Tríade do Tempo

A Derrota do Jagan


— Acorde.

Ainda de olhos fechados, Kazumi escutou a voz grave ordenar ao seu lado.

— Acorde — ele voltou a pedir.

Ela piscou duas vezes, lentamente. Estava deitada sobre uma superfície engraçada. Sentia pequenas folhas espetando a sua pele, mas sem realmente machucá-la. Era grama. O céu estava azul, bonito e sem nuvens, como era de se esperar numa manhã de verão.

“Foi um sonho”, ela pensou. Lembrou-se do mundo em que foi atacada, na escuridão parcialmente iluminada por um céu vermelho como o sangue. Concluiu ter sido apenas pesadelo, mas ao girar a cabeça para o lado, deu de cara com um homem que, sentado diante dela, a encarava com uma expressão fria e indiferente. Ele vestia roupas escuras e trazia consigo um sabre japonês, o que, para Kazumi, não podia ser um indicativo de alguma coisa boa.

Ela levantou num sobressalto, amedrontada. Se afastou o quanto pôde, encurralando a si mesma no tronco de uma árvore.

— Quem é você?! — Kazumi perguntou por impulso, mesmo sabendo que confrontar um desconhecido não era a coisa mais inteligente a se fazer.

Foi então que percebeu as dores que agora estimulavam os seus nervos. Seu tornozelo latejava, o corpo todo ardia em feridas e o pior: haviam dois furos perfeitamente simétricos em seu pulso esquerdo, rodeados por marcas menores, formando uma arcada dentária.

— O que é isso…? — ela questionou a si mesma, sem realmente esperar obter uma resposta — Não pode ser…não foi um sonho? Mas aquele bicho…Aquela coisa nem existe!

O homem se levantou e se aproximou dela, sem dizer nada. Kazumi choramingou indefesa e ele suspirou cansado, pensando o quanto aquela reação era exagerada. Ele então desamarrou a faixa branca que cobria o terceiro olho em sua testa. O Jagan, que inicialmente havia sido implantado somente com o intuito de aumentar o próprio poder, agora era usado para apagar a memória dos humanos que chegavam por acaso ao Makai. Para que esquecessem tudo o que viram.

Ao ver o olho demoníaco se abrir, emitindo uma luz arroxeada, Kazumi prendeu a respiração, sem acreditar no que estava acontecendo. Aproveitando-se de que ela não tinha escapatória, Hiei a cercou com os braços, impedindo que se movesse. Ela o encarou, hipnotizada.

— Você vai esquecer tudo o que viu. Vai fechar os olhos e quando abri-los novamente não vai se lembrar do ataque que sofreu e nem de como conseguiu esses ferimentos. Vai acreditar ter sofrido um acidente enquanto caminhava. Caiu, bateu a cabeça e desmaiou. Feche os olhos.

Kazumi tremia sem perceber. Ouviu as palavras dele com atenção, mas ao mesmo tempo não entendeu nada do que ele quis dizer. Não fechou os olhos como ele pediu, nem sequer ousou piscar. Então, um silêncio um tanto constrangedor pairou entre os dois por alguns instantes.

Hiei mudou a expressão, sem entender o porquê ela não o obedeceu.

— Feche. Os. Olhos — ele repetiu, mais devagar e pausadamente.

Dessa vez, ela fez o que ele pedia, mas Hiei logo percebeu que algo não estava certo. Ela não parecia estar em transe, como era o esperado. Do contrário, continuava completamente consciente de sua presença. Comprovando isso, ela voltou a espiá-lo com apenas um olho, só para ter certeza de que ele continuava ali.

Hiei se afastou aborrecido. Estava certo de que o problema não era o Jagan. Há tempos ele vinha mexendo com a mente dos humanos e, por mais que a técnica ainda não estivesse perfeita, ele tinha certeza que era boa o bastante para atingir o seu objetivo.

— Que truque é esse? — Hiei a confrontou, com um olhar maligno que a fez tremer da cabeça aos pés.

— Truque? E-eu não sei do que está falando…

— Não minta! Como está fazendo isso?

A respiração de Kazumi era pesada. O nervosismo a dominava, por mais que tentasse manter a calma.

— Olha, por favor, me deixa ir embora — ela suplicou — Eu juro que não vou contar nada pra ninguém e nem chamar a policia. Você quer que eu esqueça o que aconteceu, então pode considerar esquecido. Por favor…

Hiei nem sequer lhe deu atenção, pois estava transtornado demais para responder. Indignado, na verdade. Concluiu que aquela mulher simplesmente o estava enganando, mas não sabia como. Ele se aproximou com irritação e, sem hesitar, a segurou pelo braço à força. Kazumi se debateu apavorada, tentando se soltar. Gritou e esperneou, mas ele a prendeu com mais força, imobilizando-a ao segurá-la pelo tronco.

— O que vai fazer?!

Hiei novamente não respondeu. Num movimento brusco a colocou em seus braços e saiu correndo, deixando a zonza com a velocidade sobre-humana que a arrastava para algum lugar desconhecido.

