona Natália, a não ser que queira que essas marcas no seu pescoço sejam de uma faca.

Era para ser uma piada, mas Eduard era péssimo com piadas.

— Com sorte, ninguém vai perceber. — foi a forma que ele encontrou para dispensá-lo, já saído do banheiro antes que mais alguém aparecesse.

— Ao menos use um cachecol. — sugeriu, quando ele já estava um pouco longe.

Ainda não havia amanhecido direito, mas a rotina daqueles empregados já havia começado. Se quisessem tempo para tomar café, tinham de acordar antes do sol. Como ratos correndo pela casa para deixar tudo em ordem antes do despertador do chefe, evitavam serem vistos e se verem, cada um cuidando do próprio serviço para cuidar da própria vida. Nesse momento rápido de se alimentar antes do verdadeiro serviço, comiam em pé, apoiados na pia, ou ao mesmo tempo em que arrumavam o que quer que tenham sujado. Foi assim que Toris encontrou Raivis, após a fuga de Eduard.

Um dos mais novos subordinados de Braginsky estava esfregando um pano no balcão de mármore, nervoso e apressado, segurando um pedaço de pão na boca. Tenso como estava, Toris hesitou a cumprimentá-lo.

— Bom dia... — disse, cautelosamente. — Quer ajuda?

Toris se aproximou para tomar o pano de suas mãos, mas Raivis se afastou bruscamente o braço, como um animal assustado.

— Desculpa... — disse em seguida, como medo de ter sido rude.

— Tudo bem. — Toris desculpou em voz baixa, e se afastou para preparar a própria refeição.

— Eu passei café. — anunciou, depois de um tempo.

— Hm. Obrigado.

Toris serviu-se de uma xícara. Bebeu devagar, incomodado com o ambiente pesado. Nunca fora amigo inseparável de nenhum dos dois, mas se davam relativamente bem e se ajudavam, e tê-los tão distantes e desconfiados o trazia uma sensação estrana. Eduard ao menos se mostrava friamente preocupado, mas Raivis parecia traído sem nem sequer saber o que realmente havia acontecido.

— Você nos preocupou ontem. Chegamos a invadir o porão para ver se não tinham te esquecido lá. — contou Raivis por fim, com voz embargada, sem olhar para ele.

— Desculpa. Olha, eu não sei o que o Eduard te contou, mas...

— Nada. — interrompeu. — Ele não me contou nada. Quer dizer, eu suponho que ele ainda vá contar sobre o que vocês conversaram ontem. — deu de ombros, conformado como o fato de que não saberia por Toris.

— Escuta, eu juro que não acontece nada.... — afirmou, tentando perecer convincente. Tinha medo do que Raivis pensaria dele se soubesse de tudo. Sabia que era tido como um modelo para ele.

— Eu acredito. — interrompeu outra vez, num sussurro. — Se você diz que não fez nada, então não foi nada. — Toris sorriu e estava prestes a agradecer, quando ele guardou o pano e rumou a saída. Antes, porém, de ir embora, se virou para ele com um olhar nebuloso. — Só tome cuidado, pode ser?

Toris assentiu, pouco antes de perdê-lo de vista.

Ainda passou um tempo fitando o nada, ponderando sem alcançar conclusão. O café começou a esfriar em suas mãos, e já não servia mais como fonte de calor, mas bebeu. Bebeu porque tinha medo, e porque tinha sono. Não importava o quanto se sentia indisposto, os ponteiros do relógio não parariam de girar para que respirasse. O trabalho havia de começar.

Geralmente, era um dos primeiros a levantar, fazia o café da manhã para os três e só então ia acordar Eduard e Raivis, e o fato de ter encontrado os dois acordados implicava que estava atrasado. Sua primeira tarefa da manhã era preparam o café da manhã de Ivan, senhorita Katyusha e senhorita Natália.

