Desde a morte de Foltest, todo tipo de vira-lata logo caiu sobre a Teméria, estraçalhando a terra como se fosse um pedaço de carniça. A Teméria já não tinha mais aliados. Ninguém se lembrava de que nós já fomos a Armadura que protegia o Norte dos esquemas do Dançarino Louco, ele que tinha as lápides de seus inimigos pisoteadas em um salão de baile.



(trecho do Livro “O Que Irá Acontecer com Teméria?”)



I

A vida no minúsculo e medíocre vilarejo de Dorka parecia calma. Tão calma que os quatro meses que se seguiram desde que Roche, Brigida e Anais chegaram à casa de Anya Roche pareciam quase quatro anos. Talvez porque a sensação de calmaria tendesse a fazer o tempo passar mais devagar.

Claro, a chegada dos três visitantes à casa da dita viúva Sra. Roche trouxe certa agitação ao vilarejo onde nada de novo acontecia há muito tempo. Não havia uma só pessoa na única taberna de Dorka que não estivesse especulando sobre quem era, afinal, o homem de chaperon ao lado da mulher de cabelo esquisito e da criança de belas feições. Era quase um consenso, pela obviedade dos fatos, que o homem se tratava do filho da Sra. Roche. Vitor? Volter? Eles não se lembravam do nome do filho dela. Anya Roche sempre foi muito genérica em se tratando de notícias quanto ao próprio filho, alegando que ele era um simples cabo do Exército temeriano e que estava lotado em algum quartel a milhas de casa. Mas diante dos tempos nebulosos e instáveis que se encontravam a Teméria, não era de se estranhar que o filho retornasse para casa, e ainda levando sua família.

Por mais que Roche tentasse se isolar, ele sabia que não poderia, por correr o risco de levantar suspeitas sobre si mesmo ao fazê-lo. Combinou, portanto, uma história com todos de sua casa, e assim, durante quatro meses, todos caíram na farsa de que sim, ele era um mero soldado que foi dispensado e, sem ter para onde ir, voltou para a casa da mãe com esposa e filha. Algo longe de ser incomum em tempos de crise como aqueles.

Quando não ocupado trabalhando, Roche prestava assistência no treinamento de Anais La Valette. Há muito tempo a menina havia largado as bonecas e passava agora a se interessar por esgrima. Apesar de sua pouca idade, Roche não se importava em ensiná-la o básico. Nada de muito pesado, apesar da insistência da menina em querer se tornar uma exímia espadachim quase que imediatamente. Ele a ensinava fundamentos. Como segurar uma espada, como se posicionar, postura e esquiva. Claro, sempre com espadas de madeira. À tarde, Anais tinha suas aulas de regras de etiqueta com Brigida, mesmo com a falta de aparato naquela casa. Aprendia regras de gentileza da nobreza e besteiras como segurar talheres corretamente. Anais não desempenhava nestas aulas o mesmo gosto que tinha com espadas, mas sabia que era algo necessário – na verdade, algo a que já estava acostumada a aprender antes de toda a confusão envolvendo os La Valette – e não reclamava, apesar de seu descontentamento.

Quem mais sentiu a mudança de vida foi Brigida. Nas primeiras semanas, a nobre testemunhou suas delicadas mãos adquirirem calos e bolhas com o uso da enxada. Assim como as demais camponesas, Brigida seguiu para a colheita de amoras, realizada nos campos do Barão de Dorka, o senhor daquelas terras. Um homem taciturno e de vida reclusa que não participava do mesmo círculo social que os Papebrock, aliviou-se Brigida ao recordar-se do nobre. Não haveria qualquer chance do nobre reconhece-la, ainda que um encontro entre ambos fosse improvável, dada a quantidade de capatazes que intermediavam a relação camponês-nobre.

Já Roche trabalhava no moinho de dia, e à noite ia para a taberna com um único intuito: saber o que estava acontecendo na Teméria. Recebia nada além de silêncio. Não havia uma movimentação sequer em Vízima. Os Barões ainda estavam se aproveitando de toda a baderna para massacrar ainda mais os seus vassalos. Em certas províncias, novos impostos foram criados, para encher ainda mais os bolsos da nobreza. A cada dia que se passava, estava claro que John Natalis não teria condições de se manter como regente por muito tempo, pois o país estava dividido. E um país dividido e sem comando, Roche sabia, se tornava vulnerável a crises.

