Sexta-Feira — 23:06 — 02 de Novembro de 2018

Christopher Eccleston e Billie Piper corriam pela loja de departamento, fugindo do manequim de plástico que os atacava. Ou pelo menos Billie fugia. Eccleston, sendo o Doctor, apenas buscava tempo para descobrir o que estava por trás do ataque. Ou pelo menos era isso que Eleonora achava. Ela não tinha muito certeza quanto ao que se passava na tela da televisão. Na realidade, ela nem mesmo sabia como a personagem da Billie se chamava.

— Cara, esse show é muito louco! — Thalita, a colega de quarto brasileira de Eleonora, comentou com uma expressão tão confusa quanto a da morena.

Aquele programa não fazia o estilo de nenhuma das duas, porém tinham embarcado numa rotina de assistir um episódio todas as noites ao descobrirem ser um dos seriados mais famosos da TV britânica.

— Totalmente! Parece menos bizarro quando lembro que é um programa feito para crianças.

— Só se você focar nesses monstros ridículos, né? — disse, apontando para os bonecos de plásticos com o controle da televisão. Ela levou uma colherada de sorvete à boca e depois ofereceu o pote a Eleonora, que de pronto aceitou. — Porque fala sério! Que criança entenderia todos os termos científicos? Eu tenho dezesseis e ainda assim sinto que minha cabeça dá um nó às vezes.

— Real — concordou, com a voz um pouco estranha por falar de boca cheia. — E aí volta a não fazer sentido nenhum.

— Britânicos são loucos! — Balançou a cabeça em julgamento, fazendo com que um fio de cabelo crespo soltasse do coque improvisado e caísse sobre a sua face negra. — Mas até que é um pouco legal, né?

— É... Talvez fizesse mais sentido se tivéssemos começado a assistir tudo na ordem certa — opinou Eleonora.

— Eu avisei que acompanhar direto pela televisão não era uma decisão sensata. Mas você e a Lana não me deram ouvidos. Nós vivemos na era dos streamings, não tem porque nos torturarmos desse jeito.

Eleonora não comentou mais nada. Ela sabia que Thalita tinha razão. Elas tinham encontrado o programa duas semanas atrás totalmente por acaso quando zapeavam os canais da televisão, entediadas e sem coragem para sair e enfrentar a noite chuvosa de Londres. Desde então começaram a acompanhar. A dificuldade estava em compreender a trocar incessante de atores e personagens sem ter nenhum conhecimento prévio sobre o enredo de cada uma das temporadas. Tampouco auxiliava o fato de o canal exibir os episódios numa sequência completamente aleatória.

O celular de Eleonora vibrou, a fazendo desviar a atenção para verificar o que seria. Deu um sorriso ao constatar ser uma mensagem de Eva. Fazia um mês desde que se viram pela última vez. Um mês desde que embarcara num intercâmbio rumo a Londres. Um mês desde que Eleonora se transformara em pura saudade.

Por ser um áudio, clicou no botão do play e levou o celular ao ouvido para evitar que Thalita escutasse. A primeira coisa que identificou foi o ritmo pulsante das músicas de Fabio Rovazzi. Em seguida, a voz de Eva invadiu seu ouvido, e Eleonora sorriu como quem regressa ao seu recanto de paz.

Nooooraaaa! — Eva gritava muito animada, indicando que já havia ultrapassado o seu limite de álcool. — Ci manchi, Noooraa! Ritorna a Roooomaaa!

Você tá tããão bêbada! — Fede afirmou e logo em seguida riu.

A próxima frase era um protesto picotado de Eva. Nora afastou o celular para ouvir o próximo áudio e então o levou ao ouvido outra vez.

Ignora a Fede. Ela só está com inveja da minha capacidade de beber e continuar sóbria. Enfim... A gente só queria dizer que sentimos a sua falta e esta festa não está sendo o mesmo sem você.

È vero! Torna da noi, Nora! — Fede concordou, deixando Eleonora um pouco emocionada.