Fritou as linguiças e deixou a sopa no fogo enquanto cortava os vegetais para a salada. Pepino, tomate, cebola, brócolis, couve-flor, batata, tudo em pequenos pedacinhos misturados em três tigelas de porcelana delicadas. O processo de preparo já tinha se tornado automático há muito tempo, dando assim todo espaço para sua mente continuar remoendo todos os acontecimentos. A culpa e o medo de que a notícia de sua breve “aventura” na noite anterior chegasse aos ouvidos de mais alguém foram seus fieis companheiros.

A sopa começava a cheirar e atingiu seu nariz com uma tortura fumegante. Cheirava bem como comida de verdade, o que o lembrava de que na pressa e na preocupação havia se esquecido do seu próprio café da manhã. Não que um pão amanhecido com restos de geleia se enquadrasse no “comida de verdade”. Largou a salada e pegou uma colher, enchendo-a com um pouco do caldo quente e cheiroso da panela. Bem temperado, como Ivan gostava. Sua boca agradecia. Poderia tomar uma panela toda daquilo, se tivesse permissão para comer a própria comida. Somente naqueles momentos de experimentação que Toris se lembrava do quanto realmente cozinhava bem, e isso tornava a proibição pior. Nada além da regra geral daquela casa, Ivan teria do bom e do melhor, feito pelos empregados que teriam os restos; fosse em comida, roupas, ou aposentos. Isso era o que sua mente perturbada chamava de igualdade.

Uma vez que toda a refeição estivesse preparada, Toris as ajeitou em três bandejas. A primeira de Katyusha, a única dos três irmãos que precisava acordar mais cedo e fazia trabalhos pesados, também a única que os subordinados não usavam uma foto sua para atirar dardos. A segunda de Natália, a misteriosa e maldosa irmã caçula. A última era de Ivan, a mais completa e bem arrumada.

Com cuidado, Toris bateu três vezes com as costas da mão na porta do quarto dele. Como de costume, recebeu a permissão quase alegre do chefe do outro lado, e entrou com mais cuidado ainda.

— Bom dia, senhor. Trouxe seu café. — anunciou, com a cabeça baixa para evitar contato visual.

Ivan estava sentado em sua enorme cama, com as costas em seu travesseiro grosso e nas mãos um pequeno livro de capa azul. Tinha um pequeno sorriso falso desenhado no rosto pacífico.

— Sim, muito bem. Já está me perguntando se você não viria.

Segunda vez que saíra do cronograma em menos de vinte e quatro horas. Isso era motivo de alarme em qualquer situação, mas o receio especial de Toris fez a bandeja começar a tremer com suas mãos.

— Sinto muito, senhor. F-fiz sopa de beterraba, sua favorita...

Claro que fez, era quinta-feira, dia de sopa de beterraba no café da manhã. De maneira alguma aquilo serviria para amenizar seu atraso, simplesmente escapara de sua boca.

— Ah, bom. — mesmo assim, ele pareceu contente — Por favor, não fique aí parado.

Só então Toris se deu conta de que estava demorando demais para entregar a bandeja, tal era sua preocupação. Se desculpou mais uma vez e estendeu-lhe a refeição sem mais delongas.

— Aliás... — começou Ivan, depois de experimentar uma colher de sua sopa. — Não te vi voltando ontem. Quis te esperar, para ter certeza que tudo tinha dado certo, porém você demorou tanto...

O coração de Toris deu um salto.

— Perdi o ônibus para a volta, senhor... — mentiu por impulso. — E o próximo atrasou demais. Perdão...

— Hum, atrasou...? — ele passou o polegar pelo queixo, avaliando a possibilidade. — Esse sistema rodoviário é cheio de incompetentes. Se isso acontecer de novo, volte a pé.

— S-sim, senhor.

Não importava o quanto aquela ordem fosse absurda, uma vez que a cidade ficava muito longe da casa então uma viagem daquelas a pé era suicídio, o que importava era que Ivan tinha caído na mentira. O alívio era um sentimento muito presente no final das conversas com Ivan, quando não acabavam em desastre.

