The price of evil...

Porque sua alma esfriou, e toda esperança se foi.


Alguns anos atrás

Senti alguém me segurar pelos meus ombros e levemente erguer meu tronco.

–Vamos embora - dissera a voz grave, mas que, para mim, soava como algo angelical e muito distante, como se emergisse de um túnel e produzisse ecos. Arregalei os olhos e notei que ainda estava naquele local, o mesmo ambiente cercado por uma luz bruxuleante. Mas havia algo ali que não estava correto, várias faixas de um amarelo vivo com uma única e espessa listra preta.Não ultrapasse, podia ser lido em uma delas. Obriguei a mim a mesma a me atentar para cada detalhe que me cercava, mas de quando em quando sentia meus olhos pesarem mais do que o comum. Foi aí que percebi um corpo jazido em meio àquelas faixas envolto em uma poça de sangue que evidentemente era o seu mesmo.

O cadáver, Charlie.

Mais uma vez um desconforto se apoderou de meu estômago e senti minha bile subir para a garganta.

Algumas pessoas tiravam fotos da cena, nas costas de suas camisas lia-se “perícia”, diversos policias circulavam e faziam anotações, um deles se aproximou e sua voz rouca e desafinada rompeu meus pensamentos.

–Detetive, você vai levá-la ao hospital?

–Sim, eu me responsabilizo por isso e também a levarei para a delegacia.

O oficial assentiu e seguiu andando, quase em marcha, com uma postura rígida até desaparecer em meio à penumbra. Ergui o rosto e fitei Jace, metade de seu rosto enegrecido pela sombra de algo, seus olhos, sobre aquela iluminação esquisita, pareciam foscos, um azul sem vida. Enquanto eu o analisava, Jace envolveu meus ombros em um cobertor e me ajudou a levantar.

– Você não está muito machucada – dizia ele enquanto me conduzia até a escada que eu subira na noite anterior guiada por aquela mulher desconhecida. – Mas é um procedimento padrão você ir ao hospital, bateu sua cabeça muito forte, mas duvido que isso lhe acrescente mais um parafuso solto - subitamente sua voz serena e com a entonação medida e cuidadosa tornou-se ríspida, ele sussurrava, porém mesmo assim era ríspido. –O que deu na droga dessa sua cabeça, Clarisse? Você é tão burra assim mesmo ou gosta de foder com sua própria vida? Por que diabos você veio aqui? Sinceramente, eu queria poder estar batendo sua cabeça na parede com toda a minha força, mas parece que alguém já fez isso por mim.

Por reflexo levei minha mão até a testa e quando olhei de volta meus dedos estavam cobertos de um líquido vermelho, senti vertigem. Na verdade, agora que Jace colocava a situação naquelas palavras, eu mesmo me sentia estúpida, não sabia responder por que estava ali, até que um relapso em minha memória fez minha cabeça latejar.

Abri minha boca para falar, eu já sabia as palavras, mas não encontrava voz, quando por fim disse, minha voz saiu quase inexistente.

–Michelle.

Jace olhou para mim, surpreso.

–O que? A sua amiguinha que sumiu? –Balancei a cabeça positivamente. –Recebemos uma ligação falando dela, provavelmente aqueles seus outros amigos, eles informaram do desaparecimento dela e do seu.

–Cadê ela?

Tropecei nas palavras. Uma luz fraca atingiu meu rosto, estávamos agora do lado de fora, o sol nascia sem brilho dando início ao que me pareceu ser um dia chuvoso, as nuvens estavam carregadas, escuras e sombrias. Ao redor, estava uma espécie de floresta com árvores velhas e retorcidas que pareciam observar tudo que acontecia. O chão se encontrava enlameado, pisei em uma poça enquanto andava até a viatura.

–Clarisse, a sua amiga não estava no galpão.

–Como assim não estava no galpão? Ela tem que estar lá! Ele me disse que estava.

Acabei falando ríspida surpresa até por ter conseguido ditar as palavras.

–E você acha que o Charlie era um cara bonzinho que nunca mentia, não é mesmo?

