The price of evil...

Shed my skin tonight but my fangs are hard to hide


-Sinceramente, Charlie? –Cruzei os braços e assumi uma expressão totalmente entediada - não acho que você seja uma fonte segura e nesse tempo, fiquei remoendo alguns motivos pra confiar em você e sabe o que me veio à mente? Absolutamente nada!

-Então por que está aqui?

Aquilo parecia teatral demais e já começava a me incomodar. Ele estava me sondando, fazendo várias voltas em um mesmo assunto. Queria me esgotar. Olhei em volta e subitamente senti minha bile subir pela garganta. O local era escuro e mal cheiroso e, aliás, quando houvera sido minha última refeição decente? Forcei minha memória, mas só sabia que não houvera sido recente.

A pergunta de Charlie continuou pairando no ar e então ele prosseguiu.

-Você precisa de respostas. Milhões de por quês e nenhuma explicação. Nada que faça sentido. Eu não me surpreendo que você esteja entrando em curto circuito... É como estar em voo cego e exatamente por isso você acaba fazendo besteira, por que nunca sabe em que território ta pisando.

Suspirei. De qualquer forma não podia discordar. Eu precisava saber o que tava acontecendo.

Por quantas vezes não menti, confundi e magoei pessoas por simplesmente não saber o que me levava até elas. Era a minha vida, porém eu não estava no controle.

Ergui meu queixo e me pus a analisar Charlie, procurar por qualquer coisa nele que me deixasse em vantagem. Ele parecia diferente, bem mais velho do que eu me lembrava, mas continuava possuindo uma estranha beleza, um lobo em pele de cordeiro no sentido mais literal possível. Vestia uma camiseta branca, na gola estava um óculos escuro, por cima um casaco preto. Calçava tênis esportivo e jeans. Apesar da combinação não ser exatamente a melhor, parecia cair perfeitamente nele, as peças se adaptavam ao portador.

Sua pele alva agora se encontrava levemente queimada pelo sol, os cabelos, que antes chegavam até os ombros, estavam bem aparados e o deixavam com um ar militar. Os olhos continuavam os mesmos, órbitas que me causavam um imenso incômodo, pareciam enxergar através de mim, como se me fuzilassem, porém havia algo a mais. Algo que eu tive medo e fingi não notar.

Enquanto eu o analisava, acabei esquecendo que não éramos apenas nos dois naquele local. Virei o rosto para trás e encontrei a mulher totalmente presa ao que acontecia.

-Você quer saber quem é ela?

Mais uma vez, não respondi.

-Uma coisa de cada vez, não é mesmo? –Sorriu e bocejou logo em seguida - Essa história não deveria ter passado daquela festa, isso já se prolongou demais. A propósito, você se lembra da festa, não é mesmo? Provavelmente não, estava bêbada. No mesmo dia ouvira a ligação da sua mamãe com alguém que até hoje você não faz ideia de quem seja, estava toda chorosa e só dizia que precisava esquecer... Típico. Antes de sairmos, Lisa fez um showzinho de “boa mãe”, mas acabou não sustentando a máscara.

Cerrei os pulsos.

-Não precisa falar como se eu não estivesse lá - respirei fundo ignorando o desconforto em meu estômago – qual era o papel da Sara nessa história toda? Somente ser sua putinha de luxo?

Charlie riu.

-Ela não era importante, você fez bem em matá-la, não exercia função nenhuma, só precisava dela pra que você se sentisse mais a vontade. E não se esqueça de que você a conheceu primeiro que eu, nós apenas tropeçamos nela, por um acaso – deu de ombros – mas acabou sendo útil até certo tempo. Por acaso você teria confiado em mim logo de cara? Obviamente não. Sara era só uma drogada que você encontrou pela rua.

-Como se agora eu confiasse - bufei.

A lembrança de alguns anos atrás veio em minha mente, meu primeiro contato com uma nova vida. Olívia estava morta, minha mãe havia reaparecido e eu só queria me comportar como uma adolescente inconsequente.