Por três vezes, Roche ouviu especulações sobre Anais. Alguns camponeses diziam que ela estava morta, mas uma boa parte acreditava que a menina estava viva, nas mãos de algum Rei ou escondida em algum lugar – sem fazerem idéia de que ela estava muito perto deles. Roche percebeu que o povo detinha uma opinião contrária aos dos nobres, que duvidavam do sangue real de Anais. Os camponeses acreditavam que Anais era realmente filha do Rei Foltest. Alguns iam mais longe, enxergando-a como uma espécie de “Salvadora”, alguém que apareceria na hora certa para retirar a Teméria da lama. Os devaneios sonhadores foram dissipados quando um deles concluiu que a menina sequer tinha dez anos e que não estava pronta para ser a Rainha que todos precisavam. Mas o sonho persistia.

Uma noite, enquanto Roche estava na taberna tentando colher informações e Anais brincando nos fundos da casa, Brigida e Anya acabavam por encontrar um tempo para conversar. A idosa sempre foi extremamente reticente sobre conversar, mas desta vez, ela estava mais aberta. Talvez porque estava se afeiçoando mais a Brigida ou gostava de ter em seu círculo de confiança. Ela fez muitas perguntas à Brigida sobre sua vida, mas também compartilhou com a nobre Papebrock detalhes de seu passado, que Brigida sabia ser conturbado. Os que mais interessavam a Brigida foram os detalhes sobre o pai de Vernon, um meio-elfo chamado Rory e que trabalhava como mercador ambulante, batendo de vilarejo em vilarejo com suas quinquilharias.

—Ele era um meio-elfo tão bonito, tinha uma conversa tão suave... Não precisou de muito esforço para seduzir uma camponesa de 15 anos que nada sabia da vida.

Quando Anya soube da gravidez e deu a notícia a Rory, o meio-elfo lhe deu palavras de conforto e disse que procuraria seus pais no dia seguinte para pedi-la em casamento. Mal a noite havia caído e não havia qualquer vestígio de Rory em Dorka ou nos vilarejos vizinhos.

—Eu fiquei arrasada. – contou Anya. – Chorei dias sem parar.

O que se seguiu a Anya foram crises e crises de choro por seu abandono, acompanhadas de enjoos e desmaios. Sem alternativas, ela contou a sua mãe, que para sua surpresa, reagiu muito mal com a notícia. No entanto, arrumou-lhe uma muda de roupas e um saco de moedas e pediu pra que a filha fosse embora para Maribor, onde morava seu primo Tebas. Um homem solteirão, de quase 60 anos e que cheirava a peixe.

—Eu o detestava, mas naquele momento, era a única opção que restava de um casamento imediato. Ele não recusaria uma mulher jovem a bater na porta de sua casa desejando ser despojada e nem faria muitas perguntas. E foi o que aconteceu. Ele se casou comigo. Pouco inteligente, sequer desconfiou que a criança não era sua, durante a gestação. Até a hora do parto e a constatação das orelhas pontudas de Vernon. Ele não hesitou em me jogar na rua, com criança e tudo.

Com um bebê no colo, as expectativas de Anya em Maribor não eram das melhores. Usar as moedas que restaram para pagar alguns dias de estadia e conseguir um emprego, de qualquer natureza. Afinal, ela cresceu com uma enxada nas mãos e não tinha medo de trabalho pesado. Mas o bebê... Ninguém queria contratá-la, nem para limpar o chão ou lavar roupas. Porque era uma mulher abandonada pelo marido. E seu filho não tinha pai.