Seu tom era evidentemente sarcástico, mas não podia negar que ele estava correto. Suspirei derrotada, Michelle continuava desaparecida e eu não fazia ideia de onde encontrá-la. Olhei ao redor forçando minha visão a enxergar além da espessa névoa que se formava e para minha grande surpresa vi uma moça sentada no capô de uma das viaturas estacionadas. Envolta em um cobertor, suas pernas longas balançavam ao vento, o cabelo preso em um rabo de cavalo feito às pressas, conversava com alguém que estava em pé a sua frente. Apertei os olhos e percebi que o sujeito postado como uma estátua ou algo que houvera criado raízes sólidas naquele pequeno espaço se tratava de Vernet.

Isabelle ainda estava lá, logo no princípio senti-me esgotada, ela me fazia recordar tudo que acontecera, mas depois um alívio percorreu pelo meu corpo. Ela sabia onde encontrar Michelle! Sim, sabia! No momento que um sorriso quase se formou em meu rosto uma pergunta veio a minha mente.Por que ela contaria?Não custava nada tentar e se, para encontrar Michelle, eu tivesse que esquecer tudo que acontecera entre mim e Isabelle, estava tudo bem, parecia um custo razoável.

–Não, você não vai até lá.

Jace falou apertando meu braço, parecendo ler meus pensamentos.

–Eu preciso.

Respirei fundo. Michelle me salvara de todas as formas que eu precisava ser salva, substituiu um grande vazio que por muito tempo foi presente em minha vida e me ajudara, mesmo tendo todos os motivos pra não gostar nada de mim. Mesmo que houvera feito tudo isso sem esperar receber nada em troca, a vida se encarregara de criar uma ocasião em que ela precisasse de meus favores, que pra mim, eram obrigações.

Fiz menção de dar um passo a frente e Jace me deteve.

–Não tente me impedir, ok? Eu preciso fazer isso evou. –Minha voz saiu severa e em outro momento eu poderia rir daquilo. Eu, Clarisse, dando ordens à Jace, que tinha quase o dobro de minha altura e era cem vezes mais ríspido e controlador. Mas não, estávamos rumando para um novo dia e eu ainda podia sentir o cheiro de sangue que parecia entranhado em minhas narinas. –É o único jeito – dessa vez falei baixo e tinha um pedido de desculpas em minha entonação. –O único jeito.

Isabelle e Vernet não estavam muito distantes, me aproximei agitada demais e ao mesmo tempo exausta. O detetive foi o primeiro a ter seu olhar cruzado com o meu, a expressão em seu rosto foi indecifrável. Estava com olheiras profundas e a barba formava uma camada espessa de pequenos pelos grisalhos.

–Clarisse, você deveria estar indo para o hospital.

Aquela não era uma afirmação por preocupação com meu bem estar e sim pelo incômodo da minha presença. Voltei-me para Isabelle, fixei meus olhos nos dela.

–Vernet, acho que o Jace quer falar com você - menti, mas de relance vi que o homem nem ao menos piscara – agora.

O vi rumar em direção ao rapaz alto que parecia uma fortaleza em meio àqueles destroços, voltei minha atenção para a garota no capô da viatura. Seus olhos castanho-claros estavam confusos e por mais que escondesse muito bem, tinham um toque de tristeza. Ela era linda, eu sentia uma pitada de inveja, mas não só por isso, mas por ela nunca ter estado realmente sozinha. Era nítida a sua dor de descobrir que vivera uma vida construída em uma mentira. Uma mentira que por sua vez se tornara sólida como uma rocha. Algumas mechas ruivas se libertaram de seu perfeito rabo de cavalo com a intensidade que o vento ganhara naquele instante, os fios brincavam em seu rosto e notei que Isabelle tinha traços tão angelicais que jamais poderiam ser associados à Lisa.

Diziam que ela era muito bonita quando jovem, mas eu nunca conhecera aquela sua versão, somente uma mulher drogada, definhando e louca pra se livrar da filha, capaz de tudo por dinheiro.

Não falamos por muito tempo.

–Ninguém sabe - disse ela por fim. – Não passou pela cabeça de ninguém que eu tivesse algum envolvimento com tudo isso.

Não preciso de mais palavras para que eu entendesse o que ela queria dizer.

–Você quer que eu fique calada.

–Eu não preciso de nenhum favor seu – se exaltou, porém sua voz e ações continuavam meticulosamente medidas para que não Vernet ou Jace não se alarmassem. –É sua palavra contra a minha, e acha que vão acreditar em quem?

Naquele momento me libertei da coberta que pendia sobre meus ombros e a joguei no capô do carro ao lado de Isabelle.

