Paramos de dirigir em um apartamento relativamente pequeno. Descemos do carro em perfeita sincronia. George e eu fazemos tudo em sincronia agora.

Dylan evita cruzar o olhar conosco agora. Seus olhos vermelhos entregam o fato de que ele andou chorando pela morte de Katy no carro, mas não sinto nem um pouco de pena. Pelo contrário, sinto quase um prazer intenso.

Derek e Bailee estão irredutíveis quanto ao fato de nos levarem à sessões de psiquiatras. Bailee acredita que um único médico não seria capaz de ajustar nossa situação mental, então uma equipe intensamente preparada está sendo enviada para o apartamento nesse exato momento.

George e eu não dizemos nenhuma palavra. É óbvio que não temos como provar que não estamos enlouquecendo aos poucos, e quando cremos que estamos curados, temos recaídas violentas. Nosso corpo está lotado de uma adrenalina e violência que nunca será definitivamente drenada.

Eles nos colocam em quartos distantes um do outro, na companhia de nossos pais. Dylan é o único que dorme sozinho e que não tem permissão para andar pelo apartamento abafado. Todos tem sessões com psiquiatras, mas George e eu somos os únicos que temos por quatro horas seguidas e em conjunto.

É a única hora do dia em que George e eu somos presenteados com a presença um do outro e por isso, chega a ser agradável. Ao final das sessões, os psiquiatras mesmo se qualificam a colocar-nos em nossos devidos quartos e trancar as portas, passando as chaves para Derek ou Bailee.

Não ter um ataque de fúria está nos tópicos do tratamento, mas não impede que eu chute a porta assim que esta é trancada, deixando-me sozinha com meus pensamentos sombrios.

Assim que me vejo só, sem a presença de George, Derek ou de qualquer um dos médicos, Jake queima bem em frente aos meus olhos. Todos os dias e todas as horas. Comento sobre isso com Jade Peltz, a psiquiatra que mais me identifico, e ela me recomenda a repetir comigo mesma que não passa de um pensamento desnecessário e que deve ser esquecido. Diz também para que eu me coloque na frente de um espelho para que veja que tudo aquilo não é real.

É o que faço na tarde em que novamente sou trancada em meu quarto. Sozinha. Em questão de segundos, assim que olho para o lado, Jake está lá. Queimando. Sempre queimando. Encolho-me contra a parede, cabeça no joelho, e tampo meus olhos com meus braços.

– Isso não é real. Isso não é real. Isso não é real. Isso não é real. Isso não é real. - Repito.

Solto lentamente meus joelhos para observar o quarto vazio. Solto um suspiro de alívio e fecho os olhos.

Funcionou. Jade estava certa.

Abro novamente os olhos e não há nada no ponto perto da janela que Jake costumava queimar.

Dou um pulo ao perceber que agora ele queima ao meu lado, na cama. Abafo um grito com as minhas mãos e me afasto, grudando-me à parede.

Espelho. Jade disse algo sobre espelhos. Coloco-me na frente de um, instalado na parede perto da porta.

Estou sozinha no quarto. A cama está vazia. Ninguém queimando. Não há fogo. Nada. Viro-me para olhar com meus próprios olhos, sem necessitar do reflexo do espelho e ainda assim não há nada.

Viro-me novamente para o espelho. Abafo um segundo grito em dez minutos com minhas mãos. Não me vejo no reflexo. Vejo minha mãe.

– Olhe só para você. - Ela diz. - O que está acontecendo? Está virando uma espécie de drogada? Está com abstinência do melhor amigo? Precisa mesmo dele?

Ela solta uma gargalhada enquanto lágrimas escorrem pelo meu rosto. Tento contê-las, sem o mínimo de sucesso. Me jogo na cama, fitando o espelho, tremendo.

– Passando por consultas com psiquiatras e por fim, sendo trancada em um quarto como um animal. Derek está realmente cuidando muito bem de você, não é? Virou uma espécie de bichinho de estimação de Bailee Mason? Deixou seu irmão desprotegido com uma mulher que mal conhece. - Ela continua.

– Eu conheço Clover! Ela ama Jamie e está disposta a sacrificar sua vida por ele, diferente de você. - Grito. O que estou fazendo? Gritando com um espelho que está mostrando o reflexo errado?

– Eu sei o que está pensando. Que o reflexo do espelho está errado. Eu vou te dizer uma verdade que jamais disse para alguém. Eu sou o que você será em alguns anos, Tessa. Você espera ser parecida com Derek ou até mesmo com Clover, mas será como eu. Aliás, você já não é muito diferente de mim. Vejamos. Mortes por sua culpa: confere.

– Cale a boca! - Grito mais alto ainda. Tapo meus ouvidos com as mãos, mas ainda consigo ouvi-la perfeitamente. Ela também está gritando e citando os motivos para dizer que eu sou parecida com ela. - Eu não sou parecida com você!

Começo a chorar e a gritar, porque não tenho mais o que fazer. Desejo que os médicos venham até aqui e me deixem sedada, mas eles não fazem isso. Eles não estão vindo. Por que eles não estão vindo?

– Pai! - Grito em meio ao choro soluçante que interrompe minha fala. - Por que você está me deixando? Sou como minha mãe? Eu não quero ser como ela. Pai! Está me ouvindo? Eu não quero ser como ela, mas sou? Pai, me responda por favor.

– Não pode ver? Todos te abandonaram na sua abstinência compulsiva. Ninguém mais te ama, com excessão talvez, do maluquinho que também está trancafiado em seu quarto.

Apanho o abajur e o retiro da tomada.

– Não. Se. Refira. A. George. Dessa. Maneira.

Ela solta uma gargalhada, muito parecida com a de Katy antes de morrer.

– Você é como eu, Tessa Stolpeen. Exatamente como eu.