-Quando dei por mim, dias se passaram depois de várias recusas de trabalho. Lembro-me de estar vagando pelas ruas de Maribor com Vernon no meu colo. Meu estômago roncava, meu dinheiro havia acabado e certamente seria despejada da estalagem no dia seguinte. Foi quando passei perto de um prostíbulo chamado “A Puta Dormente”. Um bordel barato. Foi o único lugar que me aceitou. “Seu preço não será dos melhores porque você não é das mais bonitas”, ouvi isso do cafetão, dono do estabelecimento. Na situação em que me encontrava, pouco me importava. Deram-me um banho daqueles, vesti roupas mais decotadas e tive o meu cabelo arrumado para receber os camponeses e passantes que não tinham muito para gastar com putas. Minha profissão não era honrada, mas era o bastante para que eu e meu filho não morrêssemos de fome ou frio, por mais triste que tivesse sido ver Vernon crescer dentro de um bordel e sendo maltratado pelas outras crianças de Maribor por ter uma mãe prostituta. Mas ao menos suas orelhas estavam resguardadas, pois eu o fiz crescer usando um chapéu e ensinando-o a jamais mostrar suas orelhas a qualquer um. Ser filho de uma puta já era sofrimento o bastante.

-Ficou nessa vida por quantos anos? – perguntou Brigida.

-Até Vernon entrar no Exército. Foi ele quem me fez “aposentar” da vida de prostituta, pois o soldo dele de soldado, embora baixo, era o suficiente para me sustentar. No entanto, ele ficava incomodado por me ver morando em Maribor.

-Por que?

-Porque suscitava más lembranças nele, tenho certeza. Com o dinheiro que ele recebeu por uma condecoração, Vernon comprou a casa dos meus pais. Foi então que retornei ao vilarejo de Dorka, com todos acreditando que eu havia me casado com o primo Tebas e que Vernon era resultado desta união. Ninguém aqui tem qualquer suspeita do meu passado de prostituta, pois adotei um nome falso para me prostituir. Um “nome de guerra”. Vernon odeia quando uso esse termo. – disse Anya, rindo levemente.

A conversa havia acabado quando Anais chegou à sala. Trazia sua espada de madeira na mão e a testa com gotículas de suor. Aos olhos de Brigida, a menina estava imunda. Desde que Roche passou a ensina-la a usar espadas, a menina havia mostrado grande interesse. Para Brigida, isso tinha lá sua importância, pois era importante que uma monarca soubesse se defender, mas era necessário pontuar limites, ou do contrário, Anais pareceria mais com um menino do que uma menina.

-Espero que tenha usado muito bem o pouco tempo que passou estudando sobre as linhagens temerianas, pois amanhã bem cedo estarei fazendo a você algumas perguntas bem difíceis sobre isso. Do contrário, não a deixarei brincando com essa maldita espada por uma semana.

-Qualquer pessoa precisa saber se defender, não importa se é homem ou mulher. – retrucou Anais, para surpresa de Brigida.

-Para de repetir o que Roche diz. Ele não sabe qualquer coisa sobre o que uma nobre precisa saber. Que dirá uma nobre na linha de sucessão ao trono. Agora, dê-me essa espada. Está na hora de você dormir.

-Bem lembrado. – disse Anya, levantando-se pesadamente. – Acho que vou acompanhar você, Anais. É hora de velhos e crianças dormirem. Vamos?

A menina acatou, obedecendo Anya e indo até o quarto onde as duas costumavam dormir, com Anya caminhando logo atrás. Observando Anya, Brigida a interrompeu com uma última pergunta.

-Você teve alguma notícia de Rory? Depois de tudo o que aconteceu?

A pergunta de Brigida deixou o semblante de Anya tomado de hesitação. Por fim, a idosa respondeu-lhe, e modo conciso.

-Há alguns anos atrás, ele estava contrabandeando para os Scoia’tael quando foi levado a interrogatório pelos Listras Azuis. Os camponeses disseram que ele teve uma morte horrível.

Mesmo se tivesse ficado mais alguns instantes na sala, Anya não teria escutado qualquer palavra ou reação de Brigida, que estava mortificada demais para deixar qualquer comentário sobre o fato. A temeriana encheu-se de perguntas, que ela temia jamais ter a resposta. Será que Roche matou o próprio pai? E se matou, será que ele sabia quem ele era?

Os pensamentos de Brigida foram interrompidos pelo súbito abrir da porta, revelando ninguém menos que o causador de suas perguntas sem resposta.

