Um dia, eu estava cavalgando e o que eu vi? Uma ponte. E embaixo dessa ponte estava um troll exigindo que cada transeunte o pagasse. Aqueles que se recusavam tinham uma perna quebrada, às vezes ambas. Então, eu procurei o Magistrado: "Quanto está custando o Contrato por esse troll?" Ele ficou espantado. "Do que você está falando?", ele perguntou, "Quem consertará a ponte se o troll não estiver lá? Ele a conserta regularmente com o suor de sua testa, ele trabalha de verdade e com qualidade. É mais barato pagar o pedágio..."


(relato do bruxo Geralt de Rívia)

I

Iorveth acordou sozinho. Mais uma vez, não tivera um sonho bom. Nada comparado a tranquilidade de sonhar com um banquete à sua disposição, repleto de bebida e comida, uma fartura que o elfo jamais experimentara em sua vida e que de vez em quando se fazia presente em seus sonhos. Agora, preso naquela prisão temeriana, tudo que Iorveth sonhava envolvia fogo. Destruição. O tilintar das espadas, gritos de agonia, todos misturados freneticamente, em imagens borradas com sangue. Nenhum dos rostos presentes em seu sonho era reconhecível, o que o elfo enxergava como uma espécie de dádiva.

Os sonhos ruins começaram quando uma notícia em particular chegou à sua cela, na semana passada, vinda da boca de um guarda desdentado e zombeteiro: Vergen caiu. Os rebeldes perderam e foram esmagados. A princípio, o elfo ignorou. Achou que era um blefe, algo para enfraquece-lo, quebra-lo. Mas ao ouvir de outro guarda mais e mais detalhes, o líder dos Scoia'tael perdeu suas esperanças. Todo seu trabalho em prol da liberdade dos não-humanos, perdido. Destroçado pelas espadas impiedosas dos dh’oine.

E ainda havia Saskia. Iorveth não se perdoava por ter sido incapaz de libertá-la da maldição posta por Phillipa Eilhart. Em seu interior, Iorveth sabia que a ausência de Saskia, muito provavelmente agora voando sem rumo pelos céus do Norte e comendo ovelhas e vacas aleatórias, foi o fator determinante para a queda dos rebeldes. Saskia era mais que uma guerreira, mas um símbolo que inspirava confiança e esperança em tempos melhores. Saskia sequer precisava se transformar em um Dragão para tornar os rebeldes mais fortes. Ela tinha espírito e grande capacidade de liderança. Ela era a liderança perfeita para os não-humanos. E tendo os rebeldes que lutar sem ela...

A porta de sua cela se abriu. Quando isto acontecia, Iorveth nem mesmo era brindado por um pouco de claridade, pois sua cela era subterrânea. Tudo que o elfo era capaz de ver consistia em Orlo e seu colete manchado de sangue inumano, pronto para leva-lo ao nebuloso Reino de Dor provocado por seus instrumentos como grilhões, ferro quente, chicotes e tudo o mais que sua imaginação extremamente sádica não pudesse prover.

—Hora da diversão, elfo.

Iorveth agiu com a mesma atitude inabalável de quem estava indo a um tedioso passeio no jardim, não a uma sessão de tortura. Sabia que agir histericamente só deixaria dh’oines como Orlo ainda mais satisfeitos, e isso era algo que o elfo não estava disposto a entregar. Não enquanto ainda tivesse forças.

Orlo jamais estava sozinho – nem era bobo pra tal. Dois guardas logo se juntaram a ele, puxando os grilhões de Iorveth e o acorrentando com a cabeça virada para a parede. Desta vez, nem foi necessário rasgar sua camisa, ainda salpicada de sangue da última tortura.

—Espero estar vivo para ver o dia em que o último elfo será riscado da face da Terra. – disse Orlo, enquanto recuperava o fôlego.

—Eu não esperaria.

Para abismação de Orlo, Iorveth o respondeu daquela vez. Sim. Depois de dias de tortura, o elfo resolveu abrir a boca para deixar sair de seus lábios algo que não fosse em sua estúpida Língua Ancestral. E para retruca-lo.

—Resolveu falar agora, elfo?

—Eu não esperaria por este dia – continuou Iorveth, ignorando Orlo – porque vocês, dh’oines, tem uma vida extremamente curta. E mesmo se tivesse uma vida tão longa quanto à de um elfo, esperaria até o seu último dia, para dar-se conta apenas de seu fracasso.

Orlo riu.

—É verdade. Vocês, elfos, podem viver trezentos, até quatrocentos anos, mas não vivem para sempre. E vocês não estão conseguindo se reproduzir como deveria. Da última vez que tive notícias de Dol Blathanna, aquele Reino nilfgaardiano estúpido de vocês...

—Aquele não é o meu reino. – retrucou Iorveth.