— Dispensado.

— Com licença.

E saiu.

O resto do dia, por incrível que pareça, passou como passava todos os outros dias, sem mais estresse do que o comum. Conforme o sol subia e começava a descer, os pensamentos turbulentos de Toris foram deixados de lado, quase como se nunca tivessem aparecido. Parecia só mais um dia, em que tinha acordado na própria cama depois de dormir na própria cama. Fizera almoço normalmente, cozinhara, conversara com os outros colegas, e quanto mais o dia passava mais, ia se esquecendo de tudo que o levara a preocupação de antes. Uma noite boa. Quem diria que isso poderia ser um motivo para tanto alvoroço.

Vale lembrar, porém, leitor, que esse retorno ao estado habitual está longe de ser sinônimo de relaxamento ou calma. O normal de estar dentro daquela casa era preocupado, sofrendo, mas um sofrimento que já era tão presente que se tornava banal. Infelizmente, as consequências da dose extra de preocupação não iam embora, como aquela dor no estomago terrível que ele mesmo causara.

Mas o que quer que fosse, passaria. Toris poderia colocar a vida de volta nos trilhos facilmente depois do que considerava agora ter sido apenas uma pequena curva. Contanto que nunca mais, nunca mais visse Feliks, ou procurasse por ele, pensasse nele, não, a existência dele precisava ser varrida do universo, em prol de sua sanidade mental. Se fosse qualquer um que não Feliks, talvez pudesse chamar aquilo de exagero, mas só alguém que realmente estivera com ele por tanto tempo sabia o quanto era difícil esquecê-lo, e o quanto o rosto dele assombrava as pobres almas nos momentos difíceis. Toris não queria aquilo de novo, já bastara o que passou nos primeiros meses da casa. Feliks ia visitá-lo todas as noites em seus pensamentos, para lembrá-lo de sua situação deplorável. Agora lá estava ele de novo. Tinha que esquecê-lo por completo e logo. Não tinha tempo para suas piadas, não tinha tempo para suas mãos quentes ou seus lábios doces, não tinha tempo para nada além da dura luta pela sobrevivência que travava todos os dias, cuja inimiga era muitas vezes sua própria mente.

E para piorar, não era apenas responsável por si mesmo, era também responsável pelas pessoas ao seu redor. Foi esse o papel que tomou para si quando encontrou tanta gente desesperada, que se agarraram nele como uma espécie de irmão mais velho, alguém para confiar. Isso o obrigava a se manter firme em certos momentos, quando estavam todos olhando, para os ainda mais desesperados se apoiarem em uma figura que ainda não sucumbiu a toda a dor. Era só faixada, e aumentava a carga que Toris era obrigado a suportar, porém ao menos lhe servia de consolo pensar que era um pouco admirado, mesmo sem ter feito nada para merecer.

Como naquele momento, que precisava impedir que suas mãos tremessem mais do que já tremiam. Estavam todos os empregados reunidos na cozinha, tensos e pensativos, esperando alguma novidade da sala de jantar. A porta estava quase inteira fechada, deixando apenas uma frestinha por onde eles ouviam os gritos. Ivan estava bravo, oh Deus, ele estava bravo. Aparentemente, um empregado descuidado havia quebrado uma de suas travessas favoritas cheia de comida em seu velho tapete caríssimo. O coitado tentou se desculpar o máximo que pôde, mas aquilo não traria a travessa ou o tapete de volta. Na tentativa de amenizar a situação, Katyusha, a grande defensora dos pobres e inocentes naquela casa, interveio pedindo do irmão piedade. Ivan, que não estava tão bravo assim antes, encarou aquele ato como uma insubordinação tremenda, e agora estava bravo com os dois. Natália, por sua vez, escolheu o lado do irmão, simplesmente ficando quieta e só se pronunciando para por mais fogo. O pobre empregado, que Toris quase nunca via por lá, mas que não teve intenção nenhuma, estava terrivelmente assustado, à beira das lágrimas de desespero. Limparia tudo depois, pagaria o prejuízo pelo tapete com ainda mais trabalho do que já era submetido, mas isso não parecia deixar Ivan mais calmo.

