Sábado — 09:17 — 10 de Novembro de 2018

A música soava alta, reverberando as ondas por todo o prédio. Eleonora acordou assustada e tentou abafar o som com o travesseiro e voltar a dormir, mas não conseguiu. Arrastou-se para fora da cama, determinada a reclamar com as suas colegas.

Era um absurdo que elas colocassem o volume naquela altura em pleno final de semana quando não havia dado nem meio-dia ainda. Tinha certeza de que não era a única incomodada. Considerando a ideia média de seus vizinhos, possuía certeza de que boa parte deles utilizava o sábado de manhã para pôr em dia o sono atrapalhado pela rotina de trabalho exaustiva da vida adulta.

Onde estava a empatia?

Ao sair do quarto, esperava encontrá-las dançando e conversando animadas, porém se surpreendeu ao ver duas cabeças girarem o rosto para si no sofá, com expressões tão ou mais mortais que a dela. Só então percebeu que não era de seu apartamento que o som vinha.

— Vocês também? — perguntou, com os ombros caídos de tanto sono. As garotas assentiram, e Eleonora soltou um grunhido de frustração. Se ao menos fosse ali, ela poderia desligar o rádio em menos de cinco minutos e depois voltar para a cama. — Quem é o infeliz que coloca o som nas alturas a esta hora da manhã?

— Não sei. — Lana, sua colega de quarto espanhola, deu de ombros.

— Provavelmente é o vizinho novo porque todos sabem que é proibido volume alto neste prédio — Thalita opinou.

Por alguns segundos ninguém respondeu nada. Eleonora esfregou os olhos, tentando mantê-los abertos. E só então deu-se conta do que Thalita falara. Se ela sabia que tinha um vizinho novo, também deveria saber onde o mesmo morava. Animada com a possibilidade de queixar-se com quem quer que tivesse interrompido seu sono, endireitou a coluna e pegou um casaco longo jogado sobre a cadeira, colocando por cima do pijama para escondê-lo.

— Qual apartamento?

— O que você pretender fazer?

Era nítido o receio nos olhos castanhos de Thalita. Para o seu terror, a brasileira odiava conflitos, evitava-os a todo custo. Não que Eleonora fosse do tipo que arrumava encrenca por tudo, longe disso. Contudo aceitar a situação acomodada nunca foi de seu feitio, principalmente quando numa posição desconfortável. Eleonora tinha aprendido desde cedo que se calar não levaria a nada.

— Se for reclamar, nem tente — indicou Lana, enquanto mirava suas unhas. — Nós já ligamos para o porteiro e aparentemente não adiantou de nada.

— Pois então resolvamos nós mesmas — declarou, caminhando para a porta do apartamento. Atravessou o corredor e parou ao alcançar o elevador. Foi quando percebeu que ninguém a seguia. Voltou o olhar para as garotas, que a olhavam com desconfianças no batente da porta, e arqueou a sobrancelha. — Vocês vêm ou não?

Lana e Thalita se encararam numa conversa silenciosa, decidindo se acompanhariam a morena ou não. Por fim, Lana soltou um suspiro e deu o primeiro passo em direção ao elevador e a Nora.

— Fazer o que, né? — disse Lana resignada. — Tenho que entregar um trabalho amanhã e ainda nem comecei. Não tô tendo condições de esperar meus vizinhos tomarem simancol.

— Esse é o espírito — exclamou Eleonora, apertando o botão do elevador.

— O sono tá afetando o funcionamento do cérebro de vocês ou o que? — perguntou Thalita ainda parada a porta. As garotas a encararam sem entender, e então prosseguiu: — Sério? Vocês não tão identificando de onde vem o barulho?

Eleonora e Lana franziram o cenho, se esforçando para aguçar a audição. Somente então perceberam que, além de o som ter ficado ainda mais alto desde que puseram os pés no corredor, ele parecia vir do final do corredor. Caminharam até a porta, e Eleonora encostou o ouvido na porta para confirmar se não estavam cometendo um erro.

Não estavam, mas antes que pudesse pronunciar sua certeza, um punho cerrado atravessou sua visão a poucos centímetros de distância. Afastou o rosto assustada com Lana batendo a porta repentinamente. Embora tenha sido ela quem acordara mal humorada, a universitária parecia a mais revoltada.

