Eles passaram a noite inteira matando e estuprando. Eu vi tudo através das rachaduras na parede. Apavorada, mordi o meu dedo até o osso tentando me impedir de gritar. Não sei se alguém mais conseguiu se esconder. Talvez não. Vi-os arrastar Anthony para fora. Ele se escondeu nos campos, ao lado do palheiro onde havia escondido suas coisas. No entanto, eles o encontraram.

Eles me ouviram. Sabem que estou aqui. Eu não abri quando eles bateram. Pensei que iriam me queimar, assim como fizeram com aqueles que se esconderam no celeiro. Então eles subiram em seus cavalos, cavalgando para longe. Está tudo calmo, agora. Tudo o que posso ouvir são as moscas circulando os corpos.

Tentei abrir a porta. Abrir a janela. Sair daqui. Fazer um buraco na parede ou no telhado. Não consegui.

Ouvi pessoas que vieram roubar cadáveres. Não sei o que pretendem roubar, pois tudo que foi deixado para trás consiste em camisas e calças sujas de sangue. Eu gritei por ajuda. Eles não responderam. Só os que virão agora são os carniçais.



(carta anônima)



O dia ainda estava amanhecendo. Anais estava sonolenta, de modo que Roche precisava dividir suas atenções entre as rédeas e a menina, temendo que ela tombasse na estrada. Ele não poderia culpa-la. A menina estava há dois dias no lombo de um cavalo, como nos tempos idos, antes de ele conhecer Turiel. Mais alguns quilômetros e alcançariam o rio Ismena, mas Anais estava tão cansada que Roche considerou fazer uma parada em alguma estalagem, para que a jovem Rainha tivesse seu descanso.

Doeu-lhe o coração acordar a menina Anais e pedir a ela que arrumasse suas coisas. Como era esperado, a menina encheu-o de perguntas, e depois chorou. Descontroladamente. Roche já a viu chorar algumas vezes, mas jamais de modo tão intenso como aquele. A jovem só parou de chorar quando Turiel a abraçou, dizendo que as duas poderiam se ver algum dia. Havia um pouco de mentira em seu tom de voz, mas foi o suficiente para acalmar Anais.

Roche não estava completamente magoado com a ousadia de Turiel. No fundo, ele até se sentiu aliviado por compartilhar seu segredo com mais alguém. Aquela altura, só duas pessoas vivas nesse mundo, além de sua mãe, sabiam de seu segredo: Ves e Brigida Papebrock. Duas mulheres importantes em sua vida, cada um em um papel diferente, é claro. Apesar da maneira nada agradável em ter seu segredo descoberto, de certa forma Turiel acabou por criar sua entrada no pequenino circulo de confiança de Vernon Roche, ainda que sem saber ou desejar.

Roche avistou na estrada uma estalagem chamada “Galo de Rinha”. Vestindo sua capa e mantendo Anais junto a si, o temeriano atrelou seu cavalo e adentrou à estalagem. Um vento frio soprava lá fora, de modo que o calor do fogo era aconchegante. Havia alguns homens por lá, todos ocupados com uma partida animada de Gwent. Aproximando-se do galpão, com a cabeça baixa e escondida pela capa, Roche chamou a estalajadeira, uma mulher gorda de feições rosadas pelo calor do fogo.

—Gostaria de um quarto para mim e minha filha.

—25 Orens por noite.

Roche colocou um saco pequeno de moedas. A mulher contou uma a uma, até colocar uma chave no balcão para Roche.

—Também quero duas refeições quentes. Também traga dois copos de água.

Enquanto a estalajadeira foi verificar oque havia na panela, Roche ouviu dois homens conversando, na outra mesa.

—Ué, quer dizer que você não foi lá, saquear a propriedade dos Papebrock?

Ao ouvir