Tradição e Liberdade

A Lua Encontra Dois Jovens


Inspira. Expira devagar, soltando o ar aos pouquinhos. As folhas arrastando-se uma na outra fazem um som tranquilo e relaxante quando o vento passa, e embora os outros animais ali também estejam verbalizando que não havia perigo algum naquela área, Yue poderia dizer que estava um clima calmo e agradável por ali.

Pena que não tinha ido até a floresta com o intuito de descansar, porque era exatamente isso que aquela atmosfera parecia ludibriá-la a fazer.

Ao focar o olhar no rio a frente, ela conseguia ver seu alvo abaixando a cabeça para refrescar-se, dando algumas lambidas preguiçosas na água.

Como o cervo parecia distraído pelo ambiente, ela apenas manteve a mira nele, com a corda do seu arco esticada e pronta pra atirar. Seus dedos seguravam a madeira com uma firmeza nobre, mantendo-o firme e focado no animal que tinha como alvo.

Yue inspirou, prendeu o ar em seus pulmões e no momento em que ela soltaria a corda, um trek típico de galhos quebrando-se fez com que o cervo ficasse alerta e corresse sem dar tempo para a caçadora tentar atirar em seu alvo.

Com um suspiro frustrado ela ajeitou sua mira, focando agora nos culpados pela perda de sua caça: dois jovens de pele acastanhada, que pareciam levemente perdidos pela forma como olhavam ao redor e cansados, se a forma como seus ombros pareciam carregar o peso do mundo, fosse uma indicação real.

E embora eles não parecessem perigosos, Yue sabia melhor do que ninguém, que se deixar enganar por primeiras impressões — então sem hesitação, no momento em que um da dupla ficou parado, ela soltou a flecha.

Seus dedos ainda formigavam pelo atrito da corda com sua pele, quando ela ouviu os sons que ambos jovens fizeram. A menor arfando ao que dava um mini pulo e levava as mãos a boca e o que estava preso pela flecha na árvore pelo casaco havia gritado tão alto, que os pássaros até voaram daquela região.

Lutando para não deixar um sorriso satisfeito dominar seus lábios, Yue saiu de trás do arbusto em que estava agachada e disse em seu tom mais firme, o arco ainda direcionado a estranha dupla e uma nova flecha na mão:

— Forasteiros não são bem vindos por aqui.

Os dois a sua frente se voltaram em sua direção, os olhos abertos demais para alguém calmo e um leve tremor nas mãos mostrando que estavam decidindo-se entre lutar ou correr. A caçadora esperava que eles não fossem idiotas o suficiente para escolherem enfrentá-la.

No entanto, antes que qualquer movimento fosse feito, o mais alto dali apenas ergueu as mãos em sinal de rendição fazendo com que sua companhia franzisse as sobrancelhas em clara confusão.

— Você é da Tribo Shuiliang, não é? — Ele disse de forma alta e clara, com uma expressão séria no rosto, que quase fez Yue esquecer o quão assustado ele estava a minutos atrás.

Seus lábios se contorceram numa linha desgostosa. Poucas pessoas reconheciam os membros de seu vilarejo, ainda mais, logo de cara.

Ela apertou a madeira do arco, colocando mais firmeza na mira que fazia no jovem, no entanto não fez nenhuma menção de que atiraria.

— Como você sabe disso? — Foi o que disse, sua voz carregada de suspeitas e dúvidas.

O alívio relaxou os músculos faciais do garoto alto a sua frente e fez a jovem que o acompanhava olhar Yue com um pouco mais de atenção, o que a deixou levemente desconfortável.

— Porque nós somos de Shuijia!

A simples menção da tribo-irmã fez com que a caçadora abaixasse o arco, de forma que sua mira agora estava no tórax ao invés do coração do estranho.

Agora era sua vez de franzir a sobrancelhas em confusão, não compreendendo a cena a sua frente. Dois jovens, e pelo que ela podia ver, andarilhos no meio da mata e cada um com uma sacola nas costas. As roupas deles não era nem um pouco semelhante com as vestimentas da tribo que Yue estava acostumada a ver no povo de Shuijia.

Entretanto, somente sendo ou conhecendo alguém de lá para saber de Shuiliang — o que fazia com que a caçadora tivesse poucas opções.

Iria ter de levá-los até o chefe de sua tribo.

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Embora os jovens tenham reclamado sobre terem de usar cordas — Sokka, assim tinha se apresentado o garoto, foi o que surpreendentemente aceitou mais fácil a idéia —, eles seguiram Yue bem quietos pelo caminho de volta até sua aldeia.