– Não sou! - Grito, jogando o abajur no espelho. Bato com tanta força que cacos do material se despedaçam, cortando meus pulsos, braços e meu rosto. Mas não ligo. Não paro que quebrá-lo enquanto há pedaços intactos. A moldura do espelho se despedaça no chão. Minha mãe se foi. Assim como Katy.

Jogo-me contra a parede e encolho meu corpo dolorido devido aos cortes. Volto à posição original, cabeça nos joelhos.

A porta se abre e Derek me apanha do chão, livrando meus braços de alguns cacos de vidro que se prenderam aos cortes.

– Tess. - Ele diz. - Estou aqui.

– Por que você está me abandonando, Derek?

– Não estou. - Ele fala.

– Não? Você me odeia?

Ele faz que não com a cabeça por meio minuto.

– É claro que eu não te odeio. Como eu poderia odiar a razão por eu respirar?

– Porque...porque eu sou um monstro. Exatamente como minha mãe.

– Não, você não é, meu amor. Você não é. - Ele me puxa para perto de si e enfio meu nariz em seu peito, esquecendo de tudo e lembrando-me apenas do cheiro de meu pai. Por um pequeno instante, o mundo volta a fazer sentido. - Você é a heroína. Minha heroína. Heroína de George. Heroína de Jake.

– De Jake? A heroína de Jake o deixaria morrer?

Derek beija meus cabelos.

– Pare de se martirizar pela morte de Jake. Não foi sua culpa.

– Não mesmo, pai? Eu poderia estar em seu lugar. Poderia ter morrido por ele, mas ele fez isso por mim. Eu não posso me perdoar.

– Ele fez isso, porque sabe que você é suficientemente forte para vencer qualquer luta. Inclusive essa, contra você mesma. Tess, você é a pessoa mais forte que já conheci.

– Por que todos dizem isso? - Retruco. - Eu sou fraca. Fraca. Fraca. Essa é a minha mais nova recaída, pai. Estou me afogando nos meus próprios erros.

– Todos erram. Se você quiser, pode ir até o quarto de George e conversar com ele, assim como pode ir até a sala onde Jade está e converse com ela. Assim como pode permanecer aqui, abraçada comigo o resto da noite. - Ele diz. - Essa é a opção mais indicada, já que sinto sua falta demais.

Sorrio.

Devido à minha decisão de permanecer ali, ele vai até o banheiro e pega um kit de primeiros socorros para cuidar dos meus ferimentos. Comenta sobre o fato de que Jamie está morrendo de saudades de mim e que Clover está louca para me ver.

Estreito os olhos quando ele diz a palavra louca. Ela ri provavelmente da minha expressão e baixa os olhos para o meu corte na perna.

– Desculpe. Não quis dizer literalmente.

– Eu sei.

Ele continua rindo, o que me faz rir também.

E logo somos os mesmos. Os antigos pai e filha que costumavam ser mais unidos do que se fossem um só.

– Eu te amo. - Digo.

Ele solta o algodão na cama e afasta a maletinha branca com uma cruz vermelha, para que eu me jogue em seu colo novamente.

– Eu também te amo. Você sabe disso.

– Desculpe por perder minha cabeça. Vou ficar bem.

– Eu sei que você vai. - Ele sorri.

– Eu sou forte. Posso suportar tudo isso.

– Eu sei de novo. - Ele ri.

O som do riso de Derek me transporta para a realidade que me encontro. Meu pai está feliz, não importa que esteja acontecendo uma guerra em nosso redor. Não importa quantas pessoas eu seja obrigada a matar, ele ainda vai me amar. Porque ele é meu pai.

O sentido da palavra finalmente consegue se encaixar. Durmo pouco depois que ele começa a cantarolar uma canção de ninar.

No meio da noite, acordo para ir ao banheiro. Fito meu reflexo, meu corpo e rosto cheio de cortes de cacos que voaram em mim enquanto eu quebrava o espelho.

Meu reflexo desaparece e vejo minha mãe.

– Vá embora. - Sussurro.

Fecho os olhos e me lembro do cheiro de Derek. Me lembro da cor dos olhos de George. Sinto o gosto dos lábios de Jake. Lembro do sorriso de Jamie. Do tom avermelhado dos cabelos de Clover. Do olhar acusador de um Dylan que um dia eu amei. Lembro de Bailee revirando os olhos quando George e eu fazíamos piadas sem sentido. Da minha cantoria no carro com George na viagem de purificação. De Derek cuidando de meus ferimentos. De Jade dizendo que não há nada de errado em se sentir vulnerável depois da morte de alguém extremamente importante em nossa vida. De Jamie se sentindo o máximo após acertar uma flecha no alvo. De Clover se jogando no buraco da armadilha por mim. De Jake nomeando as Tessas. De Dylan desesperado no dia que Derek e eu tivemos que atrasar as guardas. De Bailee enterrando uma bala na cabeça de Tyler para defender seu filho. De George e eu treinando na floresta. De George, Jamie e eu voltando da escola. Da última vez em que vi os olhos azuis de Jake realmente.

Reabro os olhos.

Tudo o que vejo é o meu reflexo, paralizado, com as mãos fechadas e lágrimas escorrendo em meus olhos.

Meus momentos mais felizes. É isso. É isso que me trará de volta, sempre que a loucura ameaçar me arrastar. Abro a porta do quarto calmamente e corro até o quarto de George. A porta está aberta então paro apenas para olhar seu corpo inativo. A boca entreaberta e a mão de Bailee cobrindo-lhe a cintura e mantendo o cobertor ao redor do filho.

Sorrio e volto para o meu quarto. Minha abstinência está acabada. Enrosco-me em Derek e durmo uma noite tão trânquila, que duvido que eu tenha tido algum dia.