Titanomaquia

XXIV. Fizeste batota!


Nevra deu-me a beber o resto da água com açúcar, poisando o copo no chão antes de apertar as minhas mãos entre as suas. Eu sacudi levemente a cabeça, sem querer acreditar que havia faeries do lado do titã.

— Porque fariam eles isso? — perguntei num murmúrio — Porque iriam eles destruir o único sítio que têm para viver?

— Não sabemos — disse o vampiro no mesmo tom de voz — Talvez o titã lhes tenha oferecido algo em troca. Talvez tenha prometido poupá-los.

— Eles acreditam mesmo nisso?

— Aparentemente…

— É uma estupidez…

— É, sim — concordou Nevra, soltando um risinho amargurado — Infelizmente, nós não podemos obriga-los a mudar de ideias.

Fiz um trejeito de concordância, mas não disse mais nada. Ficámos em silêncio até o vampiro decidir quebrá-lo.

— Aproveito a conversa para te informar que… nós revistámos o homem morto e o sítio onde foi encontrado, mas não encontrámos as tuas amostras. Presumo que o homicida as tenha levado.

— Isso quer dizer que as perdemos para sempre?

Nevra hesitou na resposta, torcendo a boca com desagrado.

— Eu vou continuar a investigar — garantiu, esquivando-se à pergunta — Vou fazer tudo ao meu alcance para recuperar as amostras, prometo.

Fiz um pequeno aceno de cabeça e acrescentei:

— Tem cuidado… por favor…

Nevra abriu um pequeno sorriso admirado.

— Estás preocupada comigo?

— Óbvio — respondi na defensiva — Um homem morreu por causa das minhas amostras, não quero que aconteça o mesmo contigo.

O vampiro poisou uma mão no peito, fingindo-se comovido.

— Fico feliz por saber que a minha existência te apraz, mas deixa-me tranquilizar-te: eu sou bem mais difícil de matar.

— Não tens piada — neguei, sisuda.

Nevra soltou uma pequena gargalhada e levantou-se com um pulo satisfeito.

— Chega de assuntos sérios e tristes! Vamos falar de coisas mais felizes!

— Como o quê?

— O teu treino!

— Isso é mais feliz? — perguntei, erguendo uma sobrancelha duvidosa.

— Claro que é! Poderás passar mais tempo comigo — disse o vampiro, baixando sensualmente o tom de voz.

Revirei os olhos, mas não consegui evitar um pequeno sorriso. Nevra retribuiu-o largamente antes de estender as mãos na minha direção.

— Anda — chamou — Quero mostrar-te o labirinto!

Aceitei as mãos que o vampiro me estendia e deixei-o puxar-me para fora do escritório, curiosa sobre esse labirinto. Nevra explicou-me o caminho, descemos umas longas escadas em espiral e, finalmente, chegámos à sala que era simultaneamente o ponto de partida e chegada do labirinto. Uma infinidade de túneis frios e escuros desaguava ali, deixando grandes buracos nas paredes e distorcendo a acústica da sala. Os sons pareciam ampliados e mais estridentes, tornando o conhecido tilintar de guizos particularmente incómodo.

Lithiel estava sentada num dos dois bancos dispostos no centro da sala, concentrada na sua própria coxa, mas ergueu a cabeça quando ouviu os nossos passos ecoar na divisão. Nevra apressou o passo na sua direção, perguntando num tom subitamente preocupado:

— O que aconteceu?

Lithiel encolheu os ombros com uma pequena careta.

— Alguém mudou a armadilha dos dardos de sítio… Só percebi tarde demais…

— A sério? Caíste na armadilha dos dardos? — perguntou Nevra, contendo um sorriso.

— Estava muito bem escondida! — defendeu-se a rapariga, zangada.

Nevra soltou uma pequena gargalhada e Lithiel fulminou-o com o olhar antes de devolver a atenção à própria coxa. Vi, nesse momento, a fina farpa de madeira cravada na sua perna.

— Como é que isso aconteceu? — perguntei, preocupada.

— Ela caiu numa armadilha do labirinto — explicou Nevra, divertido.

— O labirinto tem armadilhas?

— Claro!

— Isso não é perigoso? — indaguei, indicando com um gesto a farpa que Lithiel estava a puxar com todo o cuidado.

— Tem de ser perigoso, caso contrário, ninguém levaria o treino a sério — Nevra estendeu a mão e arrancou a farpa com um único puxão, fazendo Lithiel rolar para o chão com um grito de dor — Pronto. Feito.

— Filho da…! — começou Lithiel a praguejar, agarrada à própria perna.

— Deixas-me curar a ferida? — perguntou o vampiro, impassível.

