Titanomaquia
XXIII. Não sou uma assassina!
Já era hora de almoço e os nossos estômagos roncavam escandalosamente, por isso decidimos comer alguma coisa antes de Karenn me levantar ao encontro do Mestre da Sombra. Lee não nos acompanhou porque não julgou que a sua presença fosse necessária; preferiu ir para a biblioteca e pesquisar um pouco sobre os ingredientes que faltavam para concluir a poção. Eu e Karenn prometemos juntar-nos a ele assim que as questões da papelada estivessem resolvidas.
Fui ao quarto buscar a declaração antes de seguir a pequena vampira pelos corredores do quartel. Estava convencida de que ela me levaria para a ala do quartel dedicada à Guarda Sombra, provavelmente para o gabinete de Nevra, por isso não estava de todo preparada para ver o vampiro surgir de roupão à porta do que era, indubitavelmente, o seu quarto.
— Karenn — admirou-se ele — O que fazes aqui?
— A Eduarda queria falar contigo.
O olho prateado do vampiro fixou-se em mim, encontrando de imediato o papel na minha mão.
— Isso é o que eu penso que é? — perguntou com um sorriso ansioso.
— Yap — confirmei, estendendo-lhe a declaração — Sou o mais recente membro da Sombra. Parabéns.
Nevra pegou na declaração com um grunhido entusiasmado.
— Isto é fantástico, mal posso esperar para começar o teu treino!
— Sobre isso… gostava de te fazer algumas perguntas. Pode ser?
— Claro, deixa-me só… — Nevra virou a cabeça para o interior do quarto — Estão prontas?
Ouvi um murmúrio de vozes femininas antes de duas raparigas desgrenhadas e muito sorridentes aparecerem junto da porta. Nevra afastou-se para lhes dar passagem, elas acenaram uma rápida despedida enquanto saiam e depois foram-se embora, rindo e cochichando. Eu fiz um trejeito enojado que não passou despercebido a Nevra.
— O que foi? — perguntou na defensiva — Eu também preciso de almoçar!
— Sem comentários…
— Queres entrar e colocar as tuas questões ou continuar a condenar-me pela minha natureza? — continuou o vampiro, apontando o quarto com um gesto do braço.
— Eu não vou entrar aí! — neguei rapidamente.
— Porque não?!
— Acabaste de fazer coisas inenarráveis com duas raparigas aí dentro! Não vou entrar!
— Inena-quê? — perguntou Karenn, enquanto o irmão revirava o único olho que tinha.
— Tudo bem, dá-me cinco minutos para me vestir.
— Faz favor!
Nevra voltou a revirar o olho e fechou a porta.
— O Lee está à nossa espera — recordou-me Karenn — A tua conversa com o Nevra vai demorar muito?
— Talvez — admiti, lembrando-me da quantidade de perguntas que queria colocar ao vampiro — Devíamos avisar o Lee…
— Eu trato disso — aprontou-se Karenn, abrindo um sorriso amoroso — Virás ter connosco depois?
— Claro.
— Nesse caso, até já.
— Até já…
Karenn afastou-se pelo corredor e eu encostei-me à parede enquanto esperava o regresso do vampiro, que não tardou a aparecer.
— De certeza que não queres conversar no meu quarto? — perguntou-me antes de fechar a porta — Não vais ver nada de estranho, se é esse o problema…
— Não quero saber, não vou entrar — teimei.
— Tudo bem… Nesse caso, vamos para o meu escritório. Aproveito para guardar a tua declaração e mostrar-te o labirinto.
— Labirinto?
— É o nosso campo de treino. Anda, eu mostro-te.
Nevra guiou-me por uma infinidade de corredores até chegarmos a uma zona escura, fria e mortalmente silenciosa do quartel. Um arrepio eriçou-me os cabelos, sentindo-me observada, e tive de engolir um grito quando ouvi risinhos baixos algures. Dei a minha mão ao vampiro sem pensar duas vezes, arrancando-lhe um sorriso divertido.
— Não tenhas medo. Ninguém te fará mal.
Eu não fiquei lá muito convencida, mas deixei que ele me continuasse a puxar até ao final do corredor. Abriu a porta do que presumi ser o seu gabinete e entrámos.
— Senta-te — convidou Nevra, apontando para uma das poltronas dispostas diante da sua secretária — Queres beber alguma coisa?