Ao chegar perto das redondezas, ela chamou a atenção de um dos homens que ficava ali na barreira entre a tribo e a floresta, e pediu para que ele levasse os dois até seu pai.

— Você tem certeza que deveríamos levar estranhos para dentro da tribo? — Pakku perguntou, os olhos espremidos pelas pálpebras por causa da desconfiança com que encarava os jovens.

— Tenho. — Foi a resposta rápida que deu, antes de complementar em um tom mais baixo. — Eles sabem o nome da nossa tribo.

Isso fez o homem ficar surpreso, antes de voltar o olhar para os outros dois.

— Onde você os achou mesmo?

— Perto do riacho platinado.

Pakku apenas assentiu perante aquela informação antes de virar-se para os — não tão — desconhecidos e forçá-los a andar com ele.

Enquanto eles seguiam um dos melhores caçadores da tribo, Katara — cuja tinha sido apresentada pelo mais alto — virou a cabeça para trás para lançar um olhar cheio de significados confusos e intrigantes em direção a Yue.

O simples gesto a fez arrepiar-se, mesmo que a caçadora tivesse resolvido ignorar a encarada e ir cumprir seu papel na aldeia.

Estava na hora de fingir ser uma frágil garota que estava prestes a entrar na idade de casório, logo, era seu dever ter as tarefas domésticas organizadas, por mais que ela as odiasse com todo o seu ser.

Era hora de agir como a filha do chefe da aldeia deveria.

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No final, Sokka não tinha mentido — ele e Katara, que pouco depois Yue descobriu ser irmã dele — eram da tribo Shuijia.

— O ritual da maturidade. — Comentou Arnook, seu pai, com um sorriso saudoso dominando os lábios e um olhar distante. — Ainda me lembro de quando fiz minha viagem pelo mundo antes de assumir o cargo como chefe da tribo.

E pelo visto não eram quaisquer membros da aldeia-irmã que tinham aparecido pelas proximidades de Shuiliang — eram os herdeiros do líder.

— E você já está se aproximando da idade matrimonial, Katara? — Yue ouviu sua mãe questionar e segurou-se para manter uma expressão neutra.

A caçadora não gostava da forma como em sua aldeia a maioria dos papéis que as mulheres tinham eram cuidar das tendas e gerar herdeiros — tanto que, com ajuda de Pakku, aprendeu a arte da caça e da espada às escondidas de seus pais.

Ela sabia que logo seus progenitores encontrariam alguém para casar, forçando-a seguir um papel que sabia não pertencer a si.

— Faltam duas estações para isso acontecer, senhora. — A voz intensa e com traços juvenis chegou aos ouvidos de Yue, fazendo-a voltar a prestar atenção na conversa.

— E por que veio com o seu irmão no ritual de maturidade? Não é muito cansativo para uma garota como você? — Sua mãe voltou a questionar, as sobrancelhas levemente juntas pelo sentimento piedoso que as dominou. — Pobrezinha, deve ter sofrido tanto.

— Eu vim porque quis. — Katara retrucou dois decibéis acima, com um brilho cativante no olhar que fez a caçadora respeitá-la naquele exato momento. — Não acha injusto os homens poderem conhecer o mundo inteirinho enquanto você fica aqui, sentada, sem ter uma noção do que existe fora dessas fronteiras?

Psst, Katara! — Sokka resmungou alto o suficiente para chamar a atenção da irmã, que o encarou como se ele fosse a coisa mais desinteressante naquele momento.

O silêncio que se seguiu, mostrou que não tinha sido apenas eles três a ouvirem o que a forasteira tinha dito.

— Bem, acho legal que tenham te permitido vir. — Yue comentou de forma calma e controlada, enquanto pegava a taça de prata em mãos com a intenção de beber o vinho ali contido. — Pelo menos terei alguma companhia enquanto estão aqui.

Sua interferência fez com que o clima do jantar voltasse ao costumeiro. Camponeses e caçadores comiam e bebiam com o som de vozes e risadas ao fundo, fazendo uma bela cena de ser vista.

Colocando o copo nos lábios, ela deu um pequeno gole como era o instruído, só que com um gostinho de vitória vindo junto. Sentia sobre si o olhar intenso de Katara, que provavelmente estava cheia de questões sobre o que tinha acabado de acontecer.

Infelizmente para ela, Yue não poderia explicar no momento.

Teria de esperar até que estivessem sozinhas.