— Não! Afasta-te de mim!

— Tudo bem, mas eu fico com o dardo — decidiu ele, enfiando a farpa ensanguentada na boca e fazendo uma pequena careta — O teu sangue tem um sabor estranho… Andas a alimentar-te convenientemente?

— Não tens nada com isso! — gritou Lithiel, corando de raiva. Levantou-se com alguma dificuldade e voltou a sentar-se no banco, examinando a ferida na perna. Nevra insistiu:

— Tens a certeza que não queres que cure isso?

— Absoluta! Mantém a língua bem longe de mim!

O vampiro encolheu os ombros, amuado.

Lithiel começou a tratar o ferimento com os remédios que trazia numa pequena sacola e, enquanto enfaixava a coxa, perguntou:

— A propósito, o que estão vocês a fazer aqui?

— Vim mostrar o labirinto à Eduarda — revelou Nevra.

— Porquê?

— Porque ela agora faz parte da Sombra.

— A sério? — perguntou a rapariga na minha direção, abrindo um pequeno sorriso — Parabéns, sê bem-vinda.

— Obrigada…

— Tem cuidado nos treinos — acrescentou com um sorrisinho malicioso — O Nevra gosta de ferir os recrutas de propósito para poder lamber-lhes as feridas…

— Isso não é verdade! — defendeu-se o vampiro de imediato.

Lithiel levou a mão ao nariz, tapando-o de forma dramática. Nevra entendeu o gesto e franziu o sobrolho, irritado.

— Eu não estou a mentir, para com isso!

— O fedor…

— Para com isso!

Lithiel tirou a mão do nariz, rindo levemente, e Nevra franziu ainda mais o sobrolho.

— Se estás assim tão preocupada com o que farei à Eduarda, porque não te juntas a nós?

— O quê? — admirou-se a rapariga, desfazendo o sorriso.

— Seria produtivo, aliás, uma vez que as vossas habilidades têm pontos de contacto.

— Pontos de contacto? O que queres dizer com isso?

O Mestre da Sombra abriu a boca para responder, mas um grito irado cortou-lhe a palavra:

— NEVRA!!

Virámos todos a cabeça na direção do guincho, vendo Miiko aproximar-se.

— Miiko! — exclamou o vampiro, em jeito de saudação — O que fazes aqui?

— O que é isto?! — fremiu a mulher-raposa, espetando um pedaço de pergaminho no rosto de Nevra. Ele ergueu rapidamente as mãos para pegar na folha e afastá-la do nariz, semicerrando o seu único olho ao analisá-la.

— É uma declaração da admissão da Eduarda na Guarda Sombra — respondeu sucintamente.

— Como é que isto aconteceu?!

— A Eduarda fez o teste e caiu na Sombra, fim.

— Fizeste batota! — acusou Miiko, apontando um dedo acusador a Nevra — Disseste-lhe as respostas, não foi?!

— Não, porque isso seria desrespeitar o “legado que os nossos antepassados nos deixaram”…

— Não te armes em engraçadinho comigo! — berrou Miiko com as caudas eriçadas e fumo a sair das pontas azuis — Julgas-me parva?! Achaste que eu não perceberia…?!

— O Mestre Nevra não está a mentir! — exclamou Lithiel, reunindo todas as atenções.

Miiko fixou-a, desconfiada, e eu quase não consegui disfarçar a minha surpresa. O que estava Lithiel a fazer? Ela sentia o cheiro a mentiras, sabia perfeitamente que…

— Não acredito em ti — disse a mulher-raposa.

— O que ganharia em mentir? — volveu a rapariga — A questão não me diz respeito…

— Salva os teus pareceres, então!

— …mas recuso-me a permanecer indiferente diante de uma injustiça. Já fiz isso mais vezes do que gostaria, como a Sacerdotisa bem sabe…

— Silêncio — exigiu Miiko num tom baixo e ameaçador — Não vou permitir que toldes o meu discernimento com as tuas falsidades!

Lithiel soltou uma gargalhada.

— A sua hipocrisia é hilariante, Miiko!

As caudas da mulher-raposa começaram a eriçar-se e Nevra decidiu intervir antes que a discussão ficasse (ainda mais) acalorada.

— Chega, meninas, chega! Não há razão nenhuma para estarem a atacar-se uma à outra…

— Ela insultou-me! — recordou a Sacerdotisa.

— Ela estava a tentar defender-me das tuas acusações — corrigiu Nevra — A Lithiel sente o cheiro de mentiras, logo, sabe que eu não menti quando disse que não dei as respostas do teste à Eduarda. Correto, Lithiel?

A rapariga anuiu com um gesto de cabeça.

