Se cada um de seus inimigos lhe desse um Oren, Vernon Roche poderia comprar a Teméria inteira e até mesmo suas terras vizinhas. E se cada um de seus amigos viesse para enterrá-lo, ele teria de fazê-lo com suas próprias mãos.



(dito popular temeriano)

I

O virote da besta acertou o pobre coelho há cerca de vinte metros de distância. Um bom tiro, impressionou-se Vernon Roche. Até que foi bom ter roubado essa besta. Ela não era das melhores, mas era útil. E a mira de Roche, que nunca foi das mais impressionantes, parecia se desenvolver a cada dia que se passava. Ou ele estava com sorte, ou a necessidade de usar uma besta o estava tornando melhor nisso.

—Coitadinho...

—Anais! – esbravejou Roche ao ver a menina perto dele. – Eu não te disse para ficar no acampamento?

Há uma semana na estrada e em companhia de Anais, Roche já sabia que a menina, como provavelmente qualquer criança, simplesmente tinha horror ao vê-lo matar animais, mesmo que para alimentação própria. Na primeira vez em que Vernon Roche caçou um coelho, Anais estava em sua companhia e pôs-se a chorar diante do animal morto. E para completar, a menina simplesmente se recusou a comê-lo. No segundo dia, Roche decidiu deixa-la no acampamento e ir ele mesmo sozinho atrás da caça, e lá mesmo, longe dela, esfolar o animal, trazendo só a carne para ser posta na pequena panela onde ele preparava as refeições. A menina se fartou. Desde então, o temeriano preferiu deixa-la por lá.

—É que estou sentindo frio.

—Frio? Mas está um calor dos diabos! – reclamou Roche. – Por que não pegou o meu cobertor, então?

—Eu peguei, mas mesmo assim, estou com frio.

Estranho. Roche notou que a menina estava realmente tremendo e que suava. E ele não estava exagerando sobre o calor. O próprio estava suando como um porco debaixo de sua pesada farda dos Listras Azuis. Frio era a última coisa que alguém poderia sentir em um dia quente e ensolarado como aquele.

Colocando sua mão sobre a testa e pescoço dela, Roche notou que a temperatura da menina estava mais alta que o normal.

Febre.

II

Anais estava em seus braços, febril e tremendo de frio. Vernon Roche não sabia o que fazer. Claro, febre e todo o tipo de doença era algo que acontecia entre seus homens. Ves sempre sabia o que fazer, qual remédio indicar e qual tratamento os Listras Azuis deveriam seguir. Em sua vida à serviço no Exército, Roche acabou por adquirir algum conhecimento medicinal, mas ele não tinha nada em sua bolsa que pudesse apaziguar a enfermidade da menina. Anais, que há três noites tossia com pouca frequência, agora tossia quase o tempo todo. Ele não deveria ter ignorado os sinais.

Agora, a última esperança da Teméria estava em seus braços, doente e sem qualquer tratamento adequado à vista. Correndo o risco de morrer sem jamais ter tido a oportunidade de ser coroada e assim livrar o povo temeriano da bagunça a qual provavelmente estavam submetidos, sob o jugo dos nobres.

Culpa e horror passava pela cabeça de Roche, enquanto ele trazia a menina Anais em seus braços, vagando sabe-se lá para onde. Ele exigiu muito da menina. Além de ser uma viagem dura e difícil, era também uma viagem sem destino. Para onde ele estava indo, afinal? Ele não tinha ninguém com quem contar. Ele sequer sabia se sua mãe estava viva, seu pai era um completo desconhecido, e todas as mulheres com que ele se relacionara – Brigida, principalmente – o desprezavam. Ele não poderia culpa-las. Sempre agiu ao redor delas como um verdadeiro calhorda, e muitas vezes propositalmente. Aliados? Havia Ves, a quem o temeriano poderia contar com sua vida, mas a própria era tão vulnerável e solitária como ele. Além disso, ele ainda não estava pronto para encará-la depois de ter fracassado em parte de sua vingança pela morte dos Listras Azuis – e também, amargurava-se Roche, pelo estupro dela. Não. Definitivamente, Ves não era uma opção.

