Muitos dos Magos mais destacados, artistas e poetas da História documentada foram elfos. E temos muito a agradecer a eles por dezenas de itens simples, porém importantes, que contamos em nosso cotidiano, desde parafusos até cosméticos. Os elfos que moram entre os homens esqueceram em grande parte de sua própria história e cultura - a única camada de identidade élfica deixada neles sendo um ódio ardente pelos seres humanos, a quem eles se referem como dh'oine. Os elfos de Dol Blathanna, aquele vassalo fantoche de Nilfgaard e das montanhas selvagens das Montanhas Azuis, conservaram grande parte do antigo conhecimento e da cultura élfica, embora também eles sejam condenados a perecer. Esta sentença de morte foi entregue a eles por sua própria biologia - pois os seres humanos, embora possuidores de uma vida mais curta, são muito mais férteis do que os elfos. Assim, enquanto os números de Aen Seidhe continuam a diminuir, os nossos crescem a um ritmo cada vez mais alarmante.



(trecho do livro “Os Aen Seidhe e os Aen Elle”)



Um cervo.

Roche jamais caçou um cervo, e jamais poderia imaginar o quão difícil era caçar o maldito e saltitante animal, que apesar da cara dócil e semblante amigável, era escorregadio e difícil de matar. Sabe-se lá por que, as armadilhas também não serviram. Turiel culpou o próprio Roche e seu cheiro protuberante por isso, alegando que seu odor “peculiar” fazia afastar o animal a metros de distância. Roche não entendia porquê a elfa reclamava tanto de seu cheiro. Ele já estava fazendo o favor de tomar banho de cinco em cinco dias, mas a elfa insistia que o mais adequado às suas “narinas” era o banho diário. “Mas nem você toma banho todos os dias”, retrucou Roche certa vez, para ouvir uma resposta ainda mais malcriada. “Vocês, humanos, tem uma forte predisposição a serem malcheirosos.” E para completar, antes que Roche pudesse dizer qualquer coisa, Turiel acrescentou “e como você sabe que eu não tomo banho todos os dias?”.

Roche não soube o que dizer. Ele sabia que ela tomava banho de dois em dois dias, mas não por causa de seu cheiro. A lida de Turiel com ervas e seus odores fortes – agradáveis e desagradáveis - praticamente anulava qualquer odor que seu próprio corpo pudesse exalar. Mas Roche notava quando ela aparecia à mesa com café da manhã com os cabelos lisos bastante molhados. Como a tina estava sempre seca – Roche e Anais eram os únicos que utilizavam – o temeriano desconfiava que a elfa preferisse se banhar no córrego nos fundos da casa. Por razões inexplicáveis, Roche evitava ir até o tal córrego. A sensação de ir até lá simplesmente lhe era... Desconfortável.

-Vernon, preste atenção!

Roche amaldiçoou-se. Eles já estavam caçando aquele cervo há mais de duas horas! O animal tomou três flechadas de sua besta, mas simplesmente resistia saltitante e assustado. Mas sua pele já estava coberta de sangue e seus pulinhos já eram mancos.

-Tô cansado de perseguir esse animal estúpido!

-Nem reclame! Quem disse que estava enjoado de carne de coelho foi você.

-Mas foi você quem sugeriu o cervo...

-Sim, e você aceitou. Agora, acerte logo esse cervo. Ou nosso almoço será o jantar.

-Fique quieta. Fica difícil me concentrar se você ficar resmungando o tempo todo.

O temeriano cerrou os olhos, concentrado. Com um clique, a flecha cortou o ar. O tiro de Roche acertou desta vez a coxa do animal, que caiu indefeso sobre a grama. Correndo com grave desespero, o temeriano se aproximou do cervo, que grunhia em dor.

-Criaturinha saltitante do caralho, agora você não me escapa! – resmungou Roche, irritado, já cercando o animal e sacando sua adaga. Ao seu lado, Turiel fechou os olhos. Tudo que a elfa pôde ouvir foi o som da carne sendo cortada, enquanto o cervo soltou um último mugido de dor.

-Não sei como aguenta lidar com tanto sangue. – observou a elfa. Roche puxou o cadáver do animal pelas patas e o colocou às costas, como se carregasse um saco de batatas.

-Um bom pedaço de carne no meu prato é motivador o bastante. E ainda bem que eu consegui, porque eu já estava de saco cheio de correr atrás desse maldito cervo.