—O que foi? Parece que viu um fantasma. – ele a questionou, sentando-se ao lado dela.

-Eu poderia fazer a mesma pergunta a você, pois seu semblante está pior do que o normal.

-O que minha mãe andou conversando contigo? – sondou Roche, fazendo Brigida gargalhar.

-Como pode fazer essa afirmação?

-Simples. Ontem, ela me procurou dizendo que estava com o imenso desejo de te contar tudo sobre a nossa vida. – disse o temeriano, levando suas mãos ao fogo. – Sua cara assustada já me é um prenúncio de que ela não te poupou nem dos detalhes sórdidos.

-Como o fato de que você matou o seu próprio pai, por exemplo?

Roche tornou-se sério.

—Jamais chamarei de “pai” o homem que virou às costas para minha mãe quando ela mais precisou.

-Bom, sua mãe não te fez sozinho. Então, ele é seu pai.

-Sim, verdade. Ele é meu pai e devo a ele muita coisa. O quê mesmo? Ah, sim. Minhas orelhas, dos quais não posso mostrar em público para não ser motivo de chacota. Não me julgue, Brigida. Eu realmente o matei, mas porque ele era um Traidor que estava de conluio com Scoia’tael, não pelo fato dele ter agido como um filho da puta e desgraçado a minha mãe. Embora isso tenha feito minha mão pesar um pouquinho na hora da tortura...

-Você é um monstro. – disse Brigida, horrorizada.

-Assim disse a freira Brigida, cujo argumento para me levar para a primeira vez na cama foi “só quero saber como é ser fodida por um camponês sem classe”...

-Eu tenho os meus defeitos, é verdade. Mas não muda o fato de que você é um monstro.

-Sim, eu sou um monstro. E um monstro fedido.

Foi a vez de Brigida rir. – Fedido?!

-Por que a surpresa? Você não me acha fedido? – questionou Roche, subitamente interessado.

-Você fede como muitos homens, Roche. Não entendi porque buscou esse adjetivo em meio a tantas opções. Eu, por exemplo, daria preferência a “horroroso”, “truculento”, “mal-educado”...

-Chega, já entendi o recado. – pediu Roche, interrompendo uma série de xingamentos preparados por Brigida.

Aquela elfa deveria ter algum problema...

-O que foi? – questionou Brigida, diante do olhar reflexivo do temeriano.

-Nada demais.

II

—Está tudo quieto demais.

Já era tarde da noite, concluiu Brigida. Aquela altura, Anais já estava dormindo com sua mãe. Brigida estava sentada próxima à lareira, ouvindo mais uma vez os relatos trazidos do Roche da taberna, consistente na única e duvidosa fonte de notícias de ambos.

-Conversei com a lavadeira. O marido dela é aquele guarda barrigudo que faz a guarda de Dorka...

-Eu sei quem ele é. O nome dele é Ross.

-Disse que recebeu ordens temerianas para reforçar a guarita. Eu tentei sondar mais, só que a esposa dele é um tanto ingênua. Disse que não era motivo de preocupação porque todas as vilas ao nosso entorno estão recebendo a mesma ordem.

Roche meneou com a cabeça.

-Isso sim é motivo de preocupação. O que diabos está acontecendo, Brigida? Não gosto dessa inquietação.

Ambos ouviram uma batida na porta, o que os sobressaltou. Ninguém em Dorka era dado a fazer visitas noturnas. Brigida fez menção a se levantar, mas Roche a deteve, indo sozinho até a porta. Tomou sua espada e abriu com cuidado a porta.

-Ves?

O temeriano se surpreendeu. Rapidamente, abriu a porta, permitindo a entrada de Ves, que, por mais que os Listras Azuis não mais existissem, ainda vestia o uniforme, embora estivesse usando uma discreta capa. A primeira reação da temeriana foi quebrar todos os protocolos entre chefe e subordinado e abraça-lo. Para sua surpresa, Roche não parecia incomodado com isso, timidamente retribuindo o abraço. Talvez fosse o alívio em vê-la viva, ou até mesmo um rosto conhecido em tempos tão tenebrosos.