Um trovão cortou os pesarosos pensamentos de Roche.

-Chuva. Bem a porra que eu precisava.

E logo a chuva veio. Não era forte, mas o bastante para piorar o estado de saúde de Anais, Roche sabia. Num ato de desespero, o temeriano atirou sobre ambos um cobertor e caminhou floresta adentro, arrastando o cavalo, que relinchava assustado pelos trovões. Após contar uma história sobre o bruxo Geralt de Rívia – claro, sem a parte dos cadáveres e sangue, ou seus envolvimentos carnais com feiticeiras -, Anais decidiu chamar o animal de Geralt. O temeriano só esperava que o bruxo jamais soubesse que um cavalo recebera seu nome.

-Acalme-se, Geralt! – pedia Roche, quando o animal ameaçou se erguer, muito assustado com o clarão dos trovões. – Cavalo estúpido! Fique calmo!

Mais alguns minutos caminhando, Roche encontrou uma caverna. Seu coração disparou. Finalmente um abrigo decente para se proteger da chuva. Apesar das recomendações de Geralt sobre não se abrigar em cavernas, pois costumam ser covis de monstros como nekkers e aracnas, o temeriano apressou o passo para alcança-la. Precisava se arriscar.

Roche decidiu ficar na extremidade da caverna, apenas o suficiente para se proteger da chuva. Não queria colocar sua sorte tão à prova assim, indo se embrenhar demais naquele lugar. O temeriano recostou Anais sobre a parede da caverna. Ela ainda tremia e tossia sem parar, mas estava acordada, embora febril e com o semblante abatido.

-Onde estamos? Em casa? Cadê a mamãe?

Ela está delirando.

-Está tudo bem. – preferiu dizer Roche. A menina fechou os olhos repentinamente, quase caindo ao chão se não fosse por Roche a detê-la. Ela desmaiou, concluiu Roche com desespero, ao ver que a menina não reagia quando ele a agitava pelos ombros.

-Anais! Anais! Acorde! – gritava Roche, com grave desespero.

É tudo culpa minha! O que Foltest deve estar pensando de mim agora? Sua filha está morrendo, bem diante de mim, em meus braços, e eu não consigo fazer nada. Não posso salvá-la. Eu sou um incompetente. Fraco. Frouxo.

—Foltest... Eu falhei. – murmurava Roche, abraçado fortemente à menina, abatido e amargurado.

III

—Está tudo bem?

Alguém despertou Roche de forma nada agradável. Um agitar nos ombros. O militar detestava isso. Como instinto, ele correu para a adaga de sua cintura e logo a desembainhou. Apenas deteve-se quando percebeu que era uma mulher quem cometera tal audácia.

—O-O-O quê? – piscava o temeriano, confuso. Logo ele sentiu falta de Anais em seus braços. Porém, antes que o desespero lhe atingisse, ele notou que a menina estava deitada diante de si, coberta com um grosso coberto de pele, que não era dele.

—Eu estava na caverna quando ouvi alguém gritando umas coisas meio... Obscenas de se repetir, eu espero que não me leve a mal. Fiquei com medo de ser um bandido, então fui verificar. Encontrei você abraçado a essa menina. Logo percebi que era você quem estava murmurando aquelas coisas. Vi que a menina está doente, com febre, então eu a tirei de seus braços e dei a ela um elixir de pequena-cicuta, para tentar abaixar a febre, ao menos.

—O que estava fazendo na caverna?

—Colhendo cogumelos.

Roche saiu de seu estado de confusão delirante e percebeu quem era a moça. Vestia uma capa, que ocultava as roupas e boa parte da cabeça, mas deveria ser uma herbalista, a julgar por seu tom e seu conhecimento em plantas e ervas. Havia também um cheiro que o lembrava de remédios. Sabendo que feiticeiras raramente se atreveriam a sujar seus belos vestidos e entrar em uma caverna atrás de plantas e cogumelos, esta mulher deveria ser mesmo uma herbalista.