Turiel parecia descrente. – “Consegui”?! Eu não te ajudei?

Roche ergueu uma sobrancelha. – Com o quê?! Tudo que você fez foi reclamar!

-Eu fiz as malditas flechas para a sua besta, esqueceu? Passei a última noite toda cortando e afiando as setas para as flechas, enquanto você estava brincando com uma espada de madeira com sua filha no jardim...

-Iremos realmente voltar a este assunto? – reclamou o temeriano.

Roche rolou os olhos. Sabia bem o que a elfa estava para dizer. Quando ouviu de Anais que ela não desejava mais brinquedos, mas sim uma espada, e que Roche entregara sua adaga de presente a ela por isso, Turiel se irritou profundamente. Foi completamente contra. Roche conhecia o temperamento das mulheres e, com o decorrer das últimas semanas ao lado de Turiel e vivendo em sua casa, ele já sabia bem o seu temperamento. Apesar de Turiel ser uma elfa e sua personalidade ser mais sisuda e fria, ela era parecida com as humanas em muitos aspectos, e na educação de Anais ela claramente se assemelhava. Fora isso, a elfa demonstrou grande empatia pela menina, tratando-a muitíssimo bem.

-Uma menina daquela idade deveria estar brincando, não treinando com espadas.

-Eu sei o que estou fazendo, Turiel.

Apesar do posicionamento de Turiel, Roche não achava a idéia do treinamento de Anais ruim. Ela seria uma Rainha futuramente, e tais habilidades eram sempre importantes. Não só manejar uma espada adequadamente, mas entender de guerras, batalhas, estratégias. Como não seria adequado dar aulas sobre estratégia militar a Anais na frente de Turiel, Roche procurou fazer o menos suspeito e ensinar o que sabia fazer de melhor: lutar.

-Sabe mesmo? Você é um homem, Vernon! O que você entende de educar uma menina?

Roche não sabia o que dizer. Realmente, ele não entendia nada. Ainda assim...

-O que você poderia entender de educar uma menina? Pois até onde eu sei, você sequer pode ter filhos e...

O final da frase jamais saiu. Roche recebeu um soco. Não um mero tapa estalado, típico de mulheres, mas um soco. Um soco tão inesperado que o temeriano caiu no chão, tendo as costas esmagadas pela carcaça do cervo.

Tentando tirar a carcaça do animal de si, Roche observou a elfa largar a aljava de flechas e ir embora dali, a passos apressados e mãos cerradas de raiva, sem sequer dar mais uma palavra. Após cuspir no chão e massagear a bochecha, o temeriano resmungou.

-Nossa, mas que esquerdo poderoso. Terei de pensar duas vezes antes de falar qualquer coisa com ela. – disse, sentindo o maxilar doer. Batendo a poeira das calças, sentindo-se humilhado por quase ser nocauteado por uma elfa, Roche se levantou. Olhou para a carcaça do animal, pesada e ensanguentada, e também para a besta e a aljava com flechas.

Ótimo. Agora, ele teria de levar tudo sozinho para casa...

II

Roche já se encontrava esbaforido, sem fôlego, quando a pequena cabana de Turiel apareceu no horizonte. O temeriano não se lembrava de ter ido caçar tão longe assim. Provavelmente o cervo os levou para bem longe sem que eles percebessem. Ao chegar, Roche desabou o pesado cervo sobre o chão, tentando tomar fôlego. Seus olhos se voltaram para Anais, imediatamente encontrando a menina brincando com o alvo improvisado de palha, que Roche deu – simbolicamente – o nome de Emhyr. Na última semana, essa não era uma visão incomum, se não fosse por um detalhe.

A espada de Anais brilhava ao sol, como aço.

-Anais! – berrou Roche, fazendo a menina parar imediatamente, mas ainda segurando de modo desajeitado a espada de aço. – O que significa isso?!

-Desculpe. – disse a menina, voltando seus olhos para o chão. O olhar claro de quem fez merda, Roche já sabia reconhecer.

-Eu não te disse que não iríamos lutar com espadas de verdade, apenas de madeira? Agora, devolva isso! Puta que pariu!

-Desculpe. – repetiu Anais, entregando a espada. Roche a analisou por um momento. Era uma pesada de aço, mas leve, mais leve que o costumeiro. Longa e encurvada na ponta. Claramente, uma espada élfica.

