Um Breve Suspiro de Felicidade

Desconfiança É Uma Reação Natural Quando Você Não Dá Respostas


Em algum lugar daquele quarto, o frio insistente que atravessava as janelas fechadas estava reinando como um fantasma sorrateiro, mas Toris estava livre dele onde estava. Um único edredom e um lençol gasto o cobriam até o peito, deixando seus braços nus expostos. Mas o que o impedia do frio não eram os cobertores, e sim o corpo quente respirando contra suas costas, abraçado a si como uma criança a seu bichinho de pelúcia, com um sorriso comprido e pacifico em seus lábios.

Poucos minutos atrás, não estava preocupado ou triste ou nada nesse mundo que pudesse ser ruim, mas agora os zunidos em sua mente falando que cometera o mesmo erro pela segunda vez voltaram a se manifestar. Estava com tanto sono, mas eles não o deixavam dormir. Não poderia tentar mudar de posição porque na cama de solteiro estreita mal cabia ele e seu agora oficialmente novo amante. Fechou os olhos e tentou afugentar os pensamentos, ao menos até de manhã. Não estava conseguindo, de qualquer maneira, quando a voz de Feliks apareceu para resolver o problema.

— Quer dormir aqui hoje? — ronronou, bem suave e sonolento, seguindo um suspiro calmo. Parecia agradado como um bichinho recebendo cafuné. — Amanhã nós podemos tomar café da manhã em algum lugar legal, o que acha?

— Huh? — reabriu os olhos, tentando pensar numa boa resposta que não o magoasse, mas não tinha nenhuma forma de dizer sim. — Desculpa... Não posso...

— De novo? — sua voz, embora ainda baixa, se transformou imediatamente em manhosa e aguda, como de costume.

— Desculpa...

— Não adianta se desculpar. — ele o soltou e virou de costas, como forma de mostrar sua indignação. Mas o conhecendo, Toris sabia que estava apenas fazendo drama e não estava tão bravo. Pelo contrário, ainda tinha completa certeza que poderia fazê-lo mudar de ideia.

Ele se virou também, e se esticou para dar-lhe um beijo na bochecha e brincar um pouco com seus cabelos loirinhos e bonitos.

— Não fica assim... Eu volto logo.

Ao dizer isso, Toris foi tomado por uma estranha sensação de surpresa consigo mesmo. Era tão bom dizer aquilo, como se tivesse o livre arbítrio para ir e voltar, ao mesmo tempo em que se condenava por ser tão fraco, e dar a ele falsas esperanças.

Feliks ficou em silêncio por um momento. Finalmente, sussurrou, em voz bem baixa, como se temesse as palavras:

— Está com medo que nos peguem?

— O que? — o coração de Toris acelerou. Será mesmo que Feliks sabia da verdade? Aquilo seria um desastre, ele não podia saber... E além disso, como ele tinha descoberto? Não fora cuidadoso o suficiente?

— O governo. — elucidou, como se esperasse que ele soubesse. — Eles não vão nos achar... Estamos seguros aqui...

Mais um detalhe que Toris havia esquecido: a perseguição dos soviéticos contra pessoas como eles, que não tinham o direito se amar, mas amavam mesmo assim. Com todas as preocupações direcionadas a Ivan, ele nem se lembrava disso, mas, estranhamente, não se preocupava. De certa forma, a opressão de Ivan o protegia da opressão dos outros soviéticos, e sabia que se fossem descobertos, seu castigo viria por outro motivo, não sua sexualidade. Mas era melhor que Feliks não soubesse disso.

— Eu sei, não é por isso... — suspirou, cansando. — Trabalho cedo, só...

Dito isso, afundou de volta sua cabeça no travesseiro, torcendo para que Feliks não fizesse nenhuma pergunta relativa ao seu misterioso trabalho. Porém, para sua sorte, ele parecia estar com sono demais para continuar questionando. Esticou os braços, acompanhado de um longo bocejo preguiçoso, ele soltou um “Tudo bem, boa noite” desajeitado e fechou os olhos. Depois de quase um minuto inteiro apenas com o subir e descer de seu peito, e nenhum movimento a mais, Toris decidiu fazer o mesmo, pelo menos por algumas horas.

Ele teve um pesadelo. Foi o mesmo da noite anterior, nos poucos minutos que dormira. Era um sonho ruim especialmente estranho, pois se repetia com certa frequência. Seu subconsciente não poupava esforços para adaptá-la a situação natural que o tornava pior.