**

Eu vagava pelo parque, os olhos pesavam devido o choro da noite passada. Procurava por algo fizesse algum sentido pra mim, mas no fundo, eu sabia que não tinha absolutamente nada. Nunca houvera tido. Sentei-me em um banco qualquer e a vi de longe. Nitidamente machucada e desnorteada. Quase que automaticamente levantei-me em um salto e corri em sua direção.

-Ei, ei - berrei ao me aproximar, a garota pareceu se assustar, arregalou os olhos e se esquivou – eu não vou te machucar. Fica tranquila, ok? Posso te ajudar. Você ta perdida?

Fiz milhares de perguntas semelhantes, mas não obtive resposta. A menina parecia estar drogada. Era pálida e magra. Tínhamos quase a mesma estatura, porém ela aparentava ser bem menor, seus cabelos eram curtos, não passavam dos ombros e possuíam um corte diferente, sua maquiagem estava completamente borrada o que a deixava com um ar bem mais caótico.

Depois de muito tempo fazendo inúmeras perguntas, a puxei pelo pulso cuidadosamente e a levei até uma lanchonete no parque. As pessoas olhavam para ela com desdém. Sentamo-nos e a menina continuou sem dizer uma palavra, apenas me fitava. Pedi suco e sanduíche para ela e apenas um café pra mim, quando a garçonete serviu o pedido, a garota abocanhou o sanduíche como se não comesse nada há muito tempo.

-Sara - disse limpando o canto da boca e tomando uma golada de suco em seguida.

-Oi?

-Meu nome - olhou com uma expressão sarcástica como se eu tivesse feito a pergunta mais imbecil do ano – e quem é você?

-A garota que te ajudou.

-Eu deveria agradecer?

-Sei lá, é o que uma pessoa normal faria. Sabe onde está?

-Em uma lanchonete com uma estranha que possivelmente foi a salvadora da minha vida - disse com um sarcasmo evidente mais uma vez.

-Digo se você sabe que cidade é essa... Nunca te vi por aqui.

-Conhece toda a sua vizinhança por acaso?

-É um pouco difícil de lidar com você, não é mesmo? Eu te ajudei e você nem ao menos diz “obrigada”.

-Você é estranha –franziu o cenho – e ainda espera que as pessoas reconheçam suas boas ações, acredite, só se importam quando você começa a ser uma garota má –sorriu e deu uma piscadela – aliás, sempre se veste assim?

-Hã?

Fiquei um pouco desconcertada e analisei minhas roupas. Um vestido bege simples, sem detalhe nenhum, típico para um passeio no parque com meu cachorro. Se eu tivesse um.

-O que tem de errado com as minhas roupas?

-Você parece ter sido arrancada de um conto de fadas. E isso me irrita um pouco, além de ser completamente patético. De qualquer forma, valeu pelo sanduíche, estou saindo.

Dizendo isso se levantou e andou trôpega até a saída. Joguei algumas notas na mesa que deveriam ser mais do que o suficiente e a segui. Mesmo tendo me tratado de uma forma nada amistosa, algo naquela garota me chamava atenção. Tudo que ela havia falado estranhamente era o que eu queria ouvir, ou melhor, ela era o que eu queria ser. Tudo bem que minhas expectativas não estavam tão boas já que eu sonhava em ser como uma garota bêbada que demorou séculos pra lembrar o próprio nome, mas de que importava agora?

Sara não havia ido muito longe, na verdade, nem saíra de frente da lanchonete. Olhava para o parque, parecia tentar se situar.

-Perdida?

Ela virou o rosto para mim e depois fingiu que não havia me visto e continuou a olhar para o horizonte.

-Parece que vai precisar da minha ajuda. De novo - sorri.

-Tudo bem, madre Tereza de Calcutá, pode salvar minha alma.

-Meu carro ta estacionado do outro lado do parque, vou te levar até minha casa, você precisa de um banho.

-Pera aí, você tem um carro? Tipo, aquelas coisas de quatro rodas que andam em uma boa velocidade?

Rimos.

-Meu deus, de que mundo sua mãe veio? Onde posso comprar uma igual?

Meu sorriso acabou se desfazendo automaticamente, mas prossegui guiando a menina até o lado oposto de onde estávamos.