A princípio não houve resposta. Lana já estava socando a porta sem parar quando ela enfim se abriu, deixando Eleonora e as colegas boquiabertas. Ouviram um cumprimento, mas foram incapazes de responder. Se entreolharam, sem saber o que dizer diante da pessoa do outro lado da porta. A raiva que Eleonora sentira por ser despertada contra a sua vontade, tornou-se embaraço por incomodar aqueles doces olhos castanhos que a fitavam tão bondosos.

Ela olhou para Lana e Thalita, buscando apoio, pois subitamente todos os palavrões com os quais havia planejado xingar seu vizinho desapareceram, deixando sua mente num nevoeiro completo.

— Vocês estão precisando de algo, minhas jovens? — Uma senhora de cabelos curtos e pele enrugada, questionou com um leve sorriso nos lábios. — Uma xícara de açúcar, talvez? — Sua voz calma demonstrava um pouco de cansaço. Característica que aumenta ainda mais o remorso de Eleonora. Como poderiam ter cogitado xingar uma senhora tão idosa? Meneou a cabeça, recriminando a si mesma. A idosa tomou aquilo como uma resposta para a sua pergunta e como as adolescentes continuavam caladas, resolveu continuar com as suas hipóteses. — Estão procurando alguém, então? Pelos rostos novinhos de vocês, eu diria que são amigas da Agatha. Acertei? Ou talvez, o Nathan? Meu menino sempre fez muito sucesso com as garotas.

Continuaram mudas. Na mente de Eleonora, tudo o que passava era o questionamento sobre como uma velhinha que aparentava ser tão doce poderia escutar heavy metal naquele volume. Será que estava perdendo a audição? A hipótese mais uma vez a fez se sentir mal por ter isso até lá com intenções erradas. Se gritasse com aquela senhora com certeza estaria reservando o seu lugar no inferno.

Lana — que já havia dado um passo para trás, ficando quase escondida pelas colegas — deu um beliscão no braço de Thalita. Esta última soltou uma reclamação de dor, atraindo a exclusivamente para si a atenção da senhora idosa. Ela empurrou o pé pra trás, chutando a Lana por indiretamente tê-la encarregado de fazer a reclamação.

— Na verdade... — Thalita começou a falar com a voz incrivelmente baixa, demonstrando toda a sua timidez ao levar a mão ao pescoço. — Não é nada disso. Nós queríamos...

— Desculpa, querida — a interrompeu, gesticulando bastante. — Você pode falar mais alto? A velha aqui já está ficando surda. Não consegui entender os seus sussurros.

— Nós só queríamos... — Percebeu que continuava a falar num tom baixo e então se interrompeu. Inflou o peito, tomando ar para prosseguir. Mas quando sua boca se abriu novamente, nada saiu dela.

— Nós só queríamos pedir para abaixar o som — Eleonora tomou a vez, percebendo que a colega não conseguiria impor um simples pedido. — Minhas colegas precisam fazer um trabalho importante para a faculdade e não conseguem se concentrar pelo barulho.

— Ah, só isso? Por que não falou antes, minha querida?

A senhora fez um meneio com a mão e retornou para dentro do apartamento, deixando a porta aberta. Naquele instante Thalita lançou um olhar repreensivo para Eleonora.

— Minhas colegas? — sussurrou Thalita. — Sério? Foi você que tomou a iniciativa.

— Isso são apenas detalhes — rebateu Nora. O som abaixou e ela deu um sorriso vitorioso. — Viu? Funcionou.

Quando a senhora, retornou elas agradeceram e estavam prestes a partir quando uma pergunta veio de dentro do apartamento. Não podiam enxergar quem era, mas tiveram a atenção capturada.

— Vó?

— Aqui, meu filho! — devolveu o chamado, aumentando a entonação. Voltou o olhar para as garotas com um sorriso nos lábios. — É um menino muito preocupado o meu neto. Acha que por eu estar velha, não posso sair de suas vistas sem avisar.

— Isso é um completo exagero — um rapaz negro respondeu, pondo-se ao lado da senhora. Ele era mais alto que todas as mulheres ali presentes. — Ela adora me colocar na posição de super protetor, mas é tudo calúnia. Sou Nathan — se apresentou esticando a mão para cumprimenta-las.