–E qual foi à desculpa que você usou pra explicar o fato de estar aqui justo hoje e agora?

Surpreendi-me com o tom firme que eu usava, aliás, todos me julgavam como alguém que representava um extremo perigo, mas próxima de Isabelle eu me autocomparava com uma criança que perdera a mãe em meio à multidão de um shopping.

–Eu era amiga de Charlie, sabia que ele pretendia fazer isso, mas havia acreditado, quando tomei conhecimento do seu desaparecimento por um amigo nosso, imaginei que estivessem aqui e vimteajudar.

Sua voz era dissimulada e distante, ela sorriu.

–Não vai perguntar que amigo? Por que por mais difícil que seja de acreditar, essa parte da história é verdade.

–Não imagino nenhum amigo em comum entre a gente.

Ela sorriu mais uma vez, uma risada sonora.

–Como assim não? Você até brigou comigo em um bar por causa dele.

Senti um leve choque percorrer minha espinha. Ela era a mulher que saíra com Gates na noite anterior. Lembrei-me de ter pedido para Matt falar com ele o quanto antes.

–De qualquer forma não vim aqui falar sobre isso. Eu não vou te entregar, mas preciso de algo em troca.

–Não sei se você não entendeu, mas isso não é uma troca de favores. Eu não preciso de nada que venha de você, Clarisse.

–Ok, eu entendo, mas Isabelle... Eu sei que sabe onde encontrar a Michelle, eu tenho certeza disso.

Mais uma vez demoramos a falar algo, olhei discretamente para o lado e percebi os detetives conversando impacientemente, alguns policias saiam carregando uma maca com um corpo que eu sabia que se tratava de Charlie envolto em algo que eu não saberia dizer se era um tecido negro ou uma espécie de grandes sacos de lixo. O levaram para um veículo que era similar a uma ambulância, mas que eu tinha certeza que não era.

–Cadê ela?

Falei me referindo à mulher antes totalmente desconhecida por nós duas e agora tão familiar, o grande presente de Charlie a Isabelle.

–Não sei, sumiu logo depois que tudo começou a acontecer, espero que ela acabe morrendo o quanto antes.

Cuspiu as palavras, não havia ódio em sua voz, mas indiferença. Vi Vernet se aproximar de onde estávamos em passadas largas. Apressei-me com minhas próximas palavras.

–Isabelle, por favor, a Michelle não tem mais nada com isso, ok? Eu vou ser presa, eu prometo que você nunca mais vai nem ouvir falar de mim quando eu sair da cadeia. Nunca, eu prometo, mas, por favor...

Ela não respondeu. Vernet já estava quase ao meu lado.

–Cuide do Simon e faça a coisa certa.

Falei e voltei-me para o detetive. –Vernet, eu queria que você me levasse ao hospital e depois à delegacia.

Ele pareceu se surpreender com o pedido, mas não disse nada, apenas assentiu e olhou pra Isabelle.

–Vou pedir que o meu parceiro te leve pra casa, lá conversaremos. Não fale nada a sua mãe, por favor.

Dizendo isso saiu andando convicto de que eu iria logo atrás. Antes de seguir, olhei mais uma vez para Isabelle, talvez fosse a última vez que eu a visse. Nem na minha melhor época, quando Sara disse que eu parecia ter sido arrancada de um livro de contos, cheguei perto ao que ela era.

Peguei o cobertor que deixara ao lado dela e andei, sem olhar pra trás.

**

De relance vi meu pai segurar os pulsos na menina magra e pequena, logo em seguida, algemá-la.

Continuei sentada no capô sacudindo minhas pernas ao nada, ao longe Clarisse pareceu ditar ordens mudas ao seu amigo detetive e ele caminhou na direção de onde eu estava.

Jogava algum objeto pequeno para o alto e depois o pegava com uma só mão, repetiu esse movimento até chegar bem perto de mim. Tinha um andar encantador, o sol passou a brilhar mais forte, imaginei que já estivesse passando das 7h da manhã, os raios solares pareciam se encaixar perfeitamente nele, faziam seu cabelo se tornar tão vívido quanto o próprio sol e seus olhos faiscarem.

