“Fomos ordenados a prendê-los, mas como capturar um elfo? É como tentar capturar o vento.”

(Coronel Zyvik sobre os Scoia’tael)

Iorveth jamais comeu com tamanha voracidade.

Não porque estava com fome ou o alimento em suas mãos era apetitoso. Carne de rato estava longe de ser sua iguaria favorita. Mas após semanas de espera, finalmente apareceu um camundongo grande, o maior que já viu naquela cela. Iorveth comeu rapidamente, lambendo até os ossos do animal. Quando chegou à superfície branca e parcialmente amarelada do osso, o elfo suspirou de alívio. O osso tinha um tamanho consistente para forçar o cadeado. Iorveth sempre foi resistente à ideia da existência de deuses, mesmo os élficos, mas a chegada daquele rato em momento tão oportuno mais parecia uma providência divina.

Sem dinheiro, os guardas estavam cada vez mais relapsos, vigiando muito pouco o presídio. Todos os dias, pelo menos um deles era levado para a Sala de Tortura, onde tomavam uma surra rápida, nada mais. Nem disposição para batê-los os guardas tinham mais. Preferiam deixá-los à míngua, pois cortaram comida e água do lugar havia semanas. Pareciam satisfeitos em notar, durante os espancamentos, que os presos estavam cada vez mais magros.

Para sobreviver à tamanha provação, Iorveth e Elendil passaram a beber água proveniente das goteiras, mas na última semana sem chuva, os elfos precisaram beber a própria urina. Claro, cada um bebendo sua urina, como se tal coisa fizesse diferença. O bardo Argalad provou-se resistente à idéia, não conseguindo ingerir uma gota sequer, vomitando ao menor contato em sua garganta. Não demorou para que adoecesse. Delirando de tanta sede, Argalad acabou por beber. Ele ainda estava convalescente quando o rato chegou. Sequer comemorou o tamanho do rato, que mais lembrava um pequeno castor da Floresta de Brokilon.

—Limpo. – disse Iorveth, com o dedo em mãos. Elendil parecia afoito.

—Tomara que dê certo.

—Se isso não der certo?

Iorveth colocou o osso no cadeado. Elendil fechou os olhos e franziu o cenho, murmurando algo na Língua Ancestral que remetia à alguma prece outrora esquecida. Por fim, o caçador ouviu um estalo. Sem coragem de abrir os olhos, Elendil esperou. O som do portão a se abrir fez seu coração disparar, forçando o elfo a abrir seus olhos verdes. Foi brindado pelo olhar vitorioso de Iorveth e a porta da cela aberta.

—Conseguimos!

—Shiuu! Temos que tomar cuidado com os guardas. Vá chamar Argalad.

Elendil aproximou-se de Argalad, deitado e fraco na cama. Sacudiu os ombros dele. Nada. Por fim, devido à urgência das circunstâncias, o elfo foi mais agressivo e deu um estalado tapa no rosto do bardo, que imediatamente despertou.

—Ah, mas que porra foi essa?

—Sou eu, caralho. Elendil.

—Puta merda, precisava me bater com tanta força? – resmungava o bardo, sonolento.

—Sim, é a força de uma coisa chamada Liberdade.

O bardo arregalou seus olhos. – Quer dizer que... O osso, ele...

—Sim, agora mexa essa sua bunda gorda, quero dizer, magra, e venha conosco. Com cuidado.

Iorveth já os estava apressando do lado de fora. Com cuidado abriu mais a porta. Percebeu que não havia ninguém naquele corredor. Nem guardas nem presos. Todos que ocupavam as celas em seu corredor estavam mortos. Iorveth sabia que não demoraria até que eles fossem os próximos.

Sendo líder dos Scoia'tael, Iorveth sabia como andar como uma sombra, sem fazer ruído. Mesmo sua respiração era inaudível ao ouvido humano. O problema é que ele estava acompanhado de outros dois elfos que não tinham a experiência nem a habilidade dele em ser furtivo. Elendil era caçador, portanto deveria saber como ser discreto para não afugentar animais, mas estava tanto tempo preso que ele deveria estar enferrujado. E Argalad... Esse Iorveth sabia que seria um desastre ambulante em termos de furtividade.