— Não, obrigada.
— Não te estou a oferecer bebidas… impróprias para consumo humano — clarificou enquanto remexia um arquivo ao fundo da divisão — Estou a oferecer água ou um refresco…
— Fico feliz, mas não, não quero nada.
Nevra guardou a minha declaração dentro de um dos arquivos e depois sentou-se diante de mim, do outro lado da secretária.
— Querias colocar-me algumas questões…
— Sim. Queria que me explicasses o que raio é esse “dom para camuflagem”.
— Não sabes o que é camuflagem?
— Sei, mas não entendo o que te leva a julgar que tenho um dom para isso.
— Eu sou um vampiro, Eduarda — disse Nevra, sério — Fui concebido para a caça, para perseguir e matar a minha presa. Os meus sentidos são infinitamente mais apurados do que os teus. Temos uma secretária a separar-nos, mas eu consigo sentir o calor do teu corpo, ouvir o bater do teu coração e saborear o ar que respiras. Tu, no entanto, conseguiste esconder tudo isso de mim esta manhã. Eu não te via, ouvia ou sequer sentia. Entendes a grandiosidade do teu feito? Tu despistaste um dos melhores predadores desta realidade sem qualquer treino ou esforço!
— Se eu te despistei, como é que me encontraste?
— A tua presença surgiu do nada atrás de mim. Julgo que perdeste o controlo da tua habilidade nesse momento. É por isso que quero treinar-te — disse Nevra, chegando-se à frente com um sorriso empolgado — Quero ensinar-te a controlar esse dom, explorar todas as suas potencialidades… e tornar-te uma das minhas agentes mais mortíferas.
— Mortífera? Mortífera em que sentido?
— Todos!
— Espera aí — pedi, erguendo as mãos — Estás à espera que eu use o meu “dom” para… matar alguém?
— Se a ocasião surgir, sim.
— Nem penses! — neguei de imediato — Eu não vou matar ninguém! Não sou uma assassina!
— Não, não és — concordou Nevra, voltando a ficar sério — Um assassino mata indiscriminadamente com o propósito de se divertir. Nós matamos para sobreviver, Eduarda… Tu farás o mesmo, se quiseres viver tempo suficiente para regressares a casa.
— O que queres dizer com isso?
— Eldarya pode parecer-te pacífica… mas as coisas não são bem como parecem. Julgo que sabes porquê…
Emudeci por instantes, enquanto o significado das palavras de Nevra me atingia.
— Estás a falar do… titã?
O vampiro assentiu.
— Vai haver uma nova guerra? — perguntei, inquieta.
— Não sei… Estamos a tentar evitá-la, mas um titã não é o tipo de criatura que possamos matar discretamente, com um pequeno grupo de faeries. Exércitos inteiros sucumbiram às suas mãos durante a Titanomaquia, as nossas raças mais poderosas foram quase conduzidas à extinção… Se houver um novo confronto, não há quaisquer garantias de sobrevivência para nós, faeries — Nevra passou nervosamente a mão pelos cabelos — A nossa sorte é que ele está fraco. Julgamos que a travessia entre as realidades o tenha debilitado, mas é só uma questão de tempo até a energia do cristal vermelho o fortalecer…
— Espera, espera, espera — pedi apressadamente — Estás a dizer que… ele já consumiu um cristal?
— Ninguém te disse? — admirou-se o vampiro — Ninguém te falou de Darr?
— Darr? O que é isso?
— Darr é uma das Cinco Grandes Cidades, juntamente com Eel, Ryss, Vaan e Nuum. O titã invadiu-a há cerca de dois meses para consumir o seu cristal.
Eu limitei-me a piscar os olhos, cilindrada.
— Como… é possível?
Nevra encolheu levemente os ombros.
— Nós vivemos centenas de anos em paz. Acreditámos que tínhamos eliminado todas as ameaças à nossa existência e descuidámos a nossa própria segurança. O titã não teve qualquer dificuldade em entrar e chegar ao cristal.
— O que aconteceu depois? — perguntei num murmúrio.
— O titã partiu o cristal e tentou alimentar-se, mas estava demasiado fraco para conter a sua energia. A Maana dispersou-se e… arrasou a cidade inteira. Foram poucos os que sobreviveram. O próprio titã foi ferido pela explosão.
— Como sabes?
— Relatos de sobreviventes.