Pôde ouvir claramente o soco que Ivan deu na porta, no caso na porta branca de maçaneta dourada de Feliks, quando a escancarou sem nem tentar alguma delicadeza. Sua silhueta negra surgiu como uma assombração, e seu sorriso era o pesadelo que tinha seus pesadelos. Uma ventania gelada surgiu congelando tudo que tocava, como o espírito mortal que era e Ivan carregava a tiracolo. E então, quando a ventania criou braços e passou a arrastá-lo para cada vez mais longe, aquela risada maldita ecoou claramente em sua cabeça. Feliks nem tentou impedi-lo de se afastar. E quando não o via mais no horizonte mortalmente branco, sentiu como se algo houvesse se quebrado dentro de si pra nunca mais concertar. Mas fora apenas um pesadelo.

Outra vez desperto, agora suado e com uma terrível ansiedade, ele não queria mais ficar por nem um minuto, com medo da ventania que o arrancaria de Feliks a força. Se sentou na beirada da cama com dificuldade, só então notando a dor nos músculos e na parte de baixo, que bem o encorajavam a se deitar novamente. Com muita força de vontade e medo, ele se levantou, recolheu e vestiu suas roupas no chão, e deu um beijo na testa de Feliks antes de ir.

— Fica. — sentiu seu pulso agarrado logo que se afastou da cama, por um Feliks insistente e morrendo de sono que o queria onde estava antes. Como esperado, ele não sabia o que era não e não tinha a menor compreensão ou talento para ler pessoas que realmente queriam poder obedecê-lo.

— Não posso. — sussurrou e soltou-se, delicadamente para Feliks confundir aquilo como parte de um sonho. Deu certo, e ele foi embora sem encontrar mais nenhum obstáculo.

Conseguiu voltar para casa sem barulho ou problemas, e encontrou seus colegas dormindo de acordo com o pedido em seu bilhete. Mas ele não conseguiu seguir a própria ordem de dormir, e encarou o teto a noite toda.

A primeira coisa que ouviu aquela manhã era Raivis perguntando se ele não tinha dormido bem. Suas olheiras o denunciavam de imediato, e mesmo um cego poderia notar que estava mais lerdo que o normal para virar o café nas xícaras. Apesar de todas as angústias e pensamentos que tirariam o sono de qualquer um, era raro Toris passar noites sem dormir, isso porque depois do trabalho estava tão morto de cansaço que dormia logo que deitava, ignorando o desconforto da cama ou as dores de cabeça. Porém, como sempre, Feliks saía de todas as regras estabelecidas, e sua existência era mais forte que qualquer cansaço. Ao menos, com sono, Toris não passava o dia pensando em todas as coisas que o tiraram esse sono.

Entretanto, querendo ou não, já estava preso no ciclo vicioso de Feliks que tanto tinha se ordenado a evitar no dia anterior. Precisaria voltar, ou ele iria atrás dele e seria muito pior, além disso, ele queria voltar. A segunda noite só servira para provar o que sempre soube: ver Feliks era tirar férias de toda tristeza num mundinho cor-de-rosa e alegre. Voltaria, claro que voltaria, agora não conseguiria mais se convencer a não. Mas agora teria que viver com aquela insegurança diária, um medo maior, e o perigo de levar aquele mundinho que tanto amava ao seu fim.

Toris não voltou lá logo na outra noite, nem na noite seguinte. Resistiu por algumas longas noites, com o objetivo de se testar, ver quanto tempo aguentava longe de seu refúgio cor-de-rosa. Até que inevitavelmente outra das várias tardes de estresse na casa, a imagem de um lugar diferente para descansar com uma pessoa que sentia no mínimo algum vestígio de afeto tornasse outra vez tentadora demais.

Quando voltou, encontrou as paredes de fato pintadas de rosa, e um Feliks um tanto reclamão por não ter tido notícias, o que exigiu dele inventar algumas mentiras e desviar de algumas perguntas, mas não falaram muito sobre isso. Toris fez também algumas perguntas simples, sobre pintura e roupas, apenas para limpar a mente ouvindo uma voz animada. Feliks prosou um pouco sobre si próprio, se gabou por alguns minutos, só o suficiente para levantar as paredes coloridas de seu mundinho, para que então Toris estivesse anestesiado o suficiente de suas dores e quisesse alguns beijos abafados.

Mas, de um modo ou de outro, os beijos chegado ao fim, seu mundinho ia aos poucos acinzentando. A manhã se aproximava, e Toris precisava ir. Era quase quatro horas, mas ele estava de pé, recolhendo suas roupas no chão para se recompor. Feliks tinha acordado dos seus pequenos minutos de sono, mas continuara deitado, apoiado em um cotovelo, assistindo Toris e fumando um cigarro com enfado no rosto.

— Já é, tipo, a quinta vez. — comentou uma noite dessas, sem expressão. Aquela voz monótona era mais eficaz que qualquer drama.

— Não posso ficar, já disse… — suspirou, se virando para Feliks. Era desgastante para ele ter que ir embora assim, mentindo e ouvindo sua voz de decepção de quem queria companhia, uma sensação que ele bem conhecia. Não poderia culpá-lo.