-Onde conseguiu esta espada?

-Eu...

-Anais... – alertou Roche. – Você sabe, eu não gosto de mentiras...

-Tudo bem. Eu aproveitei que você e Turiel estavam longe e... E eu mexi em um baú no quarto de Turiel.

-Um baú?

-Sim, um baú. Ele é bem grande, vermelho e fica debaixo da cama dela. Eu fiquei curiosa para saber o que tinha nele e então...

-Entendi. – completou Roche, com a espada nas mãos. – E Turiel? Ela te viu com essa espada?

-Quando eu a vi passar, eu escondi a espada atrás das minhas costas. Sei que ela não gosta de me ver treinar com o Emhyr. Aliás, ela parecia estar aborrecida com algo.

-Onde ela está? – perguntou Roche.

-Acho que ela está no riacho. O que aconteceu?

Roche não respondeu, levando a espada élfica para dentro da casa. Entrou no quarto de Turiel e logo encontrou o tal baú descrito por Anais. Ao arrasta-lo, Vernon percebeu que havia um alçapão debaixo dele, trancado com um cadeado bastante sólido. O temeriano estranhou, mas voltou sua curiosidade ao baú. Conseguindo abri-lo, Roche pôde descobrir o seu conteúdo: um pequenino arco tipicamente élfico, que seria impossível a um adulto segurar com firmeza. Havia também uma aljava pequena com algumas flechas, pequenas e praticamente sem pontas. Com sua curiosidade ainda não completamente saciada, Roche voltou a vasculhar nos pertences do baú, encontrando mais objetos: um peão e um conjunto de cavalinhos de madeira. Brinquedos.

—O que significa isso?!

Como se os cavalos de madeira pegassem fogo, Roche os largou e fechou o baú com força. Ao voltar seus olhos pra atrás de suas costas, o temeriano encontrou algo que o fez estremecer: Turiel, com o semblante irritado, mãos nas cinturas.

—Eu posso explicar.

Turiel bufou, rolando os olhos. Quase solenemente, Roche se levantou. O militar sequer havia percebido que a espada élfica permanecia em sua mão, notando-se apenas quando a elfa a tomou bruscamente.

—Quem te deu o direto de mexer em minhas coisas? – disse, com os olhos transbordando raiva.

—Não foi minha culpa. Anya ficou curiosa com o baú e aproveitou-se de nossa ausência para bisbilhotar. Peço desculpas por isso.

A elfa suspirou. – O comportamento de Anya é perfeitamente compreensível, crianças tendem a ser curiosas. Mas o seu... Que feio. Umm homem adulto como você, se prestando a tal papel...

Roche franziu o cenho, apertando os olhos. Um inimigo teria temor de seu olhar ameaçador, mas Turiel... Isso só parecia encorajá-la ainda mais a enfrenta-lo.

—Não sei porquê o segredo. Eu não vejo nada de errado em você ter uma espada em casa. Eu iria apenas guarda-la no baú. Mas...

—Mas? – insistiu Turiel. Roche suspirou.

Brinquedos. Eu realmente não esperava encontrar brinquedos. Você deve ter o quê, séculos de idade? Esses brinquedos são recentes. Não parecem ter pertencido a você, mas a uma criança.

A resposta de Roche teve o efeito contrário, e ao invés de abrandá-la, o temeriano apenas a revoltou ainda mais. Boquiaberta e com mais fúria transbordando do olhar, a elfa parecia completamente transtornada.

—Mas eu não tenho séculos de idade! Quem te disse isso?

Roche tornou-se confuso. – Bom, todos nós sabemos que vocês, elfos, vivem por séculos e ainda assim mantém a aparência jovem. Nunca entendi muito bem o porquê, mas...

Para abismação de Roche, Turiel começou a rir.

—Não sou tão velha assim. Na verdade, eu sou praticamente uma “adolescente” para os padrões humanos.

—Mesmo? E quantos anos você tem?

—Só vou te contar se você me contar a sua idade.

—Fora de questão. – disse Roche, sem titubear. – Mas enfim, e quanto aos brinquedos?

A risada de Turiel subitamente se cessou. Roche enxergou hesitação na mulher. Decerto o assunto era sério, muito sério. Uma ferida antiga do passado que ela não queria mexer.