—Me acompanhem. E tentem me imitar. – sussurrou Iorveth, sendo assentido pelos dois.

Andando agachado para evitar ser visto, Iorveth passou pelos corredores. Passou perto de uma mesa, onde um guarda dormia profundamente, enquanto outros dois guardas jogavam cartas. Todos pareciam despreocupados. Claro, com a bagunça que estava a Teméria, todos eles estavam com seus salários atrasados, estando ali apenas para não saírem como desertores. E claro, cumprindo seus papéis de vigilantes da pior forma possível.

Mas quando já próximo das escadas Iorveth acabou surpreendido por um “velho conhecido”: o Troll da Fortaleza.

—Puta que pariu. – exclamou Argalad, ao ver o troll obstruindo a única saída, pateticamente segurando uma tocha e cantando uma cantiga militar temeriana, com mais orgulho que aqueles soldados temerianos já cantaram em alguma vez na sua vida.

—O que faremos? – desesperou-se Elendil.

Do que sabia de trolls, Iorveth se lembrava de conversas com o anão Zoltan Chivay sobre algumas vezes em que o bruxo Geralt de Rívia precisou enfrentar um troll. Boa parte delas não acabou no fio de uma espada. Trolls eram seres cientes, de modo que Geralt não necessariamente os matava. Por vezes, bastava negociar e ter tato com eles, para chegar a um comum entendimento. Contratos de Troll, por vezes, podiam ser resolvidos sem sequer Geralt desembainhar sua espada. Bastava entender o comportamento do troll, apontar uma alternativa, convence-lo a segui-la e pronto. Tudo resolvido e mais ouro para o bruxo.

—Deveríamos procurar uma espada ou...

—Não, nada de espadas. – disse Iorveth, por fim. O elfo ergueu os braços e se aproximou do troll, que logo se alarmou com sua presença.

—Prisioneiro não estar na cela. Prisioneiro voltar.

—Mas quem disse que sou um prisioneiro?

—Cascudo saber prisioneiro. Prisioneiro nunca vestir sapato.

—Na verdade... – olhou Iorveth para seus pés descalços. – Eu perdi meu sapato.

—Perder? – o troll parecia confuso. Iorveth sentiu que estava indo bem.

—Sim. Por isso estou descalço. Estou procurando meu sapato e não estou achanado.

O troll começou a coçar sua cabeça.

—Acho que Cascudo comer seu sapato.

—O quê? – fingiu Iorveth.

—Cascudo gostar de sapato. Bom para sopa. Hmmmm... Delícia. Se sujo, mais melhor.

—Então você comeu o meu sapato?

O troll se inquietou.

—Cascudo arrependido. Cascudo não fazer mais isso, Cascudo prometer a Comandante, mas Cascudo comer assim mesmo... Cascudo mau... Cascudo mau...

Para horror de Iorveth, o troll começou a bater com sua cabeça na parede do presídio, com violência. Agora o elfo entendeu porquê sua cela foi destruída. Decerto algum rompante de raiva ou culpa daquele troll desastrado. Percebendo que o troll não iria cessar com sua punição, Iorveth acenou para que os demais o seguissem. Os três apressaram-se quando perceberam que o castigo que o troll estava provocando a si chamou a atenção de todos os guardas, decerto porque já sabiam do comportamento estranho e destrutivo do monstro.

Estavam próximos do portão quando foram vistos.

—Prisioneiros fugindo! – gritou um guarda. Entretanto, estavam todos os demais ocupados com o troll para aperceberem do que estava acontecendo. Quando Iorveth começou a pular o muro, ouviu o primeiro som do sino de alerta. Seu coração começou a disparar. Sentado à beirada do muro, Iorveth sentiu um forte rompante de simplesmente deixar aqueles dois elfos imprestáveis para trás e seguir pela floresta, reduzindo suas chances de ser pego. Mas algo o deteve. Especialmente ao olhar o semblante expectante de Argalad e Elendil. Desses que pareciam ler o que se passava na mente de Iorveth e temendo que o elfo escolhesse a opção mais fácil.