Alerta vermelho, ragazze! Alerta vermelho! Silvia não tá nada bem! — Eleonora reconheceu o tom imperativo de Sana e de súbito toda a tranquilidade em seu corpo foi substituída por tensão. — Temos que ir já!

Aquela foi a última frase pronunciada antes que o áudio chegasse ao seu fim. Eleonora esperou alguns segundos para conferir se não enviariam outra mensagem, porém não demorou para que a palavra online no contato de Eva fosse substituída por um visto por último. Fechou a aba do whatsapp e discou o número da amiga. Ouviu chamar pelo que pareceu ser uma infinidade até que por fim a ligação caísse. Suspirou frustrada.

Eva estava com o celular na mão há poucos segundos, o que custava atender?

Ligou para Sana e Fede, todavia o telefone de ambas caía direto na caixa postal. Tentou outra vez pelo celular de Eva, porém de nada adiantou.

Eleonora passou a mão pelos fios, segurando-os com força no topo de sua cabeça. Havia poucas coisas que odiava mais no mundo do que a sensação de se sentir impotente. Começou a imaginar várias teorias sobre o que poderia ter acontecido com Silvia até que uma luz piscou em sua mente.

Se aquilo que pensava fosse verdade, ela faria questão de retornar a Roma antecipadamente apenas para enterrar um corpo. Seu lado protetor não admitia que mexessem com as suas amigas. E mesmo que ela não soubesse de fato o que acontecera, não era muito difícil ligar os pontos quando os elementos Silvia e festa já eram fatos declarados. Estava óbvio para Eleonora que o que quer que tivesse ocorrido a Silvia fora provocado por um maldito fuckboy.

Como nenhuma das amigas respondia, Eleonora se rendeu e decidiu tirar satisfações com a única pessoa que poderia lhe esclarecer os fatos. Ela abriu as directs do instagram e foi descendo até chegar àquele que sempre evitava responder. A última mensagem enviada datava o dia em que Eleonora partira para Londres. Nela havia o número que até então Nora não se importara em salvar. Escreveu a sequência num papel, pois sabia que uma vez que trocasse de janela, não o recordaria. Em seguida, o digitou através da discagem de chamada. Assim que apertou o botão verde, começou a andar em círculos pela sala de estar, recebendo um olhar atento de Thalita.

Escutou cinco toques e, por um instante, pensou que não seria atendida. Ele provavelmente estava muito ocupado bebendo e partindo corações para se preocupar em atender as ligações de um número desconhecido. Afinal ao contrário dele, Eleonora nunca se preocupara em lhe passar seu número.

Estava prestes a desistir quando um som de música alta atingiu seus ouvidos. Somente então seus pararam pés.

— Pronto. Chi parla? — A voz plana de Edoardo soou, e a respiração de Eleonora se alterou.

— O que você fez com ela? — Foi direto ao ponto, sentindo a agitação se transformar em raiva. Não fosse pela música a ligação teria ficado muda, pois Edoardo não respondeu, irritando ainda mais a morena. — Me responde, Eduardo! Estou falando com você!

— Eleonora? — perguntou, parecendo confuso. Eleonora revirou os olhos ao imaginar o quanto ele já havia bebido.

— O que você fez com a Silvia? — repetiu a pergunta.

— Mas do que está falando? — questionou após mais alguns segundos em silêncio.

— Não se faça de estúpido, Eduardo! Sabe muito bem do que estou falando! Ou vai dizer que não a viu alguns minutos atrás?

— Sim, nós estamos na festa, mas...

— Então, pronto! Me diga logo o que fez com ela — ordenou.

Mannagia! Ma non ho fato niente! Nem sequer sei do que está falando! Por que eu tenho que ser o culpado de seja lá o que aconteceu com ela?

— Perchè sei un stronzo! Per questo. Sabe muito bem que ela está apaixonada por você. Além do mais, não seria a primeira vez que a trata como merda. Então...

Eleonora o ouviu suspirar e de repente o som da música abaixou, como se ele tivesse ido para um local menos barulhento.