—Olha, você realmente não precisa me contar. – decretou, por fim, o temeriano.

—Que bom que sabe disso. – disse, secamente. – Afinal, por que deveria te contar? Tendo em vista que você está vivendo comigo há três semanas e eu sei tão pouco de você.

Sim, o lado ríspido de sua natureza élfica tinha que aparecer uma hora. Turiel continuou.

—Para começar, a sua esposa. Ou... Enfim, não sei muito bem de como se dá o relacionamento entre vocês, humanos, mas ouvi dizer que há uma espécie de... Estágios. Mas deixando de lado, o que quero dizer é que você jamais me contou qualquer coisa sobre a mãe de Anya.

A mãe de Anais. A Baronesa La Valette. A belíssima, estonteante, Baronesa La Valette. A nobre que conseguiu cair nas graças do Rei Foltest e lhe deu dois filhos bastardos – Anais entre eles. Assim como praticamente todos os homens da Teméria, Roche a achava uma mulher bonita e atraente. Porém, era um dos poucos – senão o único – que tinha permissão para elogiá-la diante de Foltest sem causar constrangimentos, ou correr o risco de ser lançado à masmorra. E Anais herdara claramente alguns traços de Foltest, mas era praticamente a cara da mãe. Sem dúvida, seria uma mulher belíssima como a mãe quando adulta. Um casamento no futuro com Anais não seria nenhum sacrifício a qualquer membro da realeza.

—Ela era uma bela mulher. – disse Roche, com o olhar perdido. – Uma das mais belas que já conheci.

—Sua filha herdou muito da mãe, então. Tendo em vista que a menina nada tem de você.

Roche sentiu algo de mordaz e zombeteiro no comentário de Turiel, mas procurou deixar para lá. Era verdade, no fim das contas. Anais nada tinha de similar com Roche porque, para começo de conversa, Anais não era filha dele.

—Sim, ela é idêntica à mãe. – alimentou Roche. – Você está certa.

—O que houve com a mãe dela?

Provavelmente, servindo de troféu para o Imperador Emhyr em Nilfgaard.

—Morta. – mentiu Roche. – Foi recente, então gostaria que você evitasse falar desse assunto com ela.

A elfa assentiu. – Claro. Mas afinal, não foi tão difícil assim, foi? E eu, que cheguei a pensar que vocês nem eram pai e filha, mas vejo que me enganei redondamente. Dá para perceber que você sente um forte sentimento por ela. Chega a chama-la de “minha Rainha” às vezes... Admito que acho... Bonitinho.

Turiel saiu de perto de Roche, rindo. “Bonitinho...”, pensava Roche. Esse adjetivo não combinava com ele, definitivamente. Qualquer um que o chamasse de “bonitinho” ou o aludisse a algo do gênero, decerto não tinha amor à própria vida. Ele estava amolecendo, definitivamente.

III

A noite já estava alta. A lua cheia daquela noite poderia ser vista em meio às copas das árvores. Fazia uma noite bonita, notou Roche. Era possível ver no céu várias estrelas e constelações cujos nomes científicos ele desconhecia, mas sabia pelos ditos populares. A Constelação do Alce, a constelação da Cobra, a Constelação da Flecha... Todas estas estrelas conhecidas por sua vida como Comandante dos Listras Azuis, quando as estrelas serviam como um bom guia em uma floresta fechada.

Roche trazia seu olhar perdido no fogo. De repente, sentiu alguém sentar-se ao seu lado. O temeriano sabia que não era Anais, pois havia colocado a menina para dormir há muito tempo. Voltando seus olhos, percebeu que era Turiel. A elfa sentou-se ao seu lado, diante da fogueira. Entregou a Roche um espeto com carne crua de cervo, salpicada com algum tipo de molho de ervas. A curiosidade levou o melhor do comandante, que enfiou na boca um dos pedaços crus de carne, para horror da elfa ao seu lado.

—Isso deveria ser comido assado, não cru.

—Está delicioso, mesmo cru. O que você colocou aqui? Gostaria de saber.

—Não posso contar porque é um segredo élfico. – disse Turiel, com horror ao ver Roche lambendo os dedos.

Roche estendeu o espeto ao fogo, assistindo a carne ser dourada pelas chamas. Antes que pudesse fazer alguma brincadeira sobre o tempero misterioso, Roche percebeu que Turiel também trouxe uma garrafa. A tal garrafa de Licor de Mahakam.