— Vocês confiam muito nos relatos de outras pessoas — comentei.
— Nós confirmámos a veracidade dos relatos, óbvio.
— Como? Vocês não estavam lá…
— Há vestígios, Eduarda, vestígios de onde podemos retirar muita informação.
— Foste lá ver esses vestígios? — perguntei num tom ligeiramente desafiador.
— Não. A cidade está interdita, só os investigadores destacados pelos Sacerdotes têm autorização para entrar.
— Quem é que a Miiko destacou?
— O Leiftan.
— Ah — fiz, compreendendo — A “missão ultrassecreta da Miiko”…
— Exatamente.
— Se a missão é tão secreta, porque é que me estás a falar dela?
O vampiro encolheu os ombros.
— Faz alguma diferença? Tu já sabes mais do que devias graças ao teu vício de ouvir atrás das portas…
— Não é um vício! — neguei, revoltada.
Nevra riu-se baixinho.
— Eu sei, eu sei — fez uma pequena pausa — Estou a contar-te tudo porque preciso que entendas a gravidade da situação… e a premência de manter segredo.
— As pessoas não sabem que há um titã à solta em Eldarya?
— Sabem… mais ou menos… Nós não queremos instalar o pânico, então… dissemos que havia um titã, mas que estava fraco e que iríamos eliminá-lo antes de causar mais estragos.
— Isso é mentira?
O vampiro torceu ligeiramente o nariz.
— Será, em breve… O titã está a recuperar a sua força e parece bastante empenhado em tornar o nosso cristal a sua próxima refeição.
— Achas que é o titã que está a partir o cristal?
— Sinceramente? Duvido.
— Porquê?
— Porque iria ele partir o cristal aos poucos? Porque não parti-lo e consumi-lo de uma vez?
— Talvez queira evitar uma nova explosão de Maana…
— Partir o cristal aos poucos não fará diferença. Se ele não estiver lá para conter e consumir a energia libertada, ela irá dispersar-se de novo.
— Será que ele quer provocar a explosão para vos matar a todos, então?
— Não… ele não iria desperdiçar o seu precioso alimento, tão escasso na nossa realidade — Nevra remexeu-se no cadeirão, pensativo — Além disso, a Miiko disse que as Honras faziam pior… Como é que é possível?
— As Honras são as cerimónias para venerar o cristal, não é? — procurei confirmar, lembrando-me do que lera nos livros.
— São, sim.
— Será que vocês o veneraram demasiado e o próprio cristal não aguenta a energia contida?
Nevra fez uma expressão intrigada.
— É verdade que nós começámos a Honrar o cristal azul com mais frequência desde que o cristal vermelho se perdeu. Achámos que seria necessário para compensar a perda desse último.
— Se calhar exageraram — alvitrei — O cristal começou a partir-se porque a sua forma física já não aguentava a energia mística… A Maana começou a libertar-se dos pequenos fragmentos e isso chamou a atenção do titã, por isso é que escolheu o vosso cristal como próxima vítima.
Nevra fixou-me enquanto considerava as minhas palavras.
— Faz sentido e devo admitir que já tinha ponderado algo semelhante, mas… parece-me uma explicação demasiado pobre.
— Pobre? — repeti, injuriada — Arranjas uma melhor?
— Não — negou o vampiro, sorrindo — É esse o problema…
Soltei um pequeno soluço de desdém, fazendo o sorriso de Nevra alargar-se. Um silêncio pensativo instalou-se por alguns instantes, até eu o quebrar:
— Já agora… porque é que o meu nome surgiu no meio da vossa conversa?
— Ah… isso… — Nevra soltou um risinho nervoso — Queres mesmo saber?
— Claro.
Nevra chegou-se à frente, apoiando os cotovelos no tampo da secretária.
— A Miiko está convencida… de que tu tens algum tipo de relação com o titã.
O sangue fugiu-me do rosto enquanto o coração me caia aos pés. Miiko acreditava que eu tinha uma ligação com o flagelo de Eldarya? Julgar-me-ia uma cúmplice do monstro que os ameaçava? O que fizera eu para ela desconfiar tanto de mim?! É certo que surgira na sala do cristal em situações muito improváveis e suspeitas, mas… eu dissera, sob o efeito do elixir da verdade, que não pretendia danificar o cristal! Porque não acreditava ela em mim?!