A herbalista sentou-se diante de Roche, acendendo uma pequena fogueira com grande facilidade. Roche notou que suas mãos eram pálidas e pequenas, enquanto ela as aproximava do calor das chamas. Havia pequenas fissuras, semelhantes a queimaduras. Decerto, ossos do ofício em lidar com ervas.

—Desculpe, mas... Que coisas obscenas eu disse?

Com os olhos focados nas mãos próximas ao fogo, a mulher riu.

—Quer realmente saber?

—Não sei. – respondeu Roche, francamente. A mulher parecia não se importar com sua dúvida.

—“Filho da puta”. Você repetia isso com grande horror.

Roche meneou com a cabeça. Provavelmente, sonhou com a sua infância outra vez. “Lá vai Vernon Roche, o filho de uma puta imunda”, ofensas do tipo que ouvia dos demais meninos, quando era agredido por sua mãe ser uma prostituta barata de rua.

—Não fique chateado com isso. – disse a mulher. Roche assentiu.

—Você é uma herbalista?

—Bem observado. – disse a mulher, com humor. – Sim, eu sou. Estava indo embora, mas a chuva me deteve. Mal dá para ver um metro diante de meu nariz por causa dessa cortina de água. Estou aguardando ela estiar um pouco.

—Entendo.

Uma forte tosse de Anais interrompeu a conversa. Roche observou a menina, preocupado. Apesar de aquela misteriosa mulher lhe oferecer companhia e conversa agradável, Anais permanecia doente.

—Ela precisa de tratamento adequado.

—Pelos meus cálculos, estou há dias de distância do vilarejo mais próximo. Temo que...

—Tire tais pensamentos da cabeça. Leve-a para minha casa.

Surpreso pelo oferecimento da mulher, Roche arregalou os olhos.

—Mas...

—Sem “mas”. Como pai, você deve pensar no bem-estar dela.

Pai? A ideia de ser chamado de pai da menina Anais causava estranheza a Roche, mas sabendo das circunstâncias altamente perigosas, o soldado preferiu não desmentir.

—Eu não tenho muito dinheiro.

—Acha que vou dar as costas a uma criança doente e indefesa, em meio a essa tempestade, porque o pai dela não pode me pagar? Francamente, eu não sei a que tipo está acostumado a lidar para presumir tamanha crueldade, mas garanto que não sou assim. Além disso, não pode ficar aqui por muito tempo. Esta caverna é repleta de nekkers, e eles não hesitarão em atacar a você e a sua filha assim que sentir o cheiro de vocês, que aliás, é bastante... Chamativo.

Chamativo?! Que bela forma de chamar-me de imundo, pensou Roche. Ele também não poderia culpa-la, pois o próprio estava há quase dois meses sem tomar banho. Pelos cálculos de Roche, ele alcançaria um córrego em dois dias, e assim, sua imundície teria fim. Pena que ela o encontrou antes disso.

—Então como esteve na caverna? – perguntou, curioso e procurando ignorar o último comentário da mulher.

—Antes de entrar, eu lancei uma bomba de enxofre queimado, que costuma afastá-los por algumas horas, mas tempo o bastante para coletar o que preciso. Mas em breve, o efeito passará. Enfim, a chuva cessou. Creio que é hora de irmos. Minha casa fica há poucas horas daqui. Se nos apressarmos, sequer iremos nos molhar. – ela disse, estendendo uma mão para ajudar Roche a se levantar.

Que escolha eu tenho, afinal?

—Está bem. - ele assentiu, tomando a mão da moça e assim conseguindo se levantar.

Roche hesitou em subir em seu cavalo, ao notar que a mulher estava a pé. O temeriano não era lá o homem mais gentil e cavalheiro do mundo, mas sabia que seria indelicado de sua parte prosseguir a cavalo e deixar uma mulher a pé. Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, a mulher o impediu.

—Não tenho problemas em prosseguir a pé. – ela disse. – Desde que minha égua ficara prenha, fui forçada a andar mais. Além disso, seu cavalo está exausto. Deve estar há muito tempo na estrada.