— Ele é louco. — murmurou Eduard com os dentes trincados, apertando o punho em frente ao rosto.

— Será que vai machucá-lo? — perguntou um dos empregados mais novos presente, tremendo.

— Claro que vai. Já viu alguém cometer um deslize desses e sair saltitando?

— Só espero que senhorita Katyusha não se machuque também. — disse outro rapaz, engolindo em seco.

— Será que um dia teremos paz? — sussurrou Raivis, se encolhendo perto de Toris. — Será que um dia ele entenderá que somos humanos e nos permitirá viver de verdade?

— Para isso, ele teria que ser humano primeiro. — Eduard estalou a língua.

— A pergunta é por que nós deixamos? — outro se pronunciou, irritado, mas mantendo o tom de voz baixo para não ser ouvido da sala de jantar — Por que nós não lutamos para acabar com tudo isso? Só viveremos sem medo quando estivermos fora daqui. Meu voto é por lutarmos.

Toris estava assistindo a discussão, com o olhar perdido no nada. Pra que tanta dor? Coitado do rapaz que estava na outra sala. Queria correr e intervir por ele, ou correr para seu quarto e gritar até perder a voz, mas as mãos agarradas em seu uniforme o lembravam de que não podia. Raivis precisava dele.

— Lutar não vai resolver nada. — finalmente disse, depois de ficar um bom tempo em silêncio. Todos se viraram em sua direção. — A verdade é essa. Se lutarmos agora, só iremos nos desgastar, e o castigo será pior.

— Mas se ficarmos, nada vai mudar! — aquele levantou a voz, irritado com sua passividade — Você por acaso gosta de ser tratado que nem lixo enquanto os três têm do bom e do melhor, a nosso custo!?

— Não foi isso que nos prometeram na repartição... — lembrou um garotinho da Moldávia, do outro lado da sala — Não era para sermos todos iguais nessa casa?

— O que é a teoria, se não um monte de mentiras?

Toris suspirou, tentando encontrar palavras para acalmar aquelas almas revoltadas. Mas era tão difícil defender algo que mal se acredita...

— O que eu estou tentando dizer é... As coisas estão ruins agora, mas não vai adiantar nada ficar batendo nossas cabeças sem um plano e alguma vantagem. Essas coisas se fazem com o tempo. — ele fez uma pequena pausa, coçando a cabeça — E se você pensar, ele já não está mais tão mal quanto antigamente...

Era verdade, mas não verdade o suficiente para servir de justificativa para qualquer coisa. Nem todos na sala admiravam Toris, e esses ficaram ainda mais revoltados com a tentativa dele de amenizar as coisas para o lado de Braginsky.

— Como pode dizer isso numa hora dessas?! — um deles bateu o punho contra o balcão em que se apoiava

— É claro que ele iria defendê-lo. — comentou outro, com desprezo. — Afinal...

— Não me faça essa cara. — Toris interrompeu o mais educadamente possível antes que terminasse a frase cujo final ele conhecia, tentando parecer firme. Convenhamos que ele era melhor na primeira coisa que na segunda, porém detestava aquele tipo de acusação tão fora de contexto.

— Gente, gente... — um outro rapaz, que não havia falado ainda e estava espiando pela fresta o tempo todo, os chamou. — Ele está levando-o para o porão...

Todos se calaram imediatamente e abaixaram o rosto para o chão, num silêncio de luto. Estavam torcendo e rezando para que aquilo não acontecesse, mas era óbvio que iria cedo ou tarde. Não, ele não iria morrer, mas todos lá sabiam o que ele iria passar.

