Minhas semanas de recuperação passam depressa demais para que eu pense em reclamar sobre isso com Derek.

Passo a maior parte das horas de meu dia com George ou com Jamie e, apesar de sentir falta da floresta e de minha aljava, arco e flecha, me sinto bem na companhia de ambos.

George ensina-me a cozinhar, costurar, me dá livros para ler ou cadernos para escrever, me designa a ajudar Jamie com suas tarefas de casa e me integra ainda mais na sociedade masculina da cidade subterrânea.

Só consigo algum tempo com Dylan ou com Derek depois do jantar, quando ambos já estão cansados por suas tarefas diárias e pouco conversam comigo.

Certo dia, Derek encostou-se na parede de nosso quarto e disse algumas palavras a respeito de Clover e de como ela estava se saindo bem no subterrâneo. Comecei a rebater suas afirmações com teorias que eu havia formado com o tempo livre que tinha na semana de recuperação. Coisas a respeito de Clover. E enquanto estou no meio de minha teoria, olho para seu rosto e ele está dormindo sentado.

Não sei o que Derek ou Dylan andam fazendo na minha ausência mas sei que isso está esgotando-os.

Tudo estava bem, eu começava a me acostumar com a rotineira preguiça matinal, com minhas caminhadas extensas com George enquanto esperávamos a hora de buscar Jamie na escola, quando a presença de uma nova garota no subterrâneo nos atinge de surpresa.

George dá um pulo para trás quando se depara com o novo rosto.

– É a garota que eu servia. - Diz ele, num sibilo.

Temos sorte de não ter entrado no campo de visão dela ou de qualquer um dos homens que a cercam, inundando-a de perguntas ou ditando-lhe as regras da cidade.
Os olhos castanhos da garota estão avermelhados como se tivesse chorado por muito tempo e seu corpo está rígido em contato com os homens da cidade. Ela pisca diversas vezes e seu olhar vaga pelos rostos que a cercam.

– Ela está procurando por mim. Ela disse que procuraria. - Diz George, com pesar.

– Como acha que ela chegou aqui, George? - Questiono sem tirar os olhos da garota.

Ele dá de ombros e suspira pesadamente.

– Não sei. Só sei que não estou gostando nada das aproximações femininas na cidade. Não se ofenda, você já é parte de nós. Você. Não Clover ou Katy. Espero que o resto dos homens não estejam se iludindo com o pensamento de que todas elas são como você. Porque, francamente, Clover não nos deu um motivo concreto para estar aqui.

Viro-me de costas para a garota, Katy, pela primeira vez desde que pousei meus olhos nela.

–Bem, ela me parece um tanto quanto inofensiva.

George revira os olhos e se afasta de mim e do nosso esconderijo na parede de mármore. Quando já está há alguns metros de distância de mim, ele gira o corpo e olha fixamente para o ponto onde estou.

– Você também parece um tanto quanto inofensiva sem sua aljava e seu arco, ou seu tom autoritário de voz. - Ele diz e então caminha para perto da roda que se forma em volta de Katy. Quando a garota localiza George, salta de longe dos homens e o agarra pelos ombros, com as unhas pintadas de rosa fincadas em sua camiseta preta.
Forço-me a caminhar desajeitadamente para buscar Jamie na escola, mas antes olho para trás. Katy ainda está agarrada a George, como se realmente se importasse com ele. Não consigo não enxergá-la como uma ameaça.

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– Acredita que o professor me deu uma estrela dourada pela minha redação sobre você? - Jamie diz, agitado assim que os portões da escola são abertos. Diversos garotos de sua idade, ou um pouco mais velhos deixam a estrutura escolar correndo, com cadernos ou livros nas mãos.

Eu não sabia que a cidade possuía tantas crianças até começar a buscar Jamie na escola. Não que seja necessário buscá-lo, até porque a escola não fica tão longe do Compartimento onde Derek, Jamie e eu moramos.

Ele não me espera fazer qualquer comentário sobre sua estrela dourada conquistada, até que solte uma pergunta sobre onde está George.

Quando readquiro meu dom da fala, parabenizo-o por sua estrela dourada e peço-lhe para ler seu texto sobre mim depois, e explico para ele sobre Katy e George.

