Kazumi estava atrasada para o trabalho de novo. Arrependida por ter pego a rota alternativa que pensou ser um atalho, quanto mais ela avançava, mais perdida ficava. A trilha que seguia já havia desaparecido há uma hora e não tinha uma placa sequer indicando quantos quilômetros faltavam para chegar até à cidade.

Ela apressou o passo, temendo a demissão inevitável que teria que enfrentar caso chegasse na cafeteria fora do horário. Sonya, sua chefe, apesar de tolerante, a havia alertado que aquela era a sua última chance. Kazumi já havia se atrasado várias vezes. Morava nos limites do centro da cidade, afastada da zona urbana e, portanto, tinha que acordar bem cedo para não perder o expediente. Ela havia se acostumado a sair de casa antes do sol nascer e, como não tinha carro, precisava ir andando até o ponto de ônibus mais próximo. Mas não era isso que a fazia constantemente perder a hora. A raiz de seu problema era o seu próprio pai. Lidar com a fúria repentina e o gênio dominador de Ichiro estava cada vez mais difícil. Para ele, tudo que ela fazia era errado, inclusive a sua insistência em manter o emprego que, segundo ele, não passava de uma perda de tempo. Kazumi suportava os seus gritos, as agressões e as discussões somente porque não tinha outra opção. Um dia se livraria dele, mas precisava ser paciente e juntar dinheiro. Muito dinheiro.

Andando num ritmo que mais se assemelhava a uma corrida, ela conferiu o relógio de pulso, constatando que lhe restavam apenas trinta minutos para conseguir chegar a tempo no trabalho. Sentiu o desespero tomar conta e, distraída, tropeçou numa rocha que estava presa firmemente ao solo. Como consequência, torceu o tornozelo e caiu no chão, usando o braço para amortecer a queda. Kazumi exclamou de dor ao sentir o rasgo em sua pele, na região que entrou em atrito com o solo.

Ela quis chorar. Xingou a mata em que havia se perdido, a cidade caótica em morava, o pai, que naquele dia tentou proibi-la de sair de casa, e a si mesma por decidir pegar aquele atalho estúpido. As lágrimas ameaçavam escorrer pelo seu rosto, mas ela as limpou ainda nos cantos dos olhos, antes que escapassem sem permissão. Se levantou então rapidamente, mas o tornozelo torcido protestou, deixando sua perna bamba.

Ela respirou fundo. Sabia que tinha que ignorar a lesão, se ainda lhe restava alguma esperança de continuar trabalhando. Tinha que seguir em frente. Tentou pensar positivo, afinal, ao ver o seu estado, Sonya compreenderia o atraso. Querendo ou não, Sonya sempre compreendia. Aquele pensamento lhe deu forças para continuar, ainda que tivesse que arrastar o pé machucado pelo caminho. No entanto, seu otimismo não durou muito tempo. Ao seguir em frente, inexplicavelmente perdeu o equilíbrio ao dar um passo em falso.

Foi como se o chão tivesse deixado de existir. Seu pé suspenso no ar perdeu o apoio e, dessa vez, ela caiu em queda livre no que parecia ser um declive íngreme no terreno. Sem saber aonde iria parar, Kazumi rolou pelo barranco, incapaz de frear. Ao atingir o solo, sentiu o corpo inteiro doer. As mãos estavam raladas, as roupas cheias de rasgos e o queixo cortado.

Kazumi não conseguiu reagir. Estava completamente em choque. Ergueu o olhar para o céu, que exibia uma cor vermelha intensa, com nuvens arroxeadas o cobrindo parcialmente. Estranhou o cenário, afinal, onde estava o céu azul da manhã? Observou então o seu entorno. A vegetação verde e viva havia sido substituída por folhas secas, murchas e macabras. Um matagal obscuro e sombrio. Não tinha sinal do sol ou do calor matinal do verão. Estava frio, escuro e úmido.

Ao ouvir um ruído, ela se colocou de joelhos. Não era um som comum, mas algo parecido com uma vocalização. Um animal, talvez? Na escuridão ela não podia ver nada, por mais que tentasse, mas sentia que alguém a observava. Então, a criatura à espreita a atacou. O pequeno youkai voou em sua direção e cravou um par de dentes afiados em seu pulso. Sugando o sangue de Kazumi, ele prendeu-se com firmeza. Ela gritou, tentando puxá-lo pela penugem em suas costas, mas quanto mais força ela fazia, mais ele afundava os dentes em seu braço.

Kazumi sentiu-se fraca. Sua pressão sanguínea despencou, a deixando branca como um cadáver. Sua visão escureceu e ela compreendeu que a consciência estava abandonando o seu próprio corpo. Pensou ter visto alguém se aproximar e então um ouviu um estampido metálico ressoar. A pressão em seu pulso desapareceu e ela se deu conta que a criatura estava caída ao seu lado, cortada ao meio e desmanchando-se em uma poça de sangue.

Ela suou frio, mas não conseguia se levantar. Foi escorregando novamente até o solo e tentou se concentrar na imagem distorcida em seu precário campo de visão. Assim, teve certeza: tinha alguém ali, uma pessoa. Ou melhor, um grupo de pessoas. Pelos contornos dos corpos, julgou que eram pelo menos quatro, mas não podia ter certeza.

— Outra vez! — ela ouviu uma voz abafada dizer. Parecia distante, mas o homem estava mais perto do que ela permitiria.

Ela temeu pela própria vida. Não confiava em homens. Não em qualquer um.

— É uma mulher. Pensei que as fêmeas humanas fossem mais cuidadosas — disse outro, dando uma risada.

De repente, os sons ficaram ainda mais indistinguíveis e Kazumi lutava para manter os olhos abertos.

"Está sangrando", ela ouviu alguém dizer.

"É melhor você cuidar dela. Leve-a de volta antes que seja tarde".

Kazumi pensou ter ouvido uma discussão, mas já não aguentava mais resistir. O desmaio era iminente. A última coisa que sentiu foi como se alguém sustentasse o peso de seu corpo, segurando-a nos braços.

Ela se rendeu e tudo ficou escuro.