No silêncio que se prolongou por alguns minutos, ficaram os onze imersos em suas reflexões, à medida que os gritos do colega na outra sala foram ficando tão baixos que desapareceram. A sensação de fraqueza era terrível, não era a toa que tantos queriam lutar para sair daquela vida.

— Não podemos deixar isso acontecer. — o do balcão socou outra vez seu suporte, agora sem medo de levantar a voz. Alguns pareciam muito adeptos aquilo, o que deixava Toris ainda mais preocupado. Ele só queria ver todos seguros. — Devemos lutar agora! Enquanto ainda temos nossos corpos fortes para isso!

Quanto apelo em um discurso barato. Luta nunca resolveria nada.

— Se vocês forem...! — Toris, pela primeira vez, levantou a voz. Era naqueles momentos que precisava fingir ser forte e seguro, e fazer-se ouvir. Com aquelas pessoas, ao menos, pois com ninguém mais conseguiria. Porém, também era naqueles momentos que precisava se mostrar calmo e terno. Suspirou e abaixou o tom outra vez. —... Eu não vou impedi-los. Mas estarão pondo suas vidas a perder. Quero sair daqui tanto quanto você, mas por enquanto não há nada que possamos fazer.

Assim encerou seu discurso, com um longo suspiro de cansaço que contagiou a todos. De repente, sentiu vontade de voltar para a noite anterior, na atmosfera divertida e doce da casa de Feliks, onde não havia essa pressão sobre seus ombros, nem necessidade de debater para impedir que algumas daquelas pessoas se matassem.

O que ele estaria fazendo a essa hora? Dissera que gostava de pintar, quem sabe então enquanto Toris lutava contra a dor de cabeça tremenda, ele suavemente deslizasse um pincel sobre uma tela, contornando uma figura com belas cores.

Talvez não fosse de todo ruim, voltar... Só mais uma noite, depois que todos dormissem. O fato que não dava para negar, era que mesmo no meio de tantas pessoas, como esteve desde que chegou ali, Toris estava solitário. E pelo que pareceu, Feliks também. Poderia resolver isso um para o outro, como haviam feito antes.

Mas havia também o perigo, o perigo que arrastou aquele rapaz para o porão e que o arrastaria ao inferno se desobedecesse. Por isso, afastou a ideia, antes que essa se tornasse tentadora demais para resistir. Sabia que se não o fizesse, não haveria esse "apenas uma noite". Feliks tinha esse poder de trazê-lo para perto e prendê-lo numa teia de bobagens e diversão, que depois resultaria em saudade. Oh, mas porque tinha que lembrar daquilo? Aquela saudade começou a apertar, trazendo a vontade de vê-lo de novo. Continuou nessa brigo consigo mesmo, e o dia continua passar, as tarefas já eram tão mecânicas que nem percebeu quando as terminou. Era hora de dormir.

Infelizmente viu pobre rapaz de mais cedo sendo carregado pelos amigos para se tratar em seu quarto com remédios férias que amenizavam nenhuma dor. Ele continuaria morder o lábio para se acalmar e os amigos ao redor continuariam angustiados, falhando em fazê-lo sentisse melhor. Quando o viu, ele estava com corte feio na testa e os braços sangravam como se fossem cair. Isso por um acidente com uma travessa.

Que dor de cabeça… Pensou, debruçado em uma janela de um corredor, no caminho para o seu quarto ainda não tinha parado de levar, o que deixa o vidro embaçado e bom para ficar fazendo desenhos com a ponta dos dedos. Um uma montanha, uma casinha, um homem palito. Natália apareceu por trás, fazendo o pular de susto, mas ao contrário do que pensava, ela não fez nenhum comentário depreciativo sobre seus desenhos primitivos, simplesmente o ignorou e seguir o seu caminho. Ele acompanhou com olhar, bela e elegante, flutuando pelo chão, o tipo de pessoa com quem ele nem sonhava em ter uma chance. Ela virou num corredor que só poderia dar no quarto de Ivan. Claro, Ivan, ele era o tipo de pessoa que poderia ter chance com qualquer uma mesmo não tendo um coração.