– Oh, ela está mesmo aqui? George me disse que essa garota é filha de uma guarda da Aldeia. Ele disse também, que ela era muito pacífica com os garotos da Aldeia, diferente de sua mãe, que era uma guarda, e ao mínimo sinal de desobediência, aplicava um castigo bastante severo nos garotos. Imagino que ela usava um eletrosingular, você não acha? Aliás, George a conhecia antes de servi-la. E Dylan a conhece também. E Jake também. E alguns dos garotos que estudam comigo também. Eu adoraria conhecê-la. - Ele tagarela. - Será que ela é realmente diferente de sua mãe? Bom, pelo modo como George fala, aposto que gosta dela. Sabe...como papai gostava de mamãe. Como você gosta de Dylan. Com beijos e tudo mais...

– Jamie!

– Ah, já entendi. Você não quer que saibam que você e Dylan são como mamãe e papai eram...Namorados!

– Jamie! - Dessa vez, grito. Tento impor meu tom autoritário que George mencionou. - Essa palavra não existe! Só nos livros de história ou nos livros de contos de fada, que são extremamente proibidos.

– Tá bom. Tá bom. Não falo mais. Aliás, vou ficar em silêncio até chegarmos em nosso compartimento. Ou até a semana que vem. Ou até o mês que vem. Ou até o ano que vem. Ou até o fim de minha vida. Espero que não se importe.

– Não me importo.

Ele fica em silêncio, pelo que me parece, por cinco minutos.

– Tudo bem, Tessa. Não precisa mais implorar. Eu volto a falar. Fiquei sabendo, que Katy e Dylan se conhecem desde pequenos. Isso não é o máximo? É como meu pai e você. Você o conhece desde que era pequena e ele a conhece desde que você era pequena. Ou como eu e você. George disse que ela nutria um amor intenso por Dylan e por isso a mãe dela, a guarda, separou-os assim que pode. Ninguém poderia desconfiar que sua filha estava apaixonada por um garoto.

– Espere! - Digo. - Dylan? O meu Dylan?

– Sim, Tessa! O seu escravo. Você não viu pois estava com meu pai na floresta, mas assim que Dylan soube que George era o escravo fugitivo de Katy, eles brigaram. Brigaram feio. E eu chorei muito quando percebi que meu único amigo aqui estava apanhando. Eles ainda mantém distância um do outro.

Levo alguns intermináveis minutos para registrar tudo e para começar com minhas teorias. Talvez ela encontrado o subterrâneo somente para encontrar Dylan.

Abro a porta do Compartimento, mas ela bate de volta. Só assim que percebo a presença estonteante de Jake ao lado de Jamie.

– Oi Tessa. - Diz ele, com um sorriso no canto esquerdo da boca. - Eu poderia roubar seu irmão por um minuto?

– Poderia roubá-lo para sempre, se quisesse. - Respondo.

Jamie solta uma gargalhada.

– Vê como ela me ama? Implica comigo assim como implica com meu pai.

– Sim, ela o ama demais, Jamie. - Concorda Jake. - Obrigado pela oferta, mas eu recuso. É só por alguns minutos.

Eles passam por mim e Jake sussurra próximo a minha orelha:

– Obrigado, minha arqueira preferida. - Ele sorri, deixando-me sozinha com a boca entreaberta e a chave do Compartimento trêmula em minhas mãos.

Entro e bato a porta logo atrás de mim. Penso na minha lista de tarefas de hoje, mas posso ignorar todas com facilidade. Minha prioridade agora é encontrar George.

Faço um rabo de cavalo alto em meus cabelos e deixo o Compartimento. Assim que viro a primeira esquina, dou de cara com Derek.

– Olá! - Digo, entusiasmada. - Quanto tempo.

Ele sorri.

– Estava mesmo procurando você. - Diz ele. Localizo meu arco e minha aljava lotada de flechas pendurada em seus ombros. - É com muita alegria que depois de três semanas digo que você está...

– Liberada! - Pulo para agarrar seu pescoço e dar-lhe um abraço forte, enquanto desembaraço minha aljava de couro de seus ombros e passo para os meus. Ainda estou suspensa no ar quando pego meu arco. - Isso!

– Foi uma boa garota durante esses dias. - Ele diz, sorrindo.

– Obrigada, tenente Derek Ripling. - Digo. - Agora acabou a moleza. Voltarei para minha rotina agitada fora do subterrâneo.

– Está livre, comandante Tessa Stolpeen.

Seus olhos verdes fitam-me, enquanto puxo uma flecha e a encaixo no arco. Fico ameaçando soltá-la por minutos e Derek me analisa minuciosamente.

– É exatamente essa pose que está fixada em seu pingente. - Ele observa.

Sorrio. Deve ter sido a primeira vez que ele percebe que faço isso.