~*~*~

Kazumi ainda estava tonta quando Hiei a colocou no chão. Sentia-se levemente enjoada e quase caiu quando as pernas fracas cederam. Olhou ao seu redor e não reconheceu o lugar em que havia sido largada. Pela vista ampla que possuía no horizonte, percebeu que estava em uma montanha, afastada da cidade. Adiante, não havia nada além de um templo antigo. Engoliu em seco, pois sabia o que aquilo significava: sequestro.

— Siga em frente — Hiei ordenou num tom nem um pouco amistoso.

Kazumi não se moveu. Não tinha forças, mesmo de quisesse. Estava paralisada.

Ao perceber o estado de choque da humana, Hiei a segurou pelo pulso e a puxou, arrastando-a contra a sua vontade. Ela quis resistir, tentando firmar os pés no chão, mas a diferença de força era gritante e Hiei não precisou fazer grande esforço para fazê-la se mover.

— Por favor…não faz isso… — ela resmungou.

Ele seguiu em frente, abriu a porta do templo e a jogou para dentro.

Kazumi entrou aos tropeços, com medo do que tipo de cativeiro poderia encontrar. Mas, diferente de tudo que havia imaginado, ela se deparou com um ambiente limpo, arejado, silencioso e bem iluminado. Estranhou aquilo e olhou para o seu sequestrador, pronta para implorar pela sua liberdade. Ao abrir a boca, porém, ouviu passos se aproximarem num ritmo suave. Uma jovem apareceu onde estavam, com a expressão curiosa de quem não esperava receber visita.

— Hiei! — ela exclamou surpresa, aliviando a tensão em seu semblante. Kazumi pensou em ter visto um mínimo sinal de felicidade no rosto daquela garota — Não esperava te ver hoje.

— Preciso falar com Genkai — ele disse com simplicidade.

— Ah…entendo. Quem é essa? — ela se voltou para Kazumi que, naquela altura do campeonato, não estava entendendo absolutamente nada do que estava acontecendo.

— Não é ninguém — Hiei respondeu, deixando Kazumi boquiaberta.

— Mas ela está ferida.

Preocupada, Yukina se aproximou de Kazumi, estendendo a mão para tocar em seu rosto sujo de sangue. Num impulso, a humana se afastou, ainda assustada.

— Ela está bem, Yukina — Hiei disse — Isso não é nada.

Dessa vez, Kazumi o encarou irritada. Afinal, quem era ele pra falar com tanta propriedade sobre o que ela estava sentindo? O seu corpo inteiro doía, mas ele não tinha como saber disso.

Yukina suspirou, como se pudesse ler os pensamentos de Kazumi.

— Me dê um minuto. Vou buscar algo pra limpar a ferida dela e chamar a mestra Genkai pra conversar com você.

— Não precisa, Yukina. Eu já estou aqui.

Uma senhora surgiu por detrás da koorime. Sua baixa estatura não condizia com a sua presença, pois, apesar de pequena e aparentemente frágil, a idosa, de alguma forma, parecia extremamente imponente.

— O que quer, Hiei? Quem é essa e por que ela está toda surrada?

— Caiu no Makai por acidente.

— E então? O que quer que eu faça a respeito? Não era só você apagar a memória dela e devolvê-la pra casa?

— Se fosse tão simples, eu não estaria aqui. Eu não consigo usar o Jagan nela.

Genkai franziu a testa e encarou Kazumi com estranheza, a analisando dos pés à cabeça. Em seguida, voltou a sua atenção para Hiei.

— Ela disse que não era nenhum truque. Quero saber se ela está dizendo a verdade ou se esconde alguma coisa — Hiei continuou.

— Hm, já entendi — ela respondeu — Verei o que posso fazer.

Genkai se aproximou de Kazumi lentamente, fazendo-a recuar no mesmo ritmo.

— Qual o seu nome, garota?

Ela gaguejou. Sua boca estava seca e falar parecia quase impossível.

— É Ka-Kazumi.

— Bem, Kazumi, eu quero conversar um pouco com você. Enquanto conversamos, Yukina pode dar um trato nesses arranhões. Me acompanhe.

Ao ver a idosa se dirigir pros fundos do templo, Kazumi não se mexeu. Por que deveria? Começava a achar que havia sido capturada por um bando de malucos ou, talvez, a maluca fosse ela e tudo aquilo não passasse de uma alucinação. De qualquer forma, acreditava que morreria ali e nunca mais seria encontrada. Transtornada, pensou em sua irmã. O que seria de Noembi sem a sua ajuda?

— Venha logo, menina — Genkai ordenou — Prefere me acompanhar por bem ou quer que ele te traga a força?

Kazumi espiou a reação de Hiei, só pra ter certeza de que ele continuava ali, bloqueando a porta de entrada e preparado para segurá-la caso ela tentasse escapar.

Para a sua infelicidade, ele continuava parado no mesmo lugar.

Então, sem ter outra alternativa, Kazumi seguiu Genkai.