-Roche, é bom te ver!

-Como me encontrou? – perguntou Roche, preocupado. – Se você me encontrou, outros podem me encontrar.

-Duvido muito. Simplesmente tenho boa memória. Você me contou uma vez que sua mãe vive em um vilarejo perto de Vízima chamado Dorka. Logo, imaginei que estaria aqui.

Roche parecia aliviado, mas o semblante de tensão de sua última conversa com Brigida ainda não havia se dissipado.

-Sente-se próximo ao fogo. Irei trazer alguma comida, bebida...

-Sim, sentarei. Obrigada, Roche. – agradeceu Ves sentando-se ao lado de Brigida e também cumprimentado a temeriana. Roche não pôde entender o conteúdo da breve conversa entre as duas enquanto trazia uma tigela com um pouco da sopa servida no jantar e um copo com destilado temeriano. Imaginava que Ves estava há um tempo na estrada e que desejava algo forte para se alimentar.

-Como estão as coisas pela Teméria? Confesso que as notícias custam a chegar aqui.

-Péssimas, Roche. – disse Ves, após dar um gole na bebida. Brigida percebeu que a mulher encarou aquela bebida forte como se fosse água. Decerto era veterana quando o assunto era copo.

-Não me diga que Natalis já não é mais o regente... Não me surpreenderia. Afinal, não há mais um reino unificado que precise de um regente.

-Antes fosse só isso, Roche. – disse Ves, dando desta vez um longo gole do destilado temeriano, que para Brigida seria o bastante para embebedá-la. Após um longo silêncio, a Listra Azul finalmente deu a má notícia que Roche não estava esperando.

-Nilfgaard atravessou o rio Yaruga. A invasão ao Norte já começou.

III

Foi o som de um algo cair no chão que acordou Anais. A menina se levantou da cama, preocupada. Desde a semana passada, Anais escutava sons estranhos vindos do quarto onde Roche dividia com Brigida, mas a senhora Anya lhe garantiu que aquilo não era nada demais. Curiosamente, o ar risonho da idosa conseguiu convencer a menina disso. No entanto, Anais também ouviu uma espécie de comoção, agitação. Havia algumas vozes nervosas, uma delas era de Roche. Algo não estava certo.

Vestida ainda com sua camisola, a menina pôs um xale sobre seus ombros, tentou arrumar o seu cabelo o melhor possível – “uma monarca tem sempre que estar bem-apresentada, não importa as circunstâncias”, as palavras de Brigida soavam em sua mente – e caminhou de seu quarto em direção à sala, de onde as vozes partiam.

-... e estaremos fodidos se não conseguirmos repeli-los!

-... se ficarmos sem fazer nada, Brigida, eles vão nos...

-... um soldado a mais ou a menos não fará falta!

A presença de Anais na sala fez os três se silenciarem imediatamente. Os olhos da menina voltaram-se para a única pessoa que lhe era desconhecida. Uma mulher loira e bonita, apesar dos cabelos extremamente curtos, que usava uma farda parecida com a de Roche – bem, à exceção do decote. A mulher também a observava. A princípio, com confusão, e depois, com abismação.

-Roche... Está é a...?

-Sim. – disse Roche. – Esta é a Anais La Valette. A razão para meu isolamento aqui, e também para as reclamações de Brigida quanto a me juntar novamente ao Exército Temeriano.

-Agora você me dá razão, Ves? Roche precisa permanecer aqui, protegendo Anais. Não pode embarcar em mais uma guerra como se não tivesse nada a perder. – retrucou Brigida.

-O que eu não posso é me esconder em um vilarejo no fim do mundo enquanto a Teméria é invadida por aqueles nilfgaardianos de merda. Eu não sou covarde.

-Não estou pedindo para que seja covarde, Roche. Estou pedindo para que, pelo menos uma vez na sua vida, você use seu maldito cérebro e pense nas consequências disso.

—Consequências? Caralho, mulher, eu não sou um diplomata ou político! Sou um soldado, antes de todas as coisas!