—Segure a mão dele, Iorveth. – pediu Elendil, colocando Argalad, o mais desajeitado deles, em suas costas. O líder dos Scoia'tael tomou o bardo pela mão, deixando apenas Elendil no presídio. Mais ágil que o bardo, Elendil deu um pulo e teve seu antebraço segurado por Iorveth. A magreza dos tempos difíceis tornou a tarefa fácil, e logo os três caíram do muro. Correndo em direção à floresta, Iorveth já conseguia ouvir ao longe o som dos cães e dos guardas, soando mais desesperados por terem descoberto que dentre os fugitivos, estava ninguém menos do que Iorveth. O elfo sorriu, vitoriosamente. Os dh’oines não aprendem. Se o queriam fora de combate, deveriam tê-lo matado há muito tempo.

O som de cavalos fez os elfos apressarem o passo. A floresta não estava longe. Em outros tempos, um Iorveth bem-alimentando, saudável e gozando de boa saúde alcançaria a mata, mas não um Iorveth magro, cansado e torturado quase todos os dias. O som dos cascos de cavalo a golpear o solo se aproximavam a cada segundo. Iorveth tentava apertar o passo, mas não conseguia. Aquela velocidade era a melhor que seu corpo maltratado pelos dh’oines era capaz de lhe fornecer, sob circunstâncias tão desfavoráveis.

—Iorveth, cuidado!

O aviso de Elendil não foi suficiente para impedir que Iorveth fosse golpeado por uma espada, lançada ao ar por um dos homens de cavalo. O elfo ainda teve reflexos o bastante para desviar da espada, mas não pôde evitar que a lâmina cortasse levemente o seu ombro. Em sua acrobacia, Iorveth acabou por cair no chão, sendo alcançado pelo homem de cavalo, que com desgosto o elfo constatou que era Orlo.

—Não há Rei que impeça que um prisioneiro foragido seja morto em sua captura. – decretou o açoitador, ainda montado no cavalo, apontando seu montante para Iorveth, sentando ao chão e encarando os olhos de seu torturador.

—Esperei muito tempo por isso, Iorveth. A chance de mata-lo. – decretou Orlo, com ódio.

—Eu também esperei. – disse Iorveth. Fixando o olhar em Orlo, o elfo começou a reunir um monte de terra, sem que fosse notado pelo humano. O ódio parecia ser capaz de cegá-lo.

Orlo ergueu a espada um pouco mais. Do modo que estava fazendo, e da força que ele sabia que tinha, Iorveth pôde perceber que, sob aquele ângulo, o temeriano conseguiria cortar sua garganta, ou no mínimo, com um pouco de sorte, decapitá-lo. Um sorriso vitorioso se desenhou por baixo da barba espessa do torturador. Seus olhos brilhavam em raiva.

—E no fim das contas – caçoou o temeriano – você não viverá o bastante para ver o fim da sua raça.

—Não poderia concordar mais, dh’oine. Ainda mais quando estou no meu elemento. – assentiu Iorveth. Simulando dizer mais alguma coisa, Iorveth acabou por lançar terra à cabeça do cavalo, fazendo o animal se descontrolar, tomado pelo susto. Orlo caiu no chão, enquanto seu cavalo começou a galopar floresta adentro. Pegando uma pedra do chão, Iorveth lançou-se contra Orlo, que apesar de ainda estar caído do chão conseguiu rolar a tempo de evitar ter sua cabeça esmagada pela pedra nas mãos do elfo. Pondo-se de pé e arfando num misto de raiva e surpresa com o desenrolar dos acontecimentos, Orlo sacou uma adaga.

—Eu vou arrancar sua cabeça, Iorveth! – bradava Orlo, furioso, enquanto dava passos, sendo observado por Iorveth. – Vou fazer o que aquele filho da puta do Vernon Roche jamais conseguiu!

—Estou curioso para vê-lo tentar.

Orlo riu. – Olhe só para você, seu elfo de merda. Nem mesmo uma arma você tem e acha que pode me vencer assim.

O olho de Iorveth notou uma movimentação na mata. Era Elendil, ele sabia. O bardo Argalad jamais se moveria na mata com tamanha discrição, mas sim um caçador experiente.