Pulei de onde estava, retirei o cobertor de cima de mim e sacudi a poeira de minha roupa, o local se esvaziara aos poucos sem que eu percebesse, agora só restava uma viatura, a qual o rapaz loiro entrava com uma segurança de si que parecia exalar de seu corpo. Contornei o veículo até o banco do motorista, ao entrar me livrei daquele maldito cobertor o jogando no banco traseiro, coloquei o cinto de segurança e esperei. A chave já estava na ignição, mas nada aconteceu, o rapaz não deu a partida, ele nem ao menos se moveu.

–Ta difícil?

Arregalei os olhos e voltei-me para sua direção.

–Eu que pergunto - ele fez a mesma expressão facial que eu – estou esperando você me falar pra onde vamos, gênio.

–Por acaso ta vendo duas estradas por onde seguir aqui nesse exato momento? Segue e quando tiver que escolher um caminho eu digo.

Ele olhou em minha direção, tinha uma expressão indecifrável e parecia atordoado, sorri com deboche e ele revirou os olhos.

O trajeto foi calmo, apenas minha voz cortando o silêncio e quando em quando indicando onde ele deveria dobrar ou seguir em frente.

–Da onde você conhece a Clarisse? –Perguntei quando nos aproximávamos do local em que a mulher estava escondida. –Eu percebo vocês dois muito próximos e acho que isso deveria ser até proibido por lei, aliás, você trabalha no caso dela.

–Han... Deixe-me ver... – fez uma cara pensativa e olhou rapidamente para mim. -Não é da sua conta.

–Você é um poço de educação - bufei.

–Muitas pessoas já me disseram isso.

Dei as últimas coordenadas e em instantes estávamos em frente a uma pousada velha e precisando urgentemente de uma reforma. A pintura descascava e as infiltrações na parede eram visíveis.

–Chegamos.

Disse enquanto saía do carro e rumava para a mesma pousada em que, dias atrás, eu mandara Charlie trazer Clarisse. O rapaz veio logo à minha sombra, na recepção não havia ninguém, evidentemente o movimento por ali não era muito bom, tamborilei os dedos no balcão e segundos depois gritei.

–Será que não tem ninguém nessa porcaria de pousada pra me atender?

Uma moça atrapalhada adentrou o ambiente vindo de uma portinhola logo ao lado das escadas que davam para os quartos. Apressadamente foi para o lado interno do balcão.

–Me desculpe...

–Ah, por favor, me poupe de suas desculpas, só deixe de ser lerda - disse com impaciência. –To procurando uma amiga que se hospedou aqui ontem à noite. Ela é loira e...

Vasculhei em minha mente as imagens da mulher que só vira uma vez na vida na sala escura de Sr. Mack.

–Ah, ela é loira, isso basta, aposto que não deve ter nem três quartos ocupados nessa espelunca, então deve ser fácil pra você me dizer onde ela está.

A moça me olhou com uma expressão hesitante, em seguida analisou o rapaz ao meu lado.

–Vamos logo! Pelo o amor de deus, você é doente, minha filha?

Gesticulei com as mãos e bati firmemente no balcão, ouvi uma risada abafada atrás de mim.

–D-desculpe, não posso lhe fornecer essa informação.

Passei a mão no cabelo, agitada e inquieta, não estava com a minha bolsa e não tinha como dar dinheiro para que ela calasse a porra da boca e me dissesse logo onde aquela maldita amiguinha da Clarisse estava.

Ser boazinha é uma droga, pensei com meus botões,mas realmente espero que alguma divindade esteja vendo e me reserve um ótimo lugar no paraíso.

Sem saber direito o que fazer, inclinei-me sobre o granito gelado do balcão.

–Eu não quero perder a pouca paciência que me resta, me dá logo a droga da chave e diz qual é o número do quarto.

–Desculpe, mas não.

Aquela magricela pareceu ter criado coragem repentinamente. Virei para o lado e olhei para o detetive, percebi que havia uma arma encoberta por sua blusa e presa em sua calça, da mesma forma que sempre havia uma escondida com meu pai. Puxei o fino tecido da camisa.

–Ei! Que putaria é essa? –ele exclamou erguendo as mãos.

Deixei o revolver a mostra e olhei mais uma vez para a garota por detrás do balcão.

–Vai mesmo se negar a me dar a chave?

Ela ficou desconcertada e muito nervosa. –Quarto 12.

Jogou as chaves e o detetive as pegou no ar. Subimos as escadas.