—Tô pouco me fodendo para isso, elfo. E não me diga que não é, pois vocês, Scoia’tael, colocaram em risco suas malditas orelhas pontudas na guerra por isso. Por um reino independente e élfico governado por uma feiticeira.

Iorveth sentia a raiva de Orlo sendo descarregada em sua pele, a cada chibatada.

—E Nilfgaard ainda cometeu a loucura de ceder um bom território para vocês, e mesmo assim, isso não parece ser o bastante, pois o seu bando permanece a pegar em armas e queimar e saquear vilarejos. Mas do que mesmo estávamos falando mesmo? Ah sim. Da sua extinção, que você tanto nega. Em cinco anos de reinado de Dol Blathanna, apenas doze malditas criancinhas élficas nasceram. Doze. Milhares de elfos vivendo por lá e vocês só pariram doze crianças em cinco anos. Sabia que, se parar para pensar, só eu devo ter pelo menos uns dez filhos espalhados por toda a Teméria? Quão irônico, não é? Nem para fazer filhos a sua raça imprestável serve.

Um dos guardas se assustou.

—Orlo, irá acabar matando-o desse jeito!

—Pois que se foda! – esbravejou Orlo. – Será um Scoia’tael a menos para saquear vilas, para desvirtuar mulheres, para degolar crianças, para queimar plantações e matar os nossos animais! Essa escória merece morrer! Mont, eu quero que o vire de frente para mim. Quero que esse elfo me encare nos olhos enquanto eu o torturo.

—Orlo... – pedia o guarda.

—Faz logo o que eu estou mandando, porra!

—Tá bom, já que insiste...

Iorveth sentiu fortes dores nos ombros e costas, quando o guarda virou suas correntes. O elfo deixou escapar uma careta de dor, mas Orlo estava tão furioso que sequer percebeu o que ele fez.

—Talvez você tenha razão em dizer que eu não estarei vivo o bastante para ver a morte do último elfo. Mas você... Quantos anos ainda lhe restam? Cem? Duzentos? Trezentos? Pois mesmo que reste apenas cinquenta anos de vida, já seria o bastante para ver a extinção da sua raça.

Nos poucos segundos após as palavras de Orlo, Iorveth reagiu. Dando uma forte cabeçada no açoitador, deixando-o tonto a ponto de fazê-lo titubear e quase cair no chão. O susto repentino do guarda ao ver Orlo com o nariz sangrando e atordoado logo se dissipou. Foi apenas uma cabeçada. E tudo isso porque Orlo foi imprudente, se aproximando demais de um dos elfos mais perigosos do Norte.

—Que cabeça dura do caralho tem esse elfo! E pare de me olhar com essa cara de “eu te avisei”, porra! Chama o Dorson aqui, tá na hora de pegarmos mais pesado com esse maldito elfo.

—Orlo, se ele morrer...

—A culpa será toda minha, eu sei. E estou cagando para isso.

De repente, a porta se abriu. Era um homem bigodudo, vestindo uma Armadura com um emblema temeriano bem desenhado nela. Um oficial temeriano, no mínimo.

—Chega dessa putaria, Orlo! – bradou o estranho, com uma autoridade que fez todos os demais guardas se recolherem, mesmo Orlo. – Tá dando para ouvir o seu ataque de pelanca com esse elfo lá da casa do caralho! Chega, porra! Chega! Devolve esse elfo para a cela dele e vá descarregar a sua raiva em um bordel, ou em algum bandido de meia tigela. Não em Iorveth, porra! Ele será enforcado em Vízima, e se morrer aqui, o que vou dizer aos meus superiores? Que meus homens fazem o que querem por aqui?

Houve um breve silêncio, enquanto Orlo ouvia de cabeça baixa as palavras do homem.

—Ponha Iorveth imediatamente de volta à sua cela, antes que eu te coloque em detenção por desobediência. – ordenou o superior, saindo imediatamente da Sala de Tortura.

Quando desatado, Iorveth sentiu o olhar sombrio de Orlo sobre si. Nenhuma palavra foi trocada entre ambos, até que o líder dos Scoia’tael fosse devolvido à sua cela.

—Isso vai ter troco, elfo. Pode esperar. – foi o que ouviu de Orlo, após ser praticamente derrubado para dentro de sua cela minúscula e úmida.



II



As dores das últimas torturas prenderam Iorveth na cama. Saber que os Scoia'tael estavam agora sem líder e sem motivações parecia absorver suas forças, desanimá-lo. Sua cela era completamente fechada, o que o impedia de saber quantos dias haviam se passado desde sua chegada até a Fortaleza. No entanto, Iorveth contou seis incursões à Sala de Tortura. Em sua curta caminhada escoltada até lá, Iorveth passava rapidamente por uma pequena janela gradeada. A julgar pelos raios de sol que escapavam das grades, era sempre dia, o que fez o elfo calcular que ele estava sendo torturado pelos dh’oines uma vez por dia, pelo menos. Logo, há quase uma semana Iorveth estava privado de sua liberdade e torturado como uma mera diversão aqueles dh’oines que exerciam seu ofício com profundo prazer.