**

-Clarisse, se isso faz você se sentir melhor –a voz de Charlie mencionando meu nome fez com que eu voltasse a prestar atenção –nós dois iremos fazer uma surpresinha pra Isabelle hoje.

-O que? Surpresa pra Isabelle? Do que você ta falando?

-Ah qual é, você é minha amiga de longa data, acha mesmo que eu tava indo pro lado escuro da força?

O tom de Charlie era completamente zombeteiro e aquilo me assustava. Ele andou em minha direção, chegando bem perto, segurou meu pulso e fez com que eu andasse com ele.

-Me larga. –Puxei meu braço com força e me distanciei dele.

-Não torne as coisas mais difíceis pra mim, por favor. Realmente não queria ter que te machucar agora.

-Charlie –sacudi a cabeça –essa palhaçada já foi longe demais. Cadê a Michelle?

-Acha que eu sequestro alguém somente por sequestrar? Por que eu acho divertido? Ah, sequestrei sua amiga, venha até um galpão abandonado, vamos conversar um pouco e eu a devolvo. –Riu. –Fala sério.

Assim que Charlie terminou de falar senti uma forte pancada atingir-me na nuca, o ambiente ao meu redor girou e duplicou minha visão, meus joelhos fraquejaram.

**

“Clarisse... Acho que ela ta acordando. Clarisse, Clarisse. Vamos garota.”

Despertei em um pulo, como naqueles malditos sonhos em que pensamos que estamos caindo de algum lugar. Minha cabeça latejava violentamente, aliás, todo o meu corpo doía. Sabia que meus olhos estavam abertos, mas então por que minha visão continuava totalmente escura? Fiz um enorme esforço para respirar e consegui liberando uma arfada violenta que fez com que meu tronco tombasse para frente. Aos poucos as formas e cores foram se tornando nítidas ao meu redor.

-É como diz o ditado, vaso ruim não quebra.

Jace sorriu com o rosto próximo ao meu.

-J... Ja...

Só então fui recordando dos últimos ocorridos. Eu não estava mais desmaiada naquele galpão, não estava morta. Era estranho, mas minha vida parecia ter parado naquelas eternas horas, mas aqui estou eu. Fugindo mais uma vez.

-Não faça esforço agora. Calma, eu vou precisar mais uma vez exigir um pouco de você. Foi idiotice minha achar que ficaria tudo bem se te mandasse pular de um carro em movimento, acabei esquecendo que você não foi treinada pra isso como eu fui.

Sorriu, parecia tão diferente, nunca o havia visto tão... Humano.

Pois pra mim, Jace era sempre um detetive bem treinado, uma máquina de matar, arquitetar, manipular.

–Temos que embarcar em meia hora e já estamos chegando perto do aeroporto. Veste essas roupas. –Entregou-me um emaranhado de tecido e virou para o outro lado em uma posição desconfortável já que o carro em que estávamos não era muito espaçoso.

Olhei em volta, um rapaz forte com uma expressão assustadora dirigia tranquilamente. Desenrolei as peças em minha mão e comecei a tirar as roupas que usava, substituindo-as pela camiseta branca fina e um blazer preto que escondia a maioria dos machucados de meu braço, uma calça jeans e sapatos de salto.

Fala sério, não uso saltos nem quando estou perfeitamente bem, imagina depois de saltar de um veículo em movimento, Jace só podia estar brincando.

-Vou virar, não to nem aí, você é lerda pra caralho.

-É... Temos um problema.

Disse enquanto terminava de vestir a calça com dificuldade, já que mesmo não sendo das mais altas, era complicado trocar de roupa em um carro apertado.

-O que foi?

-Você é realmente imbecil o bastante para achar que eu vou conseguir me equilibrar na porra desse salto? –Acabei rindo no final da frase, o que fez com que minhas costelas doessem. –Eu devo ter quebrado alguma coisa.

-Você vai estar apoiada em mim o tempo inteiro já que somos um casal viajando em lua de mel. –Sorriu malicioso e senti minhas bochechas queimarem. Fitei o chão, envergonhada. –E relaxa, você não quebrou nada, já tinha verificado isso.

