Visão do Ryan:

Foram dois dias de viagem desgastantes. Ellie está estranha desde de manhã. Não sei o que deu nela.

Quando paramos, ao final da tarde, para descansar, acendi uma fogueira e coloquei um pouco de carne de coelho para assar. Ellie veio logo que sentiu o cheiro.

—O cheiro parece bom. —Disse ela, arrumando os cabelos. —É coelho, não é? Adoro.

—Finalmente decidiu falar comigo? —Perguntei, brincando. —Sim, é coelho sim. Daqui a pouco fica pronto.

—Tudo bem. —Ela se sentou ao meu lado e ficou encarando o fogo. —Desculpa. —Isso me surpreendeu. —Você está me ajudando e eu não estou sendo legal. Desculpa mesmo.

—Não vou mentir, Ellie, você me preocupa. Afinal, por que está indo para a Lagoa? Sei que é onde seu povo vive, mas isso está me deixando louco.

Ela suspirou, ainda encarando o fogo. —Algo está vindo. Não tenho certeza do que é. Antes de te encontrar, eu tive um sonho, um sonho ruim. Era tudo escuro e tinha fogo e sangue por toda parte. Pode ter sido o calor do deserto ou a falta de comida, mas eu não posso ignorar.

Não parecia ser brincadeira. Ela realmente estava séria.

—Olha, eu... —Algo me assustou de imediato. Era um barulho alto, uma mistura de galhos quebrando, folhas arrastadas, terra sendo amassada e um som ofegante de respiração. O que poderia ser? Um lobo? Não, é algo maior. Um cavalo? Não, um cavalo não faria tanto barulho. Então só pode ser...

—Abaixa!

Ellie se jogou sobre mim, me derrubando. Uma criatura emergiu da vegetação. Era um animal grande, de corpo arredondado, com pelagem marrom e grandes garras. Um urso.

—Por que tem um urso aqui?! —Gritei, me levantando.

—Quer mesmo discutir isso?! Ele está aqui e pronto! —Ellie retirou sua espada da bainha, entrando em posição de ataque.

O animal não atacava. Ficava imóvel, apenas bufando e rosnando. Por algum motivo o comportamento dele me intrigava.

—Certo, vamos do seu jeito! —Saquei meu arco, uma arma melhor para essa situação. —Você vai pela direita, devagar, e eu pela esquerda. Atacamos no sinal.

—Certo!

Começamos a nos mover, um para cada direção. O urso, ainda imóvel, começava a não saber em quem prestar atenção. Continuava a rosnar e a bater com as grandes patas no chão.

Preparei uma flecha, mirando a cabeça do animal. Só precisava que ele me olhasse.

—Um...! Dois...! —Ellie se preparava pro ataque.

O urso virou na direção dela, revelando o motivo de tanta estranheza em seu modo de agir. Ali, em suas costas, agarrada a pelagem do animal como se sua vida dependesse disso, estava uma criança.

Foi uma rápida reação, do tipo que talvez nunca mais eu tenha. Ergui o arco e disparei a flecha, que passou por cima do animal e acertou a espada de Ellie, impedindo o ataque e me dando tempo.

—Espera! Tem uma criança com ele!

—O quê?! —Ela tateava o chão a procura da espada. —Não deveríamos matar ele, então?!

—Não, ele está protegendo a criança! Volte para perto do fogo! Eu cuido disso.

Ela recuou, reclamando até o último momento. O animal continuava estressado, mas agora direcionava sua raiva somente a mim.

Abaixei o arco, me aproximando com calma do animal. Ele começava a se encolher, talvez entendendo a situação. Quando cheguei perto o bastante para alcançar a criança, o animal desabou no chão, levantando poeira. Estava muito cansado.

Retirei a criança, com certa dificuldade, de cima dele, me afastando com calma e voltando para perto da Ellie.

—Viu? Foi fácil.

—Você estava morrendo de medo, Ryan. Anda, deixa eu ver a criança.

A criança era um pequeno menino da raça dos Aranhas. Tinha cabelos acinzentados e vestia algo semelhante a um lençol todo empoeirado e rasgado, um trapo, por assim dizer. Ele estava magro e tremendo, com a pele pálida e os lábios rachados.

—Precisamos alimentar esse garoto e rápido. —Disse, retirando um espeto de coelho da fogueira e tentando fazer com que o menino se alimentasse.

—Ele está tão magro. Será que ele passou esse tempo todo com o urso? —Disse Ellie, encarando o grande animal caído no chão, próximo as árvores. —Ele também não parece bem. Curioso que não tenha devorado essa criança.

—Um caso curioso. —O garoto abriu os olhos, resmungando alguma coisa. Ele abocanhou a carne, quase comendo o palito de madeira no processo. —Calma, não precisa exagerar.

Ele nem parecia me ouvir direito.

—Ele é bonitinho, não é? Qual será o nome?

—Quer perguntar ao Urso? —Ela voltou a encarar o animal. —Vamos só chamar de "garoto" por enquanto.

A noite caiu. O garoto já parecia melhor a essa altura e, depois de muita briga com a Ellie, alimentamos o Urso também.

—Qual o seu nome, garoto?

Ele parecia meio desconfiado ainda, mas não tardou a falar. —Kemo. Me chamo Kemo. Ela se chama Nita. —Ele aponta para o urso, que aparentemente é uma ursa.

—E quem é a Nita, Kemo? É de estimação?

—Não é bem isso... Ela me ajudou.

—Você se perdeu? Onde estão seus pais?

—Eu... Eu não...

—Deixa ele, Ryan, o menino quase morreu de fome. vamos deixar ele dormir um pouco.

—Muito bem. Vem, Kemo, vou arrumar um canto para você descansar.

—Eu quero dormir com a Nita.

—A Nita está cansada também. Deixe que ela descanse um pouco.

Ele encarou o animal. Quanto tempo será que ficaram juntos?

—Tá. Vou deixar ela.

Coloquei ele para dormir com alguns cobertores e voltei para a fogueira. Ellie comia seu espeto de coelho, enquanto um novo assava para mim. Uma dor de cabeça tremenda começou a me atacar, me deixando mal. Eu precisava descansar.

Quando o dia clareou, com o cantar dos pássaros, levantei e logo recordei do Kemo e do urso. Um arrepio me percorreu a espinha ao lembrar que a Ellie passou a noite vigiando o animal. Quase pulei da carruagem e corri até aonde estava a fogueira.

Ellie adormecera sobre os próprios braços. Uma fina linha de baba escorria de sua boca. Era uma visão humilhante e engraçada.

Kemo havia sumido da carruagem. Fui procurar por ele e o achei dormindo apoiado ao lado da ursa Nita, que o envolvia com seu grande pescoço. Vejo que vou precisar me acostumar com esses novos companheiros de viagem.