Antes que o elfo pudesse resmungar sobre uma goteira insistente que permanecia a cair sobreo dedão de seu pé esquerdo naquela cela úmida e apertada, um estrondo o fez sobressaltar-se. Pondo-se sentando na cama, alerto, Iorveth sacudiu sua cabeça, ao notar que poeira começava a cair do teto. As pedras do teto começaram a tremer, e com grande agilidade, o líder Scoia'tael saltou da cama, esquivando-se de um enorme pedregulho que por uma fração de segundos quase caiu sobre sua cabeça.

Ainda arfando em surpresa, o elfo pôs-se de pé. Será que os soldados se cansaram de usa-lo como boneco de tortura e resolveram usar um pedregulho para pôr fim à sua estadia na Prisão? Iorveth duvidava que fosse verdade, mas ao mesmo tempo, em se tratando de dh’oine, tudo era possível. Especialmente agora, que Orlo estava furioso consigo. Mas uma morte rápida não era algo de seu feitio, sabia o elfo.

Iorveth ouviu os guardas agitados, do lado de fora da cela. Era nítido os passos agitados. Um deles gritou “que porra foi essa?”, mas nada mais foi escutado. Iorveth era mantido em um pavilhão isolado da cadeia – não à toa, o mais próximo da Sala de Torturas – de modo que ele não era capaz de ouvir os demais presos, uma parcela deles também sendo Scoia'tael.

Acima de sua cama, Iorveth percebeu que o buraco era grande o bastante para permitir sua passagem. Reunindo o pouco de energia que ainda tinha, visto que passara os últimos dias a pão duro e água, o elfo subiu pelo buraco. Notou que estava em um corredor das celas comuns. No entanto, ao dar as costas, o elfo foi surpreendido por um enorme troll.

—Prisioneiro sair cela! Prisioneiro não pode sair cela! Prisioneiro voltar!

O troll começava a gritar, espernear e não tinha o semblante de bons amigos. Embora fosse pouco experiente com trolls, Iorveth sabia que os trolls eram monstros que, embora perigosos, não necessariamente atacavam gratuitamente. Apenas quando zangados ou contrariados.

—Está bem, eu vou voltar para minha cela. Está vendo? Estou indo para minha cela. – disse Iorveth, dando passos tímidos para outra direção. O troll suavizou suas feições zangadas.

—Prisioneiro voltar. Senão Cascudo zangar.

—Sim, estou voltando... – disse Iorveth, apressando os passos. Quando próximo de um corredor, um dos guardas acabou por ver Iorveth. O elfo recitou, naquele momento meia dúzia de palavrões em seu Idioma Ancestral.

—É o Iorveth! Ele escapou!

—Escapou?! – exclamou o troll, com o semblante de poucos amigos. Logo, o troll estendeu suas mãos pesadas para o corpo esquelético de Iorveth, que tentou escapar em vão.

—Prisioneiro não escapar! Cascudo não deixar!

Estando sob o jugo do troll, Iorveth sentiu uma forte pancada sobre sua cabeça, logo depois de ter tido seu corpo balançado e sentir sua cabeça arremessada contra a dura cabeça do troll de pedra. Nada mais veio aos seus pensamentos senão a escuridão.

III

Não foi desta vez um balde de água fria ou um balde contendo sua própria urina que o acordou. Mas sim, alguém a sacudir seu ombro. Um elfo, notou com um pouco de alívio Iorveth ao abrir seu olho. Sua visão ainda estava turva pela pancada, mas era possível reconhecer as orelhas pontudas como as dele.

-Que bom que acordou. Pensei que havia morrido. Cascudo tem a cabeça muito dura.

-Sim, foi o que percebi. – murmurou Iorveth, alisando o imenso galo formado em sua testa. – Quem é você?

-Elendil. – disse o elfo, de longos cabelos castanhos, olhos verdes e com uma cicatriz na bochecha esquerda. – E você, só pode ser o famoso Iorveth. O Líder dos Scoia'tael.

-Sim, eu mesmo. – disse Iorveth, colocando-se sentado e recostando a coluna dolorida sobre a parede de pedra da cela. – Você também está aqui por ser um Scoia'tael?

O elfo levantou-se, dando alguns passos pela cela enquanto brincava com os dedos das mãos e sem falar diretamente em seus olhos. O típico de atitude de alguém hesitante com alguma coisa, sabia Iorveth.

-Sim e não.

Iorveth franziu o cenho. Não estava com humor para respostas inconclusivas. Ou melhor, jamais teve humor para isso. Ao perceber seu desgosto com a resposta, Elendil tratou logo de encorpar sua resposta.