Entendia agora por que razão Miiko me perguntara coisas como “quem te enviou?” ou “alguém te pediu para partir o cristal?” Era, todavia, simplesmente ridículo que ela continuasse a duvidar de mim depois de tudo o que acontecera. O que mais teria eu de fazer para provar a minha inocência?!
— Eu não fiz nada de mal para vocês me considerarem cúmplice do titã — defendi com a voz embargada — Nada…
Nevra levantou-se do seu cadeirão, contornou a secretária e, com uma expressão entristecida, ajoelhou-se diante de mim. Segurou carinhosamente o meu rosto entre as mãos frias, empurrando os cabelos para trás para ter uma visão desimpedida dos meus olhos marejados de lágrimas.
— Eu sei que não és uma cúmplice, Eduarda — garantiu num murmúrio — A Miiko também sabe, apenas… — suspirou — Ela acha que tu tens algo que o titã quer.
— Como o quê?
As mãos de Nevra soltaram o meu rosto e poisaram nos meus joelhos.
— Não sabemos, é esse o problema.
Sacudi levemente a cabeça, tentando organizar os meus pensamentos confusos.
— Eu não entendo… porque acham que ele quer algo de mim? Ele fez algo que desse a entender isso?
— Fez, sim — Nevra humedeceu nervosamente os lábios — Foi ele quem te tirou das masmorras, Eduarda…
O ar abandonou-me subitamente os pulmões enquanto eu processava as palavras do vampiro. Ele estava a dizer que…?
— Não pode ser — neguei, confusa — O homem mascarado não pode ser o titã, eu… eu vi ilustrações dos titãs! Eles são enormes, têm caudas e… e têm asas! Têm asas por todo o lado…!
— Eles podem assumir forma humana — revelou Nevra.
— Não — murmurei, horrorizada — Não pode ser ele…
— É ele, Eduarda. Tenho a certeza.
Não… Não podia ser verdade! Ele fora tão bom para mim… Ele não podia ser o monstro que ameaçava destruir aquele mundo!
Fui acometida por uma data de pequenas tonturas quando me lembrei de quão perto estivera do homem mascarado. Céus… Eu atirara-me ao seu peito… estivera nos seus braços! Braços que me poderiam ter reduzido a cinzas naquele momento, se ele o desejasse!
O que diabos fora tudo aquilo?!
— Eduarda? — chamou Nevra, preocupado.
— Eu não me estou a sentir bem — murmurei.
— Estás pálida… e fria — constatou, poisando uma mão na minha testa — Tens tonturas? Queres um copo de água com açúcar?
Assenti debilmente e o vampiro afastou-se na direção do que presumi ser um minibar, deixando-me a ser consumida pelo choque… e pela compreensão.
Fazia sentido… O pânico quando souberam que um homem mascarado me salvara das masmorras… os segredos quanto à sua identidade… os avisos de Ezarel! Ele bem me avisara que o homem mascarado não era um príncipe encantado… bem me avisara para não confiar nele!
O que quereria ele de mim?
— Aqui está — murmurou o vampiro, aproximando um copo de água dos meus lábios — Bebe devagarinho…
Nevra ajudou-me a segurar o copo enquanto eu sorvia alguns goles de água e recolheu-o quando me recostei na poltrona com um pequeno suspiro.
— Melhor? — perguntou, inquieto.
Anuí com um pequeno gesto de cabeça.
— Nevra?
— Sim?
— O homem mascarado… o titã… era o teu principal suspeito para o roubo das minhas amostras, não era?
— Era… e ainda é.
— Porquê? Achas que… o homem morto…?
— O homem morto é um mistério — disse Nevra, frustrado — Eu não entendo o envolvimento dele nesta história… Tu conhecias aquele homem?
— Não…
— Eu não percebo… O meu primeiro pensamento foi que ele trabalhava para o titã, mas então… quem é que o matou? Há mais alguém interessado nas tuas amostras? Para quem é que o homem roubou as amostras, afinal? Quem é que o matou? Não percebo…
— Não creio que ele estivesse a trabalhar para o titã… Não creio que um faery aceitasse trabalhar para a criatura que pretende condenar a sua raça à extinção — defendi.
Nevra fez um pequeno sorriso sem humor.
— Acredita, Eduarda, há faeries a trabalhar para ele. Há faeries a compactuar com a destruição de Eldarya.
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