—Tem razão. Mas eu tenho algo melhor.

De repente, Elendil saltou sobre Orlo, detendo o homem pelo pescoço. Orlo tentou ferir o elfo com sua adaga, mas não conseguiu, pois Elendil o deteve com a outra mão. Aproveitando-se da distração de Orlo, Iorveth tomou o montante que estava sobre o chão e cravou-o na barriga de Orlo, fazendo o homem urrar de dor.

Enquanto contemplava Orlo prostrado de joelhos, observando com impotência a sua vida se esvaindo em sangue, uma breve cena se passou na cabeça de Iorveth.

“Eu te venci uma vez, e posso te vencer de novo. Lembre-se disso.”

Como se pudesse ver em Orlo os olhos de seu maior inimigo, Iorveth pôs fim à agonia de seu torturador, retirando com truculência a lâmina da espada de seu abdome e acertando o golpe final, na garganta. Elendil o observava com asco o sangue de Orlo manchar a grama, enquanto Iorveth tremia de ódio. O caçador de cervos percebeu que o golpe de Iorveth transbordava um ódio muito maior do que o aquele sentia por Orlo, mas decidiu não comentar sobre isso.

—Vamos. – disse Elendil, por fim, após ouvirem os latidos de cães, já próximos.

II

Já em seu território, a viva e feroz floresta, Iorveth passou a subir nas árvores, usando os galhos delas para se esconder. Ocultado em meio a copa das árvores, Iorveth assistia prazerosamente aos dh’oines procurando tolamente pelos arbustos, enquanto cães farejavam, inutilmente. Ao perceber que já estavam adentrando em floresta fechada, os soldados recuaram, soltando todo o tipo de palavrão imaginável. Afinal, poucos homens na Teméria se atreviam a enfrentar um Scoia'tael no ambiente que era sua especialidade.

A noite já era alta quando havia apenas Iorveth, Argalad e Elendil na copa das árvores. Livres dos humanos, Argalad bocejou.

—Parece que eles foram embora. – disse o bardo.

—Não estão em seu elemento. Sabem que, se lutarem dentro de uma floresta, será uma luta perdida. Este é o lado bom de estarmos com um Scoia'tael. – observou Elendil.

—E agora?

—Não sei quanto a vocês, mas eu vou para Vergen. – disse Iorveth. Elendil riu.

—Olhe só para você, Iorveth. Faminto, cansado, magro e ferido. E desarmado, também. Não chegaria a Vergen vivo. E se chegasse, o que faria? Vergen a esta altura já caiu. Os rebeldes inumanos foram destroçados. Tenho certeza de que esses seus amigos Scoia'tael debandaram. Especialmente com a notícia de sua prisão, que decerto já chegou aos ouvidos deles.

Iorveth estava contrariado. Sabia que havia verdade nas palavras de Elendil, apesar do tom sempre mordaz dele no que tange os Scoia'tael.

—Se for para encontrar minha morte, que seja assim. Lutando ao lado de meus irmãos. Não apodrecendo em uma cadeia. Além disso, Scoia'tael é a minha vida. Não me resta outro lugar para ir.

—Não seja estúpido. É claro que você tem lugar para ir. Minha casa em Lathlake, por exemplo.

Iorveth arregalou seu único olho.

—Está oferecendo ajuda? A um Scoia'tael?

Elendil bufou. – Você me ajudou, em primeiro lugar. Jamais teria a sua destreza e habilidade para abrir a fechadura daquela porta com um osso de rato. Não estaríamos aqui, livres daquela pocilga imunda, sem você. Na verdade, não daria uma semana para que estivéssemos todos mortos.

—Concordo. – assentiu Argalad, enquanto Iorveth ficou em silêncio.

—E você, bardo? Vem comigo?

—Eu iria, mesmo que você não me convidasse.

—Mas que atrevido! – exclamou Elendil, arrancando um galho e fazendo o bardo cair da arvore. Um rompante de risos atravessou Iorveth, diante do bardo pateticamente no chão. A cena, embora pouco engraçada, fez o elfo cair na gargalhada, como há muito não fazia. Este era o que o sabor da liberdade provocava nas pessoas.