-Não sou um Scoia'tael. Fui preso por engano, enquanto eu caçava um cervo na floresta para minha esposa, com meu arco e flecha. Disseram que eu era um Scoia'tael e me levaram para cá. Só porque estava na floresta com um arco e flecha. Já confirmaram que eu não sou um Esquilo, mas parece que gostam de minha presença por aqui, porque eu não fiz absolutamente nada e permaneço preso, sem qualquer motivo.

Iorveth assentiu. Muitos elfos acabavam presos, mesmo sendo inocentes. Parecia que os dh’oines os prendiam por simplesmente serem elfos. Este era o seu maior crime, em um mundo dominado por humanos. Ser diferente demais para o gosto deles.

-Há quanto tempo está aqui?

-Seis anos. Minha esposa deve até imaginar que estou morto.

-Não duvido. Muitos elfos não duram meses em uma prisão dh’oine, que dirá anos. Tem muita sorte de ainda estar vivo.

-Eu sei disso. Mas queria ter sorte de também estar livre. Estar vivo, preso nesta cela sufocante e úmida, não é vantagem alguma. É melhor estar morto.

Iorveth riu sarcasticamente.

-Você está preso há seis anos. Não sabe o quão cruel o mundo lá fora se tornou aos elfos. Porque, se soubesse, é bem possível que optaria por viver nesta cela, do que acabar morto e despedaçado por uma multidão de dh’oines furiosos em um pogrom.

-O mundo tem sido cruel aos elfos desde muito antes do meu nascimento. E ainda assim, sabemos nos adaptar. A convivência com os humanos pode não ser das mais harmoniosas, é verdade. Mas conseguimos sobreviver, e conseguiremos se mantivermos nossa integridade de reconhecer o nosso lugar.

As palavras de Elendil pareciam penetrar no coração de Iorveth como estacas. Por fim, o elfo riu de modo estridente.

-Agora sei por que me deixaram nesta cela, com você. Dá para ver que você é o oposto de tudo pelo que tenho lutado com os Scoia'tael. Você é uma vergonha para a nossa raça.

-Vergonha para nossa raça são elfos como vocês, os Scoia'tael, que nos reduzem a um bando de patifes e assassinos de sangue frio, inconformados porque vivemos em mundo controlado por uma raça mais forte...

-Não acredito que estou ouvindo isso da boca de um elfo... – murmurou Iorveth. Elendil se exaltou ainda mais.

—Pois é a mais pura verdade. Vence a lei do mais forte. Os humanos são mais numerosos, detém o poder, a tecnologia. Nós nos tornamos meros feiticeiros de araque, herbalistas e plantadores de alface.

—Suas palavras me enojam! Um elfo conformado a ser subjugado pelos dh’oines, que simplesmente abaixa a cabeça e acorda todos os dias preparados para uma próxima humilhação. Que não se importa se um dh’oine cospe no seu pé, se um comerciante te acusa de roubar uma mercadoria, se chamam sua esposa de prostituta...

-Não fale de minha esposa!

-Oh, veja! – zombou Iorveth. – Para alguma coisa, você é valente! Pois aposto que sua submissão aos humanos é tanta que você permitiria até que um dh’oine tocasse em sua esposa. Afinal, eles são uma raça superior, não são?

A resposta de Elendil veio com um soco. Se não estivesse tão cansado e indisposto pelas torturas, Iorveth teria se desviado facilmente. Mas o elfo acabou recebendo o soco, titubeando e precisando se apoiar em uma parede. Realmente, os tempos não eram dos melhores para ele, recebendo um soco de um mero elfo caçador de coelhos que não resistiria um dia na guerrilha na floresta.

Mas apesar de surpreso, Iorveth não se deixou abater pelo soco, partindo para cima de Elendil, que recebeu dois socos bem colocados, fazendo o cair no chão. Apesar de caído, Elendil não desistiu, chutando Iorveth e fazendo o elfo desiquilibrar-se. E assim, com patéticos socos e chutes, os dois elfos descarregaram sua raiva e frustração um nos outros, até que seus punhos estivessem doloridos e sangue brotasse dos cantos dos lábios e do nariz. Os sons da luta eram perfeitamente audíveis, mas nenhum guarda apareceu para separá-los. Talvez porque não havia qualquer interesse em impedir que dois elfos se socassem até a morte. Na verdade, seria até um espetáculo divertido de assistir.

Mas no fim, Iorveth e Elendil acabaram no chão, arfando de tão cansados, com o corpo dolorido e marcados por mais hematomas. Pelo resto da noite, nenhum dos dois falou qualquer coisa, indo cada um para um canto da cela dormir. Mal puderam ver o guarda a deixar o jantar, consistentes em uma sopa rala de batatas com água.