— Eu conheço bem as habilidades da criatura — rosnou Miiko — Sei, inclusive, que ela mente como se a sua vida dependesse disso!

Lithiel soltou uma nova gargalhada, mas não fez comentários. Miiko lançou-lhe um olhar ardente de ódio.

— A Lithiel não pode mentir neste momento porque acabou de beber elixir da verdade — revelou Nevra, recuperando a atenção da Sacerdotisa.

— Quando foi isso? — perguntou, desconfiada.

— Minutos antes da sua chegada, Sacerdotisa — disse Lithiel — O Mestre Nevra lembrou-me que não entreguei o relatório da missão que realizei há alguns dias, então bebi o elixir para tratar desse assunto o mais rapidamente possível.

Miiko ficou a olhar de Nevra para Lithiel, pouco convencida, até que fixou os profundos olhos azuis em mim.

— O Nevra deu-te as respostas da Sombra?

— Não — menti sem hesitar.

— Respondeste às questões sem qualquer tipo de interferência ou influência de outrem?

— Sim.

Miiko fixou-me com desconfiança, mas acabou por soltar um estalido irritado com a língua. Recuperou a declaração na mão de Nevra e, sem uma só palavra, deu meia volta e foi-se embora. Eu, Nevra e Lithiel quedámo-nos silenciosos e imóveis até ela desaparecer. O vampiro foi o primeiro a manifestar-se, virando-se para Lithiel.

— Porque é que te meteste? — Lithiel abriu a boca para responder, mas Nevra impedia-a com um gesto da mão — Espera, não digas nada. Não estamos no sítio adequado para ter esta conversa. Vamos para o meu escritório. Tu também, Eduarda. Vamos…

Confusa e intrigada, limitei-me a fazer o que o vampiro mandava, seguindo-o até ao seu escritório. Sentei-me na mesma poltrona que ocupara momentos atrás e Lithiel sentou-se ao meu lado enquanto Nevra fechava a porta.

— Aqui podemos falar sem rodeios — dizia ele enquanto se dirigia para o seu cadeirão e se sentava, de pernas cruzadas — Porque mentiste, Lithiel?

— Preferias que tivesse dito a verdade?

— Não, longe disso! A tua intervenção salvou-me de uma grande alhada e fico-te muito agradecido pela ajuda, mas… não compreendo por que razão intercedeste a meu favor. Não teria sido melhor para ti ficar à margem em vez de te envolveres na confusão? Ou achaste que era uma oportunidade para insultar a Miiko que não podias desperdiçar?

Lithiel soltou um risinho.

— Talvez… Na verdade, fui movida por curiosidade. Sei que não revelarias as respostas da Sombra à Eduarda sem uma boa razão e fiquei a questionar-me sobre qual seria. Tem algo a ver com a tal habilidade que dizes ter pontos de contacto com a minha?

— Tem, sim…

— Do que se trata, exatamente?

— A Eduarda consegue camuflar-se. A camuflagem é diferente da tua, mas igualmente eficaz. Talvez mais, se ela conseguir controlá-la.

Lithiel lançou-me um olhar intrigado, murmurando:

— Não me digas…

— Ela consegue esconder todos os sinais da sua presença, calor corporal, batimento cardíaco, tudo… É incrível!

— Eu gostaria de ver. Podes mostrar-me? — perguntou-me Lithiel.

— Não sei — respondi, encolhendo os ombros — Eu não sei como faço isso…

— Ela precisa de uma pequena motivação — disse Nevra, abrindo um sorrisinho maroto que revelava as presas brancas — Normalmente, ameaço mordê-la!

— Nem penses — neguei, lançando-lhe um olhar de aviso.

— Como é que ela camufla o corpo? — continuou Lithiel a questionar, ignorando a minha pequena discussão com Nevra — Fica invisível ou adquire as características do espaço que a rodeia?

— Não sei — admitiu o vampiro — Eu não estava presente quando a habilidade se manifestou e só voltei a encontrá-la quando o encantamento ruiu. Nunca a “vi” com a habilidade ativa.

Lithiel ficou pensativa, mirando-me como se estivesse a tentar dissecar-me. Encolhi-me contra a poltrona, desconfortável com o seu olhar fixo.

— Gostaria mesmo de vê-la sob o efeito da camuflagem — comentou por fim — Podemos fazer a habilidade emergir agora?

— Podemos tentar — confirmou Nevra, voltando-se para mim — Tudo bem para ti?

— Eu não sei mesmo como faço aquilo — repeti, insegura — Não sei se consigo…

— Fecha os olhos — aconselhou o vampiro.