—Você não disse que ia vender esta bebida? – questionou o temeriano.

—Me ofereceram um péssimo preço por ela. Ou os anões perderam a receita, ou estão produzindo como nunca, pois o mercado está inflacionado por Licor de Mahakam. Não é uma bebida das mais valiosas ultimamente.

Roche se permitiu sorrir levemente. Já era capaz de sentir o gosto amargo e forte do licor dos anões em sua língua, tamanha era a sede que ele tinha em tomar um gole daquela bebida. Turiel retirou a rolha da garrafa e encheu duas canecas. Ao primeiro gole, a elfa estremeceu. Roche pensou em caçoá-la sobre isso, mas preferiu não comentar. Muitos elfos não gostavam da bebida forte dos humanos, optando por coisas mais suaves. E um Licor de Mahakam era quase um soco no estômago, mesmo aos mais veteranos de copo.

—Aposto que as pessoas preferem um bom vinho de Beuclair agora.

—O estalajadeiro disse algo assim. Mas onde fica essa cidade, Beuclair? – ela perguntou.

—Em uma província ao sul, chamada Toussaint. Tem a fama de produzirem o melhor vinho do continente. Honestamente? Eu já provei uma vez e...

—Você provou um vinho caro desses? Como?

Roche ficou sem palavras. Havia tomado um cálice de vinho de Beuclair, quando foi atender a um banquete para comemorar o aniversário do Rei Foltest. Porém, como dizer isso a ela?

—No casamento de um grã-fino, da família da minha esposa. Foi há tanto tempo que nem me lembro quando foi, mas eu me lembro que o gosto desse vinho era bastante suave. A sensação que eu tinha era de estar... Esquece.

Turiel riu. – Qual a sensação? Vamos lá. Me conte.

—Você vai rir de mim.

—Será? Talvez, na qualidade de herbalista, eu compreenda.

Roche parecia indeciso, mas decidiu continuar. – Era tão suave que... Que eu tinha a sensação de que seda atravessava a minha garganta.

Turiel começou a rir, descontroladamente. Roche sentiu suas bochechas corarem.

—Você disse que iria compreender.

—Na verdade, eu disse que “talvez” iria compreender. E na verdade, eu compreendi. É que simplesmente não esperava tal comparação vinda da boca de um homem que tudo que faz da vida é matar, matar e matar mais um pouco.

—Meu ofício não é só matar. Às vezes eu torturo. – disse o temeriano, enchendo mais um copo. Ofereceu à Turiel, mas percebeu que ela não deu mais goles naquela bebida. Deveria estar com medo de se embebedar.

Os dois jogaram mais e mais conversa fora. O copo de Turiel ainda estava na mesma quantidade que a elfa colocou para si na primeira rodada, e Roche já enfrentava a quinta rodada. A garrafa de Licor já estava pela metade, de modo que o temeriano já começava a demonstrar sinais de embriaguez. Embora tivesse a constituição forte para a bebida, Licor de Mahakam não era algo a ser subestimado.

—Então... Eu perguntei ao bruxo... “Como é que se luta contra um Dragão desses?”, e sabe o que ele me disse? “Não se luta, só corre!”

Com a voz arrastada Roche começou a rir descontroladamente. Completamente lúcida, Turiel assistia ao Comandante temeriano com completa surpresa. Ele estava bem-humorado, com os ânimos bons. Não propriamente pela bebida, ela percebeu, mas porque a embriaguez estava fazendo-o contar histórias de seu passado. Nem todas eram tão engraçadas assim como dava a entender por suas risadas, mas Turiel percebeu que eram histórias de uma época feliz dele.

—Então, era um Dragão de verdade?

—Sim... – disse Roche, dando mais um gole. – Enorme e preto. Voava fazendo vuuup, vuuuup, vuuuup... Ou era vluuup, vluuup, vluuuup? Não lembro. Meio difícil lembrar quando se está debaixo daquela fera voadora...

—Como assim, debaixo?

—O dragão pousou em cima de mim. O bastardo, filho de uma puta desgraçada, arrombado do caralho...

—Tá bom, já entendi. – disse Turiel, interrompendo os xingamentos do comandante.