-Posso saber como? –Arquei a sobrancelha.

-Acredite, você não iria querer.

Só então percebi que ele também estava com roupas diferentes e seu pulso havia sido enfaixado de forma desajeitada.

-Então quer dizer que o “senhor super profissional em saltar de carros” também não se saiu perfeitamente bem.

-Pelo menos não fiquei como você, precisava ver a sua cara de quem tava morrendo... Totalmente deplorável. –Fez uma imitação minha e eu acabei rindo ignorando toda a dor.

-Me deixa ajeitar isso, foi você que fez?

Puxei seu braço lentamente até meu colo.

-Ai caralho, ta doendo. -Esbravejou.

Retirei a faixa com cuidado e enrolei novamente apertando mais. -Pronto, depois eu vejo o que posso fazer.

-Virou médica agora por acaso? -Revirou os olhos, em instantes voltara a ser o mesmo cara ríspido de sempre.

-Jace... Como nós vamos sair da cidade?

-Passaporte falso. Precisamos nos apressar antes que descubram do nosso acidente. Usa isso. –Entregou-me um óculos escuro. – E solta o cabelo, já chegamos.

O carro parou e notei que realmente já estávamos no estacionamento do aeroporto. Jace saiu do carro dando a volta no mesmo abrindo a porta para mim e me ajudando a sair. Quando consegui me manter em pé, passei o braço em volta de seu pescoço, não me sentia forte o suficiente para permanecer sobre minhas próprias pernas.

-Ah, por favor, não se aproveite da situação - brincou ele –fica aqui um instante, preciso dar uma palavrinha com meu amigo. –assenti tentando manter o equilíbrio enquanto ele se afastava para falar com o cara no banco do motorista.

Não entendi uma palavra do que foi dito e pra falar a verdade, nem me esforcei para prestar atenção.

-Pronta?

Falou ao aparecer novamente ao meu lado enquanto o carro já se distanciava.

-Como nós vamos fazer isso? –Perguntei totalmente frustrada por não entender nada. Ele passou o braço ao redor de minha cintura o que me ajudou bastante a permanecer de pé.

-Não posso falar absolutamente nada agora, o lugar não é propício a isso, mas assim que nós chegarmos, eu te conto tudo que aconteceu.

-Mas espera... Chegarmos aonde?

-Você foi cuspida pela sua mãe Clarisse? Cala a boca e fica tranquila, que caralho. Agora eu resolvo as coisas por aqui, por que quando a desmiolada aqui –me deu um cascudo não tão leve assim- tinha o controle de tudo, você viu a merda que resultou.

Deu um sorriso de canto e nós adentramos o ambiente completamente iluminado e lotado do aeroporto. Respirei fundo e me preparei para tudo que eu pudesse encontrar.

Novos problemas, ou finalmente, uma solução.

**

Estava deitada em meu quarto esperando que o tempo passasse. Naqueles últimos dias não me sobrara muita energia. Meu pai parecia sempre ocupado demais, além de tudo, ficava remoendo o tempo inteiro o que havia acontecido com Clarisse, não que ele falasse sobre isso, mas era evidente em seu rosto. Na verdade, somente uma vez, durante o jantar ele teve coragem de tocar no nome das Wooden Brown, o que me resultou uma falta de apetite e até minha mãe pareceu se enfurecer.

-É estranho, não é?

Disse empurrando levemente o prato pra frente.

-O que, querido?

Minha mãe perguntou, docemente com ao mesmo tom de voz de sempre. Calmo e baixo.

-Primeiramente Olivia, depois Lisa e agora Clarisse. É como uma maldição em ordem decrescente.

Estreitou o olhar. Parecia desesperado para tocar no assunto.

-É claro, foi horrível tudo o que aconteceu, mas não sei se posso dizer que lamento. As Wooden Brown sempre foram confusas demais pra mim, exceto por Olívia, era uma boa pessoa, gentil e educada, mas não teve muita sorte com a filha e a neta. É uma pena.

Mamãe não as chamou pelo nome, talvez não tivesse estômago pra isso. Ela achava que me protegia da verdade, quando nem ao menos tinha conhecimento dela.