—Então, está na hora de deixar de pensar como um! – esbravejou Brigida, deixando todos os presentes surpresos. – Você agora é responsável pelo futuro da Teméria. Não pode mais enfrentar a primeira guerra que vier, porque você agora tem muito que perder. Nosso país tem muito que perder, se Anais ficar desprotegida. E se a Teméria perder esta Guerra?

-Não iremos perder. – dizia Roche, com segurança. – John Natalis é um bom estrategista. A esta hora, já mandou todos aqueles nobres de Vízima pra puta que pariu com os seus joguetes políticos e está preparando uma boa tática. E mais do que nunca, ele precisa de homens como eu. Não, Brigida. Eu não vou me esconder aqui, neste buraco esquecido pelos deuses, quando o meu país mais precisa de mim. Eu vou me juntar a Ves e aos homens de John Natalis.

-Mesmo com sua cabeça à prêmio pela morte do Rei Henselt? – questionou Brigida.

Roche riu. – Estamos na Teméria, não em Kaedwen. Natalis estará pouco se fodendo para isso.

Roche aprontou suas coisas em silêncio. Pegou um pouco de suprimentos. Por sorte, a viagem à Vízima não era das mais longas. Quando terminando de colocar tudo em seu cavalo, apareceu sua mãe, já vestida e aparentando estar surpresa com sua partida repentina.

-O que está havendo, meu filho? Anais está aos prantos dizendo que você está partindo...

-Nilfgaard invadiu o Norte.

A idosa prendeu sua respiração.

-Por favor, meu filho, não vá. – ela disse, pegando em seu braço. – Estou com um mau pressentimento sobre isso.

Roche olhou sua mãe profundamente nos olhos.

-Não é a primeira guerra que enfrentarei. E temo que também não seja a última.

Percebendo que não seria capaz de dissuadir seu filho teimoso, Anya se afastou de Roche. O temeriano estava afivelando ao cavalo uma última bolsa quando sentiu algo apertar-lhe o braço novamente. Era Anais.

-Por que você vai me abandonar? É porque eu não esquivo direito?

Roche suspirou pesadamente com a tristeza no semblante da menina.

-Você esquiva muito bem, Anais. Fiz você pensar o contrário para que você se tornasse melhor do que já é. E se quer saber, eu estou partindo justamente porque estou pensando em você. Eu quero que você seja a Rainha de um reino organizado e em paz. E eu preciso fazer algo a respeito para conseguir isso. Entendeu?

A menina apenas assentiu. Para surpresa de Roche, Anais o abraçou fortemente. Sem que pudesse conter, o temeriano deixou um sorriso se desenhar em seus lábios.

-Agora, seja uma boa menina com Brigida. E tente ao menos fingir que gosta de dançar. Uma boa Rainha não pode demonstrar fraquezas como raiva, descontentamento ou tristeza. Tem que fazer todos acreditarem que nada pode abalá-la.

A menina assentiu silenciosamente outra vez, vendo Roche subir ao cavalo e a jovem chamada Ves fazer o mesmo. Observando-os partir para distante do vilarejo, Anais sentiu-se sendo abraçada por Brigida.

Já estavam um pouco distantes de Dorka quando Ves sentiu necessidade de questioná-lo.

-Você está bem, Roche?

-Nunca pensei que seria tão difícil. – foi tudo que o temeriano disse, sem olhar em seus olhos. Os dois permaneceram o resto da madrugada á galope, cada vez mais próximos de Vízima, onde receberiam as ordens de John Natalis sobre o próximo passo.

IV

O Quartel-General de Vízima estava completamente agitado e repleto de gente quando Roche e Ves chegaram por lá, nos primeiros raios de sol. Havia homens de várias províncias se alistando, soldados da reserva se apresentando e recebendo fardas e armas. Era algo muito próximo aos tempos não muito distantes da Segunda Guerra de Nilfgaard contra o Norte, estremeceu Roche com a familiaridade.

-Precisamos falar com John Natalis. – exigiu Roche a um soldado.

-Calminha, aí. Não é qualquer um que pode falar com o Comandante.

-Avise-o de que Vernon Roche deseja falar com ele.