–Olha, eu percebi a tensão sexual que existe entre nós, mas quero que saiba que não vai acontecer nada, eu gosto muito de viver e nem sei o que seu pai faria se descobrisse alguma coisa.

Revirei os olhos, entramos no cômodo indicado pela recepcionista amedrontada, ao destrancar a porta encontramos um súbito calafrio percorreu meu corpo.

Aquilo não deveria estar acontecendo.

Pisquei mais de uma vez tentando me assegurar de que não era ilusão de ótica ou qualquer coisa do tipo, mas a imagem não se alterou.

Agora

A pergunta de Jace ecoou em minha mente. Ele não podia estar querendo que eu voltasse. Que eu passasse por tudo aquilo de novo.

–Não Jace. Eu não quero.

Minha voz saiu firme e autoritária, sem margem para retalhos. Ergui meu tronco e fiquei sentada de costas para ele.

–E se eu dissesse que tudo que foi dito naquele galpão abandonado não passa de um prólogo pra uma história bem maior?

–Eu iria dizer que não me interessa. Não quero saber! Não quero, entende? Nada daquilo faz parte de mim! Acabou há muito, muito tempo.

Voltei levemente minha cabeça para o lado e vi Jace, ou Jason, perdido em seus próprios pensamentos, tentei elaborar em minha mente o que poderia estar acontecendo lá dentro, os conflitos internos que ele poderia carregar, quais porquês e quais respostas ele teria para me apresentar. Seus olhos continuavam de um azul muito intenso, a pele pálida e alva, os músculos evidentes sendo contornados pelas roupas, o lábio fino que, quando estava pensativo, formava uma linha tênue em seu rosto.

Respirei fundo.

No fundo eu queria saber a verdade mais do que tudo, mas de alguma forma aquilo me destruiria, tinha convicção disso. Senti meu estômago embrulhar.

Por que diabos mudar de aparência, nome, continente não era o suficiente para deixar tudo pra trás?

–Jace, eu sei que não conheço nem a metade da história –falei pausadamente, como se consolasse a mim mesma –mas talvez seja melhor assim. Vivo pensando em tudo que aconteceu, na verdade, sinto falta de muita coisa, mas acabou... Agora sou só uma garota cursando a faculdade, tenho amigos, uma vida e moro com um idiota bonitão e sou taxada de lésbica por algumas amigas por que nunca dei pra ele - soltei um riso fraco. - Eu estou bem aqui.

Foi só o que consegui murmurar antes de andar em passadas firmes até o banheiro. Tomei um longo banho tentando esquecer tudo que surgira em minha mente quando Jace levantou a possibilidade de voltar.

Pensei nos rapazes do Avenged, desde o dia que foram embora eu nunca mais sequer tive coragem de ouvir uma música deles ou acompanhar sites de fãs que me informassem da vida que eles estariam levando, seria masoquismo demais até para mim, mesmo às vezes pensando que eu deveria sofrer. Que era o preço que teria que ser pago.

Aliás, tudo tem seu preço, alguns chamam de carma, porém ainda não decidi ao certo em que acreditar.

Olhei o reflexo da garota no espelho, ela me fitava com aquelas órbitas azuis hipnóticas, ao longe não pareciam ser lentes de contato, mas não chegavam nem perto da tonalidade dos olhos de Jace, por exemplo.

Até quando uma pessoa é capaz de enganar a si mesma de tal forma a nem se reconhecer mais no espelho?

Por muito tempo implorei somente pra ter meus sonhos apagados, pra esquecer, sofrer um acidente e acabar perdendo a memória... Mas os anos passam e tudo se torna mais fosco com ele. De certas coisas eu já não recordava, certas feições não eram mais tão exatas como antes, por mais que algo pareça indestrutível e sólido, assombroso no meu caso, a memória humana é fraca.

–Eu estou bem –falei para mim mesma –aqui, eu estou bem.

Seis meses depois

–Pronta?

Jace perguntou vendo meu nervosismo aflorando.

–Não - Apertei seu braço fortemente. – Acho que eu vou vomitar.

–Larga de ser trouxa, sua imbecil. É só uma formatura e mais tarde tem o baile, você vai poder beber e esquecer qualquer vexame que possa acontecer durante essa coisa toda aqui.

–O QUE? Você acha que eu vou, sei lá, fazer alguma besteira?

Mordisquei o canto da unha.