— Pode parecer uma surpresa para você, mas não cheguei a trocar mais que um “oi” com Silvia hoje. Ou com qualquer uma de suas outras amigas. Mas, como você já tem a sua opinião formada sobre mim, não espero que acredite.

Desconcertada com as palavras dele, Eleonora sentiu o sangue queimar em seu rosto. Contudo seu orgulho não deixou transparecer a vergonha que sentia por ter se precipitado. Talvez ela tivesse cometido um erro em telefoná-lo fazendo acusações que não sabia serem verdadeiras, porém se ela possuía uma má imagem dele era porque tinha dado motivos para tal.

— Não se faça de vítima a esta altura do campeonato, Eduardo. Não quando você tem a sua parcela de culpa por estarmos nesta situação.

— Tudo bem. Talvez eu tenha sido um pouco estúpido com a Silvia, mas... — Foi interrompido por uma risada sarcástica.

— Eu não diria talvez e muito menos pouco.

— Ok. Mas ainda assim eu percebi meu erro e me desculpei. Não é isso o que importa?

Eleonora bufou indignada. Não seriam algumas desculpas meia-boca que a fariam esquecer como Edoardo havia sido babaca ao ignorar por completo a existência de Silvia, agindo como se não a conhecesse, logo após ter tirado a virgindade da amiga.

— Agora você quer biscoito por não fazer mais do que a sua obrigação? — Seu tom de voz aumentou, se tornando mais agudo.

— Droga, Eleonora! Por que tudo com você tem que ser tão complicado? — interrogou, parecendo estar verdadeiramente ofendido. Eleonora quase podia sentir pena dele, quase. — Se a própria Silvia me perdoou, por que você se recusa a ter ao menos uma conversa civilizada e sem acusações comigo?

— Você quer que eu te faça uma lista? Ok! Número um: Silvia só te perdoou porque segue sendo uma trouxa apaixonada por você. Número dois: suas desculpas não passaram de uma tentativa de massagear ainda mais o próprio ego. Número três: pedir desculpas por quebrar o coração de uma garota enquanto fica rondando a amiga dela é... Eu nem consigo descrever em palavras tamanho absurdo. Número quatro: não sou estúpida para cair nessa historinha de bom moço arrependido e apaixonado por mim.

— Acabou? — Edoardo questionou quando ela parou para tomar fôlego.

— Não, você quer que continue? A ligação provavelmente sairá bastante cara se for enumerar todos — alfinetou, e Edoardo não pôde evitar soltar uma risada.

— Bom, eu não vou tentar mudar sua cabeça, pois obviamente você é muito teimosa. Mas por hora tudo o que posso afirmar é que eu não troquei mais do que cinco palavras com as suas amigas hoje, mas percebi que elas passaram bastante tempo com os garotos do 1º ano. Talvez você devesse gritar com eles. Quanto à outra afirmação é uma pena que você não possa ler meus pensamentos, pois te juro, Nora, você é a única que habita minha mente.

Eleonora sentiu seu coração palpitar um pouco mais rápido e agradeceu por não estar diante dele naquele momento. Já era suficientemente ruim que ela reagisse daquela maneira às mentiras declaradas dele, Edoardo não precisava sair vitorioso ao ver sua cara de trouxa.

Pela primeira vez, Nora amaldiçoou a sua paixão por Eva. Afinal, aquela era a única razão para que seu coração se enfraquecesse pelas palavras dele. Era claro que ficar suspirando por Eva sem ser correspondida estava deixando-a carente e suscetível a qualquer mínima demonstração de afeto romântico, por mais falso que fosse.

Ela se recompôs após alguns segundos em silêncio e retrucou numa tentativa de sair ilesa.

— Devo confessar que estou decepcionada, Eduardo. Alguém com a sua reputação não deveria usar cantadas tão clichês e previsíveis. Afinal você sabe como para conquistar uma garota, você tem que se mostrar especial e não apenas mais um entre vários.

— Nora... — Ele começou, mas se interrompeu quando uma voz fina o chamou. Eleonora também ouviu e teve a certeza de que aquele era o momento de encerrar a chamada. Edoardo pediu para esperar um segundo enquanto ele falava com a pessoa do outro lado da linha. No entanto a primeira coisa que Eleonora fez ao ouvir a breve troca de palavras no outro lado da linha foi desligar o celular.