O homem arregalou seus olhos. A fama de Roche já não era das mais graciosas, mas desde sua busca pelo Assassino do Rei Foltest e toda a bagunça que fez em Kaedwen, Roche percebeu que seu nome agora era respeitável. De modo negativo. Não que isso o incomodasse.

O soldado basicamente correu até uma tenda, destacada das demais e fortemente guardada. Após breves segundos dentro dela, o homem fez sinal para Roche e Ves.

-O Comandante quer ver apenas o Roche, mocinha. – avisou o soldado para Ves, que fez uma careta tão grave que o intimidou, mas por fim, aceitou permanecer do lado de fora.

Dentro da tenda, Roche deparou-se com uma cena nem um pouco incomum. Um mapa imenso postado sobre a mesa, com o Comandante John Natalis, revestido em sua armadura de guerra, encurvado a analisar cada detalhe dele. Decerto estava pensando em alguma estratégia.

-Espero não ter atrapalhado. – disse Roche. Natalis riu.

-Não dá para atrapalhar o que já está pronto. – disse o Comandante, acenando para que Roche se aproximasse. Ao fazer isso, Roche pôde constatar qual seria a estratégia de Natalis, graças às pequenas peças que representavam as unidades, cercos e artilharias do Exército.

-Mahakam. – observou Roche.

-Sim. Nilfgaard atravessou o Yaruga nas fronteiras com Aedirn primeiro. Já tomou tudo e com extrema facilidade, aproveitando toda a bagunça que está por lá, com a morte do Rei Demawend. Devemos lembrar que foi o primeiro Rei a morrer e que o país está mergulhado em crise há mais tempo do que a Teméria. O que nos preocupa é Dol Blathanna, que já é um território nilfgaardiano há anos. Entre a Teméria e Dol Blathanna, estão os montes de Mahakam e um reino que já está reduzido a cinzas por eles.

-E não muito longe daqui, Vízima.

-Sim. – consentiu o Comandante. – Se eles atravessarem Mahakam, conseguirão tomar nossa capital com facilidade, e isso será fatal para a Teméria. Sem um governo central, seremos oficialmente reduzidos a províncias desconexas, o que tornaria a ocupação por Nilfgaard ainda mais fácil. Para não contar a questão de nossa própria honra. Ter a própria capital tomada pelo inimigo fará mal à moral dos soldados. Complicará o nosso psicológico.

-Eu conheço bem Mahakam. Sufoquei uma insurgência de anões por lá, em meus tempos no comando dos Listras Azuis. Posso dizer, com veemência, que o local mais vulnerável é o Monte Carboun.

-Foi o que conclui também. Mahakam é um conglomerado de montanhas selvagens e inóspitas. Apenas duas estradas o cortam. E aquela que leva diretamente para Vízima é a que passa por esse monte. Meu instinto me diz, Roche, que Emhyr será mais ousado desta vez. Ele irá tomar Vízima o mais rápido possível. E a rota mais rápida é pelo Monte Carboun.

-Teremos de fazer um cerco e repeli-los por lá.

-Exatamente.

Roche percebeu certa hesitação em John Natalis. Uma falta de confiança que ele jamais presenciou. Algo preocupava o Comandante temeriano, mesmo com uma estratégia já definida.

-Há algo que queira me dizer, Comandante? – perguntou Roche.

-Estamos em menor número. Absurdamente em menor número. – explicou Natalis. – Meu olheiro confirmou que Nilfgaard saiu de Dol Blathanna com uma força quase três vezes maior que a nossa. Mandei comunicados por vilarejos, pedi alistamentos, mas mesmo assim, o número de reforços fez apenas alcançarmos a metade deles. E nem todos são soldados de verdade. Alguns são camponeses que só pegaram em enxada a vida toda e mal sabem balançar uma espada.

-O senhor venceu Nilfgaard em circunstâncias semelhantes. Lembra-se de Brenna?

O Comandante Natalis riu secamente.

-Como me esquecer daquela batalha maldita, Roche? Eu me lembro dela todos os dias, especialmente agora. E sim, você tem razão em pensar que estou em circunstâncias semelhantes. Só que o problema, Roche, é que algo como Brenna não costuma se repetir.