Tinha as minhas dúvidas de que aquilo fosse ajudar de alguma forma, mas cedi.

— Relaxa…

Afundei-me na poltrona, relaxando os músculos um a um. Alisar o sobrolho franzido pela desconfiança foi a parte mais difícil. Aquilo era uma estupidez…

— Respira… devagar…

Inspirei fundo uma vez e depois concentrei-me em manter a minha respiração o mais suave e leve possível, tornando-a impercetível.

Nevra não voltou a falar e o silêncio estendeu-se, longo e denso. Não parei de sentir os olhares dos outros dois sobre a minha pele e perguntei-me se aquilo estaria a resultar. Eu não sentia nada de diferente…

— Acho que não vamos a lado nenhum assim — disse subitamente Lithiel, fazendo-me abrir os olhos.

— Não resultou? — perguntei.

— Não.

— Posso ameaçar mordê-la — sugeriu o vampiro.

— Não, não podes! — ralhei.

— Achas que resultaria melhor? — inquiriu Lithiel.

— Resultou hoje de manhã. Julgo que ela precisa de se sentir ameaçada para a habilidade se manifestar.

— Vamos tentar, então.

— Isto é ridículo! — exclamei, levantando-me de repente — Eu não vou ficar aqui para ser ameaçada por um vampiro sedento de sangue! Se me dão licença, tenho mais que fazer!

— Esconde a tua presença e não terás de te preocupar com ele — atalhou Lithiel.

— Eu não sei como faço isso!

— É justamente essa a questão! Estamos a tentar encontrar o gatilho que te permita controlar essa habilidade!

— O meu treino vai ser fugir do Nevra, então?

— Se tiver de ser — confirmou o vampiro, sorrindo — Será, de longe, o treino que mais animo me dará orientar! Não há nada como a emoção de uma boa caçada…

— Esquece — interrompi-o — Nem pensar! Eu não vim aqui para ser o teu brinquedo de roer, okay? Só queria entender que raio de dom é esse que achas que tenho, mas percebi quão ridículo tudo isto é durante a vossa conversa! Invisibilidade? Adquirir as características do espaço que me rodeia? Vocês acham que eu sou o quê? Alguma espécie de camaleão?

— Tu não acreditas — constatou Lithiel — Tu não acreditas na tua própria habilidade!

— Como queres que acredite? Eu sou humana…!

— Não, não és! — negou a rapariga, levantando-se e enfrentando-me — Tu não és humana e o fedor que te sai da boca quando o dizes prova que conheces a verdade! Porque insistes em mentir?

— Não estou a mentir…

— Estás, sim! Tu és faery…!

— Eu não sou faery! — berrei antes de me conter — Posso ter algum sangue vosso em mim, mas não sou como vocês! Não tenho superpoderes, nem…!

— Eduarda — chamou Nevra, num tom apaziguador — Tu és essencialmente humana e podes considerar-te uma, mas não podes ignorar por completo o teu sangue faery.

— Porque não?

— É perigoso! Nós não sabemos de que raça descendes, por isso não sabemos com o que podemos contar! O teu sangue faery pode esconder mais poder do que qualquer um de nós imagina… e facultar-nos muitas surpresas desagradáveis no futuro!

— Como o quê?

— Depende de raça para raça, mas os faeries têm impulsos… apetites… com os quais poderás não estar preparada para lidar. Habilidades que poderás não estar preparada para controlar e que se tornarão perigosas para ti e para os que te rodeiam!

— Não me parece que uma habilidade de camuflagem seja perigosa — alvitrei.

— A camuflagem pode ser apenas a ponta do iceberg, Eduarda… e esconder algo muito pior! É imperioso que aprendas a controlar o que te corre no sangue… mas não conseguirás fazê-lo enquanto não aceitares aquilo que és!

— Eu estou a tentar, mas custa-me acreditar que tenho um dom sobrenatural ou algo do género… Eu sou só… uma humana… sem nada de especial.

— Tu nunca foste só uma humana — negou Nevra — O sangue faery sempre esteve dentro de ti. A única diferença é que agora sabes que está aí…

Passei uma mão exasperada pelos cabelos, soltando um pequeno suspiro. Eu entendera o que o vampiro dissera e concordava com ele, mas ainda assim…

— Vou tentar — prometi — Vou tentar acreditar que tenho uma… habilidade sobrenatural… e esforçar-me para controlá-la.

— Não faz sentido iniciar o treino enquanto ela duvidar dela mesma — intrometeu-se Lithiel.

— Sim — concordou Nevra — Vamos adiar o treino dela, por enquanto… O treino comum, porém, é essencial! Lithiel, farias o favor de mostrar a nossa arena à Eduarda?