–Estamos falando de você, tudo pode dar errado.

–Você é um péssimo paraninfo.

–Por que não convidou outra pessoa então? Ah é, esqueci que você só tem a mim.

Dei um forte tapa em seu ombro quase na mesma hora que a voz no microfone anunciava Rachel Lee, um nome escolhido por Jace.

–Sou eu, sou eu, ai meu deus, sou eu.

De relance vi Jace revirar os olhos. –Parabéns por ainda reconhecer seu nome.

Adentramos o salão e depois tudo se sucedeu normalmente ao contrário do que eu esperava. Durante o baile algumas pessoas dançavam e bebiam, mas não me sentia confortável em sequer respirar com aquele vestido preto justíssimo e não sei se conseguiria ficar em pé com aqueles saltos, já foi um milagre ter conseguido uma vez, não vamos abusar.

–Você é muito careta.

–Me deixa em paz.

Ignorei Jace e voltei a beber.

–Vou ver se encontro alguma coisa interessante por aqui - pigarreou.

–Ah, vai lá, vai comer alguém em algum banheiro sujo.

Deu um peteleco na minha orelha ao se levantar e eu continuei sentada ali, me sentia muito desnorteada, talvez devesse parar de beber.

–Será que se eu levantar, eu caio?

Murmurei de forma quase ininteligível para mim mesma. Não sei quanto tempo se passou até que Jace aparecesse novamente na mesa onde eu estava.

–Rachel.

–Oi Jac... Jason.

Consertei rapidamente meu erro assim que percebi que ele estava acompanhado, mas não era de alguma vadia com os peitos saltando da camisa e sim de um senhor de cabelos grisalhos.

–É... Queria que conhecesse um grande amigo meu. Rachel, esse é Dave Ross. Dave, essa é a Rachel.

Levantei-me um pouco desconsertada e cumprimentei Dave, seu aperto de mão foi mais forte que o normal e ele parecia não tirar os olhos dos meus.

–É um prazer. –Disse.

–Vamos nos sentar.

Jace falou e nós três sentamo-nos à mesa.

–E então... Rachel, por que escolheu advocacia?

Dave começou a dar brechas para uma conversa e algo nele me instigou, acabei cedendo e ajudando no prolongamento do assunto.

–Minha avó era advogada e eu sempre quis ser uma também.

–Ah, sua avó? E sua mãe?

–Ela faleceu, fui criada pela minha avó. –Respondi de imediato.

–Sinto muito. E por acaso pretende seguir carreira aqui na cidade ou vai pra algum outro lugar?

–Ainda não sei, mas acho que gostaria de continuar aqui.

–Ou talvez fosse pra Califórnia, lá ela teria grandes oportunidades, já viveu lá e fez grandes amigos, não é Rachel?

Pela primeira vez Jace se intrometeu na conversa, o olhei de maneira severa e depois sorri.

–Não, não, voltar pra Califórnia nunca passou pela minha cabeça e Jasonsabedisso.

O fuzilei com o olhar por não poder quebrar a cara dele agora.

–Então... E o senhor?

–Eu o que?

–Sei lá –dei de ombros – o que faz da vida?

–Eu trabalho com uma pequena empresa.

Pigarreou e percebi o incômodo dele com a pergunta, achei estranho, afinal não era nenhum interrogatório ou uma questão difícil de responder. Alternei meu olhar entre ele e Jace. Eu havia aprendido muitas coisas na faculdade de advocacia e algumas outras eu sabia que seriam aprimoradas com o tempo, tentava me lembrar a cada momento as coisas que minha avó dizia.

“É preciso analisar bem as feições de uma pessoa e seu comportamento, o ser humano nunca consegue mentir sem deixar um rastro. Em alguns, esse rastro é bem evidente, mas outros... Outros sabem esconder. Manipulam fácil e é com esse tipo que eu trabalho. Mas por que gosto muito disso.”Dizia isso com a voz doce e baixa quando chegava um pouco tarde do trabalho e eu permanecia acordada lhe esperando e depois fazia milhões de perguntas.

Os olhos hipnóticos de Jace tinham quase a mesma tonalidade dos olhos do senhor ao lado, porém os de Dave eram mais baixos, deveria ter uns 45 anos, em média, mas não parecia tão velho. Era elegante e educado.

–Desculpa senhor, como disse que era seu nome mesmo?

–David Ross, Rachel.