Jogou-se no sofá frustrada e encarou a tela do celular mais uma vez na esperança de que houvesse alguma mensagem das amigas, mas nada. A última era justamente o áudio que Eva tinha enviado vinte minutos antes e a deixara alarmada.

Eram nesses momentos que Eleonora se entristecia por ter feito as malas e partido para a Inglaterra. Não que estivesse arrependida por ter escolhido o intercâmbio. Muito pelo contrário. Era uma ótima oportunidade para abrir seus horizontes e melhorar seu inglês, que não era dos melhores. Ela adorava a paisagem londrina e gostava ainda mais da possibilidade de conhecer tantos estrangeiros. Embora se conhecessem há pouco tempo, já nutria um carinho muito especial por suas duas colegas de apartamento. No entanto os diversos quilômetros que a distanciavam das amigas a faziam se sentir deslocada. Não havia nenhum culpado por aquilo a não ser o destino, mas Eleonora não podia evitar a mágoa a cada vez que elas contavam sobre algo engraçado que compartilharam e ela se recordava que aquela memória jamais pertenceria a ela.

Ademais, não saber o que se passava com Silvia a deixava mal. Nora sabia o quanto a garota era sensível à opinião alheia e, mesmo que não se tratasse de uma desilusão amorosa, ela gostaria de estar ao seu lado para lhe oferecer apoio. Tudo o que lhe restava era torcer para que tudo não tivesse passado de um exagero de Sana e o alerta vermelho fosse apenas um vestido molhado de cerveja.

Eleonora sentiu seu celular vibrar e mirou a tela ansiosa na esperança de que fosse alguma das meninas, porém soltou um resmungo ao ler a palavra stronzo estampada na tela. Ela recusou a chamada, porém não demorou até que outra tentativa de ligação ocorresse. Recusou outra vez e jogou o celular para o canto oposto do sofá. Puxou a manta para si, enquanto voltava a prestar atenção na televisão.

— Não vai atender? — Thalita, a colega de quarto de Eleonora questionou quando o celular tocou pela terceira vez e Eleonora não fez qualquer movimento para atendê-lo. A morena acenou em negação. Ela já tinha tido o suficiente de Edoardo por uma noite e sua paciência para continuar a aturá-lo era zero. — Bom, seja lá quem for, eu só espero que nunca te irrite dessa forma. Não gostaria de ter esse olhar assassino voltado pra mim.

— Não se preocupe, docinho. Somente idiotas podem estragar meu humor. — Tranquilizou-a com um sorriso.

— É justamente esse o problema — provocou com um olhar zombeteiro. — Você tem o super poder de olhar para todas as pessoas como se elas fossem idiotas.

— Cala a boca! — riu e tacou uma almofada em Thalita. A ameaça não foi bem sucedida, pois a garota a pegou no ar e, em seguida, atirou-a novamente em direção a Eleonora. Ela tentou desviar, porém acabou sendo acertada em cheio. Iria revidar quando a colega protestou, a fazendo parar.

— Ei, se comporte! — Ergueu o dedo como se repreendesse uma criança. — Você está tirando a minha concentração do ataque dos manequins.

— Covarde! — Mostrou a língua, mas apesar da provocação, manteve a almofada perto de si.

No fundo, Eleonora agradecia por Thalita não fazer muitas perguntas sobre a ligação de alguns minutos atrás, ainda que sua curiosidade fosse nítida. Provavelmente se fosse Lana ali, ela já teria sido intimada a fazer a análise de toda a árvore genealógica de Edoardo. A outra colega costumava ser bem menos discreta que Thalita. Então era um alívio que a espanhola tivesse saído com o pessoal da sua universidade.

Eleonora pegou o resto do sorvete que havia no pote e tentou esquecer dos conflitos de sua própria vida, enquanto observava Rose e o Doctor correrem em direção ao London Eye para solucionarem mais um problema causado pelos alienígenas.