— Lana. — A espanhola foi a primeira a dar um passo à frente para se apresentar. Passou a mão por seus fios loiros, jogando-os para os lado antes de esticar a mão para responder ao cumprimento. As amigas trocaram um olhar risonho, achando graça da tentativa de flerte de Lana. — Prazer!

Após o aperto de mãos longo, Eleonora e Thalita se apresentaram rapidamente.

— Elas vieram reclamar sobre a música alta, querido — explicou ao perceber a confusão nos olhos do neto, que não estava acostumado a ter vizinhas parados a sua porta. — Eu avisei que você não poderia continuar com os mesmos costumes que tinha em Cardiff. Viver num apartamento é muito diferente de viver num bairro residencial.

— Ah, desculpem. — Ele passou a mão por sua cabeça careca, visivelmente sem graça. — Juro que não foi a minha intenção incomodar. Estava baixo quando liguei, mas acabo me empolgando e quando vejo já coloquei no último volume.

— Não se preocupe — disse Lana, enrolando uma mecha do cabelo na ponta dos dedos. — O mesmo vive acontecendo com a gente.

— Vocês não querem entrar para comer um pedaço de bolo? — a senhora perguntou gentil de modo gentil, evidenciando a diferença no sotaque entre ela e o neto. — Acabei de tirar do forno. Aceitem como um pedido de desculpas. Sou Alba, aliás.

— Cla... — arranhou Lana, mas foi interrompida.

— Não podemos. — Thalita enlaçou o braço de Lana, a impedindo de aceitar o convite. — Estamos super atarefadas com uma faxina. Sabe como é, né? Três adolescentes estudantes que nunca param em casa. Temos que aproveitar o domingo para que o apartamento não fique uma zona.

A mentira estava estampada em sua cara. Eleonora se perguntou se a atitude era devido ao medo de soar inconveniente, porém continuou a estranhar a atitude um pouco atípica de Thalita. Por mais que das três, ela fosse a mais tímida, não havia sentido em inventar aquela desculpa.

Nathan meneava a cabeça, compreensivo. Ao seu lado Alba passara a olhá-las com desconfiança. Afinal não havia muito tempo desde que Eleonora dissera que estavam fazendo um trabalho da faculdade. A senhora a esta altura com certeza achava que as adolescentes eram do tipo que menosprezava os mais idosos.

— Mas quem sabe não voltamos outra dia? — Eleonora tentou mediar a situação, notando o desconforto que se instalara. — De qualquer forma, muito obrigada. Foi muito gentil de sua parte nos convidar, mas além de estarmos de fato atarefadas hoje, não queremos atrapalhar.

Alba assentiu, porém não se prolongou muito em sua resposta. A senhora se despediu rapidamente e fechou a porta. Então foi a vez de Eleonora e Lana olharem com estranhamento para Thalita.

— Que merda foi essa? A gente não tá fazendo faxina nenhuma — exclamou Eleonora.

— Se for necessário fazer uma faxina imaginária para manter Lana longe de mais uma possível paixão, a gente fará uma faxina falsa — afirmou Thalita. — Ainda mais quando o homem em questão for o nosso vizinho. Um flerte ou dois tudo bem, mas mais do que isso não. Vai por mim, Lana apaixonada é um desastre que você não quer ver por perto tão cedo.

— Por Deus! — Lana revirou os olhos, caminhando de volta para o apartamento. — Quando você vai esquecer isso? Só aconteceu uma vez!

— E foi suficiente para me deixar traumatizada por toda a vida — respondeu Thalita, acompanhando-a no trajeto. — Então até que as minhas provas finais acabem, eu prefiro te manter longe de qualquer um que me faça tê-la que buscar na cadeia novamente.

— Cadeia? — interrogou Eleonora, parando no meio do caminho, em dúvida se compreendera direito. — Vocês tão falando sério?

Lana balançou os ombros como se não fosse nada demais e adentrou no apartamento. Eleonora olhava para a porta incrédula. Ela odiava quando as colegas faziam aquilo. As duas eram mestres em relatar alguma experiência polêmica pela qual passaram juntas sem expor os detalhes, como se fosse algo banal.

Eleonora suspirou frustrada e fechou a porta ao entrar, determinada a fazê-las contar aquela história com todos os detalhes. Apenas esperava que aquilo desse uma boa história, pois precisava mesmo de um bom consolo por ter perdido seu sono.