Dizendo isso, sorriu e eu retribuí.

–Ah, Jace, você não disse que estava um pouco entediado com a festa e queria voltar pra casa?

–Entediado? Mas está uma festa ótima. –David retrucou.

–O problema é que Rachel está aqui e ela consegue estragar as coisas, a festa está ótima, maselaé entediante.

Eles riram e eu assenti, me esforçando para esboçar o melhor sorriso que pude.

–Eu já bebi demais, realmente não queria acordar com uma ressaca terrível amanhã. Foi bom lhe conhecer –dirigi-me a David – quem sabe não nos esbarramos por aí, não é mesmo?

Levantei-me e os dois fizeram o mesmo, David beijou a costa da minha mão e caminhei com Jace ao meu lado sem dizer uma palavra até a saída.

No trajeto de volta ao apartamento, ele dirigiu. Cheguei e fui direto para cozinha pegar um pouco de café quente, não queria dormir agora, apesar do peso incalculável que meus olhos tinham assumido. Fui até o banheiro e lavei o rosto tirando toda aquela maquiagem que parecia ter criado vida na minha pele, desfiz o penteado, escovei os dentes e acabei resolvendo tomar um banho rápido. Em seguida procurei por alguma camisa de frio em meu guarda-roupa, sem sucesso. Coloquei um short de pijama, meias e uma camiseta fina, fui até o quarto de Jace, que estava vazio, mexi em suas roupas limpas e achei uma camisa vermelha de frio, tinha mangas compridas que deixavam espaço para mais dois braços meus e quase chegavam até meus joelhos, vesti por cima da camiseta e fui até a sala, peguei um livro aleatoriamente na estante e deitei no sofá.

Passei muito tempo lendo ali, mas sem entender realmente o que se passava naquelas páginas amareladas, puxava os fiapos de uma almofada e para minha surpresa um nome passou por minha mente, uma expressão facial bem conhecida por mim.

Há quanto ele não passava por minha mente?

Sacudi a cabeça afastando as imagens.

Vengeance.

Como será que ele estaria agora? Não conseguia o imaginar com família, casado ou coisa do tipo, mas também não queria criar especulações. Talvez ainda estivesse com aquela moça que eu nunca houvera visto na vida. Talvez estivesse feliz. Realmente desejava que ele nem ao menos lembrasse o meu nome, mas alguma fagulha de esperança ainda estava presente em mim, na verdade, sempre esteve.

Você não é mais a Clarisse, pode começar tudo de novo. Uma outra pessoa.

Não, não, esqueça isso! Esqueça.

Permaneci presa no mesmo conflito interno por um intervalo de tempo que eu não determinei, me sobressaltei ao ouvir a porta sendo aberta, Jace entrava com uma caixa de pizza em um das mãos e na outra uma garrafa de refrigerante. Posicionou ambos na mesinha da sala e sentou-se no chão. Ele começou a comer, eu apenas observei. Ensaiei as palavras que queria dizer, mas recuava toda vez que abria a boca.

–Você é muito esquisita cara, tem que parar de ficar olhando desse jeito pra mim, parece que vai me comer.

Jace falou em tom de brincadeira com a boca cheia e toda suja. Eu dei um sorriso fraco, quase inexistente, alguns minutos se passaram, Jace comeu mais da metade da pizza, respirei fundo e discuti comigo mesma mentalmente.

Você desiste muito fácil, se culpa demais, se penaliza demais. Fazendo o papel de sonsa o tempo inteiro. Isso é insuportável.

Senti desgosto de mim mesma, eu estava fazendo papel de boba durante todo aquele tempo, sendo uma marionete controlada. Mudei completamente minha expressão e fitei Jace, séria.

–E se euquisessevoltar?

Dead inside.

Never enough to forget that you're one of the lonely.

Slowly recall all your mind.

Morto por dentro

Nunca o suficiente para esquecer que você é um dos solitários

Devagar, recupere sua mente

Say! yes, they know that you've hurt yourself another time.

Don't they know that you're full of pain already?

Yes, they know that you've hurt yourself another time.

Decadence isn't easy is it?

Diga, sim, eles sabem que você lutou contra si mesmo mais uma vez

Eles não sabem que você já está cheio de dor?

Sim, eles sabem que você lutou contra si mesmo mais uma vez

Decadência não é fácil, não é mesmo?