—Mas eu sobrevivi... Nestas horas, é bom ser magro. Se fosse só um pouquinho mais gordo como o Rei Foltest, eu teria sido esmagado igual um purê de batata.

Em meio às risadas bêbadas de Roche, Turiel pôs-se a refletir. Rei Foltest?! Ele era tão próximo assim do falecido Rei Foltest?!

—Esse dragão cuspia fogo?

—Porra! Era fogo pra caralho!

—Então, você deve ter ficado com o cabelo tostado.

—Não fiquei, não... Eu sempre uso meu chaperon...

—Será mesmo?

Roche se sobressaltou ao sentir o vento gélido daquela madrugada atingir suas orelhas e seu cabelo curto e falhado. A sensação de estar sem seu inesperável chaperon era quase a mesma de estar nu. Ele cometeu o erro fatal de estar bêbado demais e preocupado em contar sua história, deixando de perceber que, o tempo todo, durante a conversa, Turiel deixou sua mão pousada sobre o seu ombro. E, cada vez mais, sua mão se aproximara de seu pescoço – ou melhor, de seu chaperon. Pegando o temeriano completamente desprevenido, Turiel decidiu fazer um gracejo com ele. Ainda estava aborrecida por tê-lo visto mexendo em suas coisas. Achou que arrancar seu maldito chaperon seria uma resposta à altura.

No entanto, a elfa esperava ver algo muito trivial. Uma cabeça cheia de cabelo, ou mesmo careca. Uma calvície. Ou uma cicatriz feia e profunda. Mas jamais imaginava que um mero chaperon escondia, na verdade, um grande segredo de Roche.

—Você é um meio-elfo! – ela disse, horrorizada por notar que ele tinha orelhas ligeiramente pontudas. O susto tomado com o choque de ter o segredo de sua vida descoberto fez qualquer vestígio de bebida nas veias de Roche simplesmente evaporar. Indignado, o Comandante tomou o chaperon das mãos dela, mas não o vestiu novamente.

—Quão irônico... – disse Turiel, mordazmente, enquanto Roche baixava sua cabeça. – O caçador de não-humanos é ele mesmo um não-humano. É para isso que veste esse chaperon? Para que seus inimigos não vejam que estão sendo caçados por um igual, mas por alguém de uma “raça superior”? Ou para fazê-lo mais respeitável? Quanta hipocrisia.

—Para começo de conversa, eu não sou um meio-elfo. Eu sou um quadroon. O desgraçado que engravidou minha mãe e a abandonou à própria sorte é que era um meio-elfo.

Turiel sabia o que significava um quadroon. Alguém gerado por um humano e meio-elfo, que consistia em ter apenas um quarto do sangue élfico. Um meio-elfo era fácil de se reconhecer, pois consistia em um híbrido “bizarro” de elfo e humano, sendo sempre o mais marginalizado dos inumanos, por não ser aceito nem por elfos e humanos. Mas era extremamente difícil reconhecer um quadroon na sociedade. Havia tão pouco de elfo em suas veias que conseguiam se misturar aos humanos facilmente. Mas claramente, este não era o caso de Roche, com as orelhas praticamente a gritar suas verdadeiras origens.

—Eu nunca vi um quadroon de orelhas pontudas. Nunca.

Roche suspirou.

—Geralmente, um quadroon herda poucos traços élficos, mas herda alguma coisa. Eu não herdei a altura dos elfos, não herdei os olhos de cor exótica, muito menos a beleza. Mas herdei as malditas orelhas do meu pai. Quando eu era criança, minha mãe tentou uma vez cortar as pontas das minhas orelhas, mas jamais teve coragem. Então, a solução que minha mãe encontrou foi me manter usando um chapéu. Afinal, já era complicado ser o filho de uma prostituta, que dirá um com orelhas pontudas...

—Sua mãe era prostituta?

—Precisou se tornar, depois que eu nasci. Ela foi expulsa de casa pelos pais dela com a descoberta da gravidez. Teve de ir embora para a cidade de Maribor. Lá, precisou se prostituir na rua para que eu não morresse de fome. Ninguém queria dar emprego ou casar com uma mãe solteira.

Com o chaperon nas mãos, Roche tratou de vesti-lo rapidamente. Parando de frente a Turiel, que estava com o semblante estarrecido por sua história, o temeriano decidiu comunica-la sobre sua decisão.

—Amanhã, estarei indo embora daqui.