Toris deu um suspiro pesado, e sem pensar muito, foi até seu quarto pegar um agasalho. Deixou um bilhete para Eduard com o simples "Durmam" em cima do criado-mudo e foi embora. Já fazia tempo desde que a porta da casa não era mais protegida por seguranças armados, um indício forte de que o poder de ir aos poucos decrescia.

A casinha cor-de-rosa de Feliks não tinha nenhuma luz acesa e ele não atendeu de imediato, mas havia deixado a porta aberta. Toris entrou cautelosamente, procurando-o com os olhos, porém foi encontrado antes de encontrá-lo. Feliks surgiu por trás e o abraçou do nada, como fazia para assustá-lo quando eram crianças.

— Já estava achando que não ia aparecer... — murmurou, entre irritado e feliz, esfregando a cabeça em suas costas. — Ontem você evaporou, não me deu nem tchau.

Toris não respondeu, porque não queria saber de palavras. Queria carinho, só isso, e estava recebendo. Viu-se livre dos braços novamente, para dar meia volta e poder olhar para ele. As luzes estavam todas apagadas, mas sua visão estava acostumada o bastante para vê-lo sorrir, pegando suas duas mãos e balançando devagar seus braços. Não sabia direito o que ele queria com aquilo, ou como interpretar o brilho dos olhos, mas deixou estar. Isso porque embora Feliks não soubesse quando o puxou para um beijo, prontamente correspondido aliás, sua mente ainda estava inteira ocupada pela dor da angústia, remoendo as palavras de seus colegas. No final, só de estar lá provava que eles estavam certos, nem ele aguentava a vida que tinham e escapava nas primeiras chances que apareciam, contrariando as ordens mais preciosas de Ivan. E como ele mesmo dissera, aquilo só poderia acabar ruim para ele, e para Feliks.

— Desculpa. — uma palavra indesejada escapou de sua boca com o pensamento, mas também o trouxe de volta para a realidade. Pôde assim disfarçar o significado do pedido de perdão, como uma forma de explicar o sumiço. Contanto que Feliks não soubesse a inteira verdade. — Tive que ir, desculpa...

Ele pareceu estranhar por um momento ele ter respondido, mas a falta de sorriso não durou. Ele o puxou pelo cachecol, trazendo seu rosto mais uma vez para perto, mas sem encostar nada mais que o ar da respiração quente.

— Hoje eu perdoo. — brincou, soltando uma risada fraca contra seus lábios. — Mas é bom não me deixar esperando de novo...

Toris esperava ganhar outro beijo depois disso, mas ao invés disso perdeu o nó de seu cachecol, que Feliks usava como uma corrente para prendê-lo perto. Ele se afastou, sem soltar da lã, jogou seu peso para trás, só para puxar Toris junto, quase tirando seu equilíbrio, mas nunca deixando seus rostos se encontrarem. Ele tentava se aproximar, ele se mantinha nada mais que mínima distância entre sua respiração e seus lábios, até que quando ele menos esperasse, ele roubasse um instante de beijo e tirasse o cachecol dele. A peça azul foi para o chão, e Feliks aproveitou a brecha para se pendurar em seu pescoço desprotegido, e assim sussurrar qualquer coisa em seu ouvido que o fizesse rir e corar.

Outra vez solto, Toris finalmente recebeu um beijo de verdade, do tipo que começava tranquilo e terminava calorento e abafado, quando a falta de ar se tornava forte demais para lutar. Deixou sua boca ser invadida a vontade por sua língua, o puxou para mais perto, foi deixando os pensamentos ruins se apagarem. Como esperava, já estava preso na teia de Feliks e não queria fugir. Ao contrário, queria poder ficar ali para sempre.