— Você nunca pode. — desviou o olhar, pensativo — Você indo e vindo desse jeito, e eu tô começando a me sentir meio usado…

Aquilo o atingiu como um soco no peito. Toris parou de abotoar a blusa para sentar na cama com ele. Queria dizer que não, que jamais o usaria, que o valorizava e que era importante, mas nem ele mesmo sabe se isso é verdade. Estava usando Feliks como remédio antidepressivo e quando parar para pensar aquilo era horrível. Foram grandes amigos no passado, e agora ele estava apenas se aproveitando da situação.

— Não diga isso… — pediu em voz baixa, procurando boas palavras — Você não faz ideia… Do quanto queria poder ficar aqui…

Feliks se levantou, colocando se sentado atrás dele.

— Então fique, ué.

Toris bufou.

— Não posso.

— Claro que pode.

Era óbvio que ele não entenderia. Feliks dificilmente enfiaria na cabeça que algumas pessoas não tinham mais de direito de ir e vir num país como aquele, e que alguns simplesmente não podia falar o que quiser se eu contar que passavam. E mesmo que pudesse, se contasse tudo do começo ao fim — o que já duvidava que sua voz fosse capaz — acabaria perdendo-o de uma vez por todas.

— Não posso. — repetiu pela terceira vez, ficando em pé rapidamente outra vez e deixando Feliks ainda mais irritado onde estava.

— Então me diga logo o porquê, bobão. — franziu a sobrancelha e revirou os olhos, impaciente — E nem vem dizendo que “Ah, eu não posso…" — imitou-o em falsete, fazendo o gesto de uma boca com a mão. — Que isso é, tipo, muito furado.

Toris teve que se segurar para não rir, mas um sorriso pequeno escapou frente ao tom com que ele falava, que mudava tão facilmente de uma hora pra outra, de séria zombeteira, de zombeteira a triste, que triste a arrogante, de arrogante a séria. Isso era uma das coisas que mais achava curiosa e fofa nele. Mas não mudava o fato de que ele não poderia falar.

Por isso, ignorou sua intimação e se inclinou para dar-lhe um beijo rápido, que servia também como forma de calá-lo. Assim que se separarem, Feliks abriu um sorriso cínico, soltando uma curta risada.

— Até parece que vai se safar tão facilmente… — olhou-o de baixo, com aquele olhar sensual verde-esmeralda tão difícil de resistir.

Apesar de tais palavras, Feliks não continuou a insistir por respostas. Ao invés disso, o trouxe para um beijo mais longo, puxando-o pela gola da camisa recém-colocada para deitar-se na cama outra vez, com apenas os joelhos e as pernas para fora. Pronto, essa era a melhor forma de resolver as coisas. O beijo transformou-se dois, então em três, como na primeira noite. A língua flexível de Feliks em sua boca fitava os movimentos, não muito lentos, não rápidos demais, apenas com a perfeição que eram seus beijos. Infelizmente, eles não tinham mais o resto da noite, era quase hora de trabalhar. Quando ele parou os beijos para levá-los ao pescoço, Toris aproveitou a liberdade da boca para, com dificuldade entre os suspiros, murmurar:

— Eu tenho que ir... — lembrou-o, mas não fez esforço algum para tirar aquele corpo de cima de si.

—Não tem, não. — objetou com voz de criança sonolenta reclamando, antes de voltar seus afazeres na pele alva e indefesa.

A voz dele era tão boa de ouvir que quase o convenceu.

— Tenho sim… — de muito contragosto, o empurrou de leve pelos ombros para se separarem e ele finalmente terminar de se vestir, algo que já era para ter feito havia um tempo. Feliks continuou lugar.

— Não é justo… — fez biquinho, soprando um fio de cabelo que caia sobre o rosto —Você fica me provocando depois me rejeita sem mais nem menos…

Ele sentiu-se um pouco envergonhado com aquilo, por isso sua voz saiu um pouco mais tremida do que gostaria:

— Não podemos ficar nos beijando a noite toda…

— É claro que podemos! — protestou, apertando o lençol com a ponta dos dedos.

— Não, você precisa dormir… — disse em seu típico tom maternal, balançando a cabeça.

— Mané. — murmurou, parecendo um pato.

— Eu volto amanhã. — Toris sorriu, vestindo o último casaco.

— Ainda vai ter que me explicar o que está acontecendo. — cruzou os braços, exigindo.

Toris aproveitou o clima de piada para correr para a porta pela porta em passos de brincadeira de criança, sem responder nada, apenas deixando ali em cima preguiça de ir atrás dele, apesar do sorriso levemente convidativo e cumplice de quem implorava para que ele o desse mais alguns minutinhos. Fechou a porta com um sorriso mais tranquilo, e as bochechas meio quentes.

Porém a alegria foi congelada pelo vento imediatamente. O casarão continuava ao lado, sua vida continua da mesma. Olá, dona realidade, ainda não foste embora?