—Sim, tem razão. – assentiu Roche, puxando o animal pela rédea, que o acompanhou obedientemente. Em seu colo, deitada e dormindo sobre seus ombros, ainda febril, estava Anais. Roche conseguia ouvir sua respiração irregular, e mesmo algumas tosses abafadas.

—Qual o nome dele? – perguntou a moça, afagando o animal e retirando-o momentaneamente de suas preocupações.

—Geralt. – disse Vernon, com grande contragosto. Não se sentia confortável em dar o nome do bruxo que tanto lhe ajudara a um cavalo qualquer. Sentia-se ingrato por isso.

—Um nome incomum para um animal. – ela disse, em um tom divertido.

—Concordo. Foi escolha dela. – disse, gesticulando com a cabeça para Anais.

—Aliás, sequer nos apresentamos. Meu nome é Turiel. E o seu?

—Vernon. – disse, nem mentindo, nem falando plenamente a verdade.

—E sua filha, como se chama?

—Anya. – disse Roche, mencionando o primeiro nome feminino que veio à sua cabeça. Curiosamente, foi de sua mãe, a quem ele não pensava há muito tempo. Os dois seguiram por uma caminhada sem mais conversar. Era curioso, pensava Roche, no quanto essa estranha mulher parecia confiar nele. Ele, que carregava uma espada, uma besta e uma maça nas costas e na cintura e vestia uma farda militar fedida a suor e sangue de gente. Sim, é bem verdade que ele estava com uma menina pequena, com idade para ser sua filha, o que propiciava claras interpretações sobre isso, mas ainda assim... Que tipo de gente iria se preocupar com estranhos em tempos como esse? Algo deveria estar errado.

Ou talvez, pensou Roche, ele não estava acostumado ao altruísmo.

—Estamos chegando. – disse Turiel, cortando o silêncio daquela caminhada, onde tudo que se ouvia eram as tosses de Anais. Os olhos de Roche chegaram a uma pequena choupana, no meio da floresta, que parecia já ter visto dias melhores. Ainda assim, era melhor do que dormir ao relento. Roche animou-se com a perspectiva de sentar-se sobre uma cadeira ou sofá confortável, aquecer seu corpo próximo a uma lareira, comer algo bem temperado – quem sabe um trago de licor ou cerveja, se não fosse demais – e, talvez, dormir decentemente sem se preocupar com lobos ou qualquer animal perigoso da floresta...

A mulher abriu a porta, adentrando à sua casa de capa e tudo, tendo Roche atrás de si, carregando Anais, que mais parecia desmaiada que adormecida. Logo a friagem do lado de fora deu lugar ao calor de uma casa pequena, mas confortável. Como Roche imaginara, havia sim uma lareira na sala. O calor do ambiente era algo acolhedor. Uma sensação de alívio e segurança apoderou-se do temeriano, que deixou escapar um suspiro relaxado.

Cheiro de ervas e extratos de diversos tipos parecia avisa-lo de que aquela era, sem dúvida, a casa de uma herbalista. O barulho de algo fervendo também chamou a atenção de Roche. A perspectiva de comida bem cozinhada e temperada acabou por provocar uma reação instintiva em si: seu estômago roncou, e alto. Envergonhado, o temeriano só torceu para que a herbalista misteriosa não tivesse escutado. Ela, que adentrara para um cômodo onde supostamente era a cozinha e estava a tal panela fervendo, pediu que ele colocasse a menina sobre o sofá. Roche a obedeceu.

—Ela ainda está com febre. – disse, após medir a temperatura da menina. Ainda atento à Anais, que apresentava ao menos um semblante tranquilo de quem estava tendo bons sonhos, o temeriano, nem notou a mulher voltar a si.

—Será necessário retirar as roupas dela, estão encharcadas pela água da chuva.

Quando Roche voltou seus olhos para a mulher, algo o deixou sem fôlego.

Aquela mulher... Pela primeira vez, ele a vira sem a capa, conseguindo ver seu rosto por completo. Roche pôde confirmar que o pequeno vislumbre que ele teve naquela caverna escura estava correto: ela tinha belas feições de rosto. O problema consistia em suas orelhas.

Pontudas. Orelhas de elfo.

Ela era uma elfa.