Depois de tudo que acontecera, não conseguia me sentir a vontade com minha própria família, não encontrava mais paz naquela casa. Tudo estava no mesmo lugar de sempre, mas parecia haver um abismo entre mim e meu pai.

“Pai”.

Minha primeira hipótese parecia tão clara e correta pra mim. Papai tinha uma filha fora do casamento que por acaso se tratava de Clarisse, isso já não era muito aceitável, mas não chegava nem perto de ser a verdade. Débora não era minha mãe, muito menos Vernet meu pai. E ele havia contado tudo pra Clarisse, traiu completamente minha confiança ficando do lado dela, mascarando uma coisa que eu deveria saber.

O casamento de meus pais adotivos parecia não estar mais aguentando toda a avalanche de coisas que por anos foram ocultas. Pra mim, sempre havia sido uma junção de fachada, Vernet precisava de um ombro pra chorar e Débora de um marido. Eu lamentava somente por ela. Débora era uma mulher incrível, doce e compreensiva. Não importa o que me dissesse, ela sempre seria minha mãe de verdade, mesmo não tendo o sangue que corre em suas veias.

Resolvi deixar de lado aquela lembrança e as discussões discretas de meus pais. Voltei a pensar no que faria de agora em diante.

No posso negar que em minha loucura evidente quis que Clarisse morresse e queimasse no inferno pra sempre, mas... Não saberia explicar, agora que ela estava realmente morta, sentia-me um tanto culpada e com remorso. Depois que tudo acabou, analisei tudo que havia feito e acabei me assustando, eu me comportava como uma pré-psicopata, se é que esse termo existe. Mas eu queria tirar tudo dela, por que ela havia tirado Simon de mim. Era absurdamente estúpido, mas ele sempre havia sido a única coisa boa da minha vida. Trabalhei durante muito tempo naquela droga de confeitaria sem nem ao menos precisar daquele salário simplesmente pra poder ficar mais perto dele todos os dias e quando eu finalmente consegui que aquele imbecil e paspalhão olhasse pra mim, ela aparece e estraga tudo.

Mas agora ela não estava mais aqui, então por que Simon parecia nem ao menos ligar pra minha existência? Bom, difícil responder, porém agora eu tomaria seu lugar. Roubaria toda sua antiga vida. Não foi a toa que dormi com aquele guitarrista, em meu plano parecia não haver brechas para erros ou imprevistos, mas eu deveria saber que Charlie não era muito confiável.

Ele não estava do meu lado, também não estava do lado de Clarisse. Estava do seu próprio lado e acabou fodendo tudo, no fim foi ele quem pagou por isso.

Não pude deixar de sorrir ao lembrar, um sorriso que chegou a me assustar, mas naquele momento não me sentia mais presa ao que as pessoas consideravam certo ou errado. Aquela era somente eu. Não importa se eu tivesse que passar por cima de algumas coisas ou pessoas, mas eu sempre irei chegar onde quiser.

Clarisse sempre me pareceu mais mocinha do que uma vilã, mas todas a viam como uma garota má, assassina, mentirosa e manipuladora, na verdade, ela sempre foi boba demais. Nunca manipulou, mas todas as suas ações foram manipuladas, não me surpreende que tenha acabado morta.

Ouvi umas batidas na porta que interromperam meus devaneios, uma fenda retangular formou-se fazendo com que um feixe de luz invadisse meu quarto.

-Filha, tá acordada?

-To sim, mãe. Pode falar.

-Aquele rapaz, Simon, está lá em baixo, quer falar com você e disse que é muito importante.

-Simon?

Dei um pulo da cama, a euforia era evidente em minha voz e provavelmente em minha expressão já que minha mãe abriu um largo sorriso a me ver daquele jeito.

-É, ele mesmo. Parece preocupado. Não demore.

Dizendo isso se retirou.

Fui até o banheiro e penteei meus cabelos e depois os prendi em um rabo de cavalo. Tirei o blusão que vestia e os substitui por shorts e uma camiseta. Depois desci as escadas correndo indo em direção à sala, mas não havia ninguém lá, somente minha mãe.