– É proposital. Ensaiei aqui no Compartimento por dias, tentando ter a mesma posição majestosa que a garota do pingente. Ainda espero atingir minha meta.

– Você já atingiu, meu amor. - Ele dá um beijo em minha testa e caminha um pouco à frente. - É exatamente o que eu pretendia que fosse. Desculpe pelos dias de castigo.

Dou de ombros.

– É para isso que servem as pessoas que são responsáveis por nós. A família serve para nos educar, eu acho.

– Acha que estava mal educada? - Ele zomba.

– Talvez.

Ele deposita outro beijo em minha testa e dobra a esquina.

Enfim, livre! Corro pelas ruas da cidade, procurando por George. Agora além de saber mais sobre Katy, posso contar que estou liberada. Posso contar, não. Preciso contar!

Avisto-o ao lado da fábrica de costura, sentado no banco onde nós geralmente ficamos no fim da tarde. Tento correr até lá, mas alguém entrelaça os dedos em minha aljava e me impossibilita, já que ela está bem fixada em meus ombros.

– Não sabia que podia andar armada pela cidade. Ainda mais no castigo. - É Dylan. Viro-me para olhá-lo.

– É para matar qualquer pessoa que desrespeite meu tom de voz autoritário. - Digo. Ele não pega em minha cintura, ou toca qualquer parte do meu corpo. Pelo contrário, fica distante.

– Tess, precisamos conversar. Eu tenho certeza de que Jamie já lhe adiantou o assunto, de modo que tudo ficará mais simples se você apenas aceitar que ela está aqui por minha causa. Precisamos ficar um pouco distantes um do outro, está bem? - Ele diz.

Seria um choque, caso eu já não soubesse das circustâncias e me parecesse bem justo. Katy arriscou seu relacionamento com a mãe para chegar no subterrâneo e ficar com o amor de sua vida desde a infância. Ela não me parece menos uma ameaça por isso, mas me parece justo que Dylan fique com ela. É isso. Estou perdendo-o em menos de três semanas.

– Está. - Respondo, decidida.

– Por favor, não me odeie. - Suplica ele.

Sei que meus olhos estão cheios de lágrimas que tenho conter e sei que se ele ver aquilo, posso parecer fraca. Não é minha intenção no momento.

Inspiro, tentando sofregamente dispersar o líquido de meus olhos.

– Eu não te odeio. Ainda mais agora que estou livre do subterrâneo. Tenho uma invasão na aldeia para preparar na companhia de meus amigos, Dylan. Tenho que me juntar por vários dias com George, Wes, Jake e Derek para formarmos planos. Não tenho tempo para me preocupar com meu coração partido ou coisas banais assim.

– Acha que o fato de eu ter dito que te amo é algo banal, Tessa?

Pisco. Reflito. Decido.

– Acho. Tirando exclusivamente do fato de que era mentira. Acho. Acho sim.

Viro-me e corro em direção a George e ao nosso banco de fim de tarde, deixando Dylan paralizado no meio da cidade movimentada das seis horas da tarde. Não olho para ele novamente, porque sei que fracassaria e correria até ele para abraçá-lo e dizer que não achava que era algo banal.

Tenho que deixá-lo ser feliz. Com Katy, que arriscou tudo para ser feliz com ele. Dylan não é meu escravo. Nem escravo dos meus sentimentos. Ele pode ter mentido sobre me amar. Pode ter me manipulado. Questiono o porquê de ele nunca ter dito nada a respeito dela, mas não me permito pensar nisso por muito tempo.

– George! - Digo esbaforida. - Estou livre. Vamos na floresta.

– Agora?

– Agora!

– Onde está Jamie?

– Com Jake.

– Derek a liberou?

– Sim.

– E sobre o Dylan...

– Vamos, George! - Arrasto-o em direção ao elevador mais próximo.

– Tessa...o amor é...

– George!

Ele sorri para o chão do elevador.

– Estou começando a falar sobre isso porque eu a amo também.

– Certo, então vamos usar um ao outro para não fracassarmos nisso, tá? Eles precisam ficar bem juntos, sem interrupções.

Ele concorda com a cabeça.

– Li em um livro de contos de fada que são extremamente proibidos que o amor é mágico. Mas sabe, Tessa, a maioria das mágicas...são simplesmente ilusórias. Ilusões de ótica.

– Está formando teorias como eu. Já pode entrar pro grupo. Bem vindo ao time de Tessa Stolpeen.

Ele sorri.

– É uma honra fazer parte.