-Ué, cadê o Simon?

-Lá fora.

Estranhei, mas segui em direção à porta encontrando-o olhando para a movimentação da rua. Ele estava lindo, do mesmo jeito atrapalhado que eu tinha gravado em minha mente.

-Simon? O que veio fazer aqui?

Sorri e ele retribuiu, tinha as mãos nos bolsos e não parecia muito empolgado ou feliz em me ver.

-Vim me despedir, Iss.

-Hã? Pra onde... –sacudi a cabeça, totalmente confusa – pra onde você vai?

-Meu pai morreu...

O tom de tristeza em sua voz me machucava. Ele prosseguiu.

-Não vou continuar aqui, sozinho... Bom, eu não conseguiria cuidar da casa, da confeitaria e ainda manter a faculdade.

-Mas pra onde você vai?

Perguntei, ainda estava totalmente descrente, nunca havia cogitado aquela possibilidade.

-Tenho uns parentes distantes, nunca estabeleci muito contato com eles, mas ficaram sabendo da morte do meu pai e acho que vai ser melhor eu ir embora. Já arranjei compradores para o ponto comercial e pra casa, até que vai render uma boa quantia, vou conseguir ir me mantendo e talvez eu não fique tanto tempo assim na casa desses meus parentes.

Ele deu de ombros, parecia convicto do que dizia. Já eu estava completamente desnorteada.

-Simon... Eu... Eu poderia te ajudar.

-Isabelle, muito obrigado, de verdade, valeu mesmo, por tudo que você fez por mim e pelo meu pai, mas...

-É ela, não é? Sempre foi ela! Sempre, sempre, sempre e sempre, até mesmo depois de morta!

Exaltei meu tom de voz, Simon pareceu não gostar da forma como me referi à Clarisse, mas quer saber? Eu ficaria muito melhor assim.

-Sabe Simon? Você sempre foi um imbecil. Ela nunca nem voltou o olhar na sua direção, mas lá estava lá você se rastejando atrás dela. A Clarisse precisava de você e no instante que viu que não era mais útil fugiu com aqueles outros. Aposto que seu nome nem passou pela mente dela, aliás, você sabe que ela teve um caso com um deles? Isso se ela não tiver dado pra todos, já que é exatamente como a mãe. Eu poderia dizer que eu iria te ajudar... Que não precisava ser assim, você não tinha que abandonar o lugar que nasceu, mas sinceramente, espero que vá queimar no inferno junto com aquela puta de merda.

Falando isso, fechei a porta produzindo um enorme barulho.

-Ta tudo bem filha?

Minha mãe apareceu com uma expressão preocupada.

-Não mãe, mas vai ficar.

**

Horas, dias, semanas, meses e anos... Não tinha a consciência de quanto tempo havia se passado, mas eu sabia que agora mais do que nunca tudo estava muito distante pra mim. Inalcançável.

As Wooden Brown estão mortas... Todas elas.

Olivia, Lisa e por fim Clarisse.

(...) Quem passasse poderia imaginar que minha mente andava lotada de coisas, mas na verdade, era só um grande nada.

Já estava perto do prédio em que morava com Jace, continuei caminhando até avistá-lo, ao passar pela portaria cumprimentei o porteiro e segui até o apartamento. Peguei minhas chaves no emaranhado de coisas, acabei derrubando uns livros da faculdade, mas depois de tudo isso, consegui entrar no ambiente vazio. Jace, ou melhor, Jason esse horário estava trabalhando, havia conseguido um emprego em um escritório de advocacia. Até certo tempo atrás, nem ao menos sabia que Jace havia feito uma faculdade. Mas a história era basicamente essa, ele era cheio de identidades, porém seu nome verdadeiro era Jason, havia nascido em alguma cidade pequena europeia que eu não recordava. Isso explicava um pouco por que tantas pessoas o conheciam por ali.

Mas uma coisa eu nunca entendi. Era mais que óbvio que Jace não tinha topado comigo por pura coincidência do destino, mas ele nunca falava sobre nada, nunca era o tempo correto.

Quase seis anos haviam se passado, ele estava esperando o apocalipse zumbi por acaso? Pensei.

Tirei o sobretudo e mais algumas camadas de roupa, joguei em minha cama e me olhei em um espelho de corpo inteiro que havia em meu quarto.

Aquela não era eu.

A figura no espelho usava lentes de contato azuladas o tempo inteiro, a cor do meu cabelo havia mudado, eu parecia mais pálida. Estava um pouco mais gorda também, o que fez com que as maçãs do meu rosto se tornassem mais preenchidas.

-Agora você é narcisista? Cuidado com lagos, senão vai acabar morrendo querendo transar consigo mesma.

Não percebi quando ele apareceu no quarto, ele tinha essa mania de ser silencioso demais, porém sempre dizia que eu era a desligada da história.

-Vai pro inferno Jace.

-Jason.

Me corrigiu ao se jogar em minha cama.

-Agora eu sei o quanto é difícil esse negócio de troca de nomes.

-Ta provando do próprio veneno, Rachel.

-Você é um pé no saco, não podia ter escolhido nome melhor, não?

-Ei! Rachel era o nome da minha cadela que faleceu, mais respeito, por favor.

-Como me sinto bem tendo o nome de uma cadela, estou lisonjeada.

Falei com sarcasmo e nós rimos. Joguei-me na cama ao seu lado e ficamos fitando o teto por um bom tempo. Por incrível que pareça, nesses quatro anos em que Jace e eu estivemos tão próximos um do outro nada que apelasse pra tensão sexual surgiu entre nós. Na verdade, parecia meu irmão mais velho, era um tanto divertido morar com ele, exceto quando ele trazia mulheres pra cá e eu tinha que arranjar um lugar pra dormir fora.

Senti meu telefone vibrar em algum lugar soterrado por todas aquelas roupas, quando o encontrei vi um nome no visor.

-Vittoria! Aconteceu alguma coisa?

-Não, liguei pra te convidar pra uma festa com os futuros formandos aqui na minha casa.

-Quando?

-Amanhã à noite. Você não tem mais desculpas pra inventar, terá que aparecer.

-Tudo bem, acho que vou sim.

-Ah e traz aquele seu amigo gostoso que mora com você. Sinceramente, acho que você é lésbica ou mente pra mim, é impossível morar com um deus grego desses e nunca ter se aproveitado disso.

Só então percebi que estava próxima demais de Jace e que ele ouvia toda a coversa e ria ao meu lado. Senti meu sangue subir para as bochechas.

-Ok, ok Vittoria, chega. Até amanha a noite, vou ver se ele vai querer aparecer. Até mais.

Desliguei e Jace continuava gargalhando ao meu lado.

-Não precisa se envergonhar. Você sabe que as mulheres são louquinhas por mim.

-Vai se foder.

Naqueles anos, ao contrário do que esperava havia feito vários amigos, não dos ditos amigos de verdade, mas pessoas com que eu mantinha uma boa convivência. Vittoria era minha amiga mais próxima. Até sai com uns caras da faculdade, mas nada que eu quisesse levar adiante.

Foram anos pacíficos, apesar de nunca ter entendido muito coisa do meu passado, eu não ligava mais, a única que queria era me formar, conseguir o diploma e começar a trabalhar como advogada. Um tanto irônico. Mas sentia que enquanto estivesse com Jace, uma parte do meu passado sempre estaria presa em mim, como uma sombra.

-Rachel.

Incrível como ele já havia se acostumado perfeitamente com meu novo nome.

-Diga Jason.

-Você ainda se pergunta por que eu te trouxe até aqui? Por que eu quis te ajudar?

Suspirei.

-Com todos esses anos não me pergunto mais.

-Sabe... Acho que algumas coisas foram deixadas pra trás com uma vírgula e não um ponto final.

-O que quer dizer com isso?

-Quanto tempo falta até a sua formatura?

-Uns seis, sete meses. Por quê?

-Acho que precisamos cogitar a possibilidade de uma viajem.

-Hã?

-Não me diga que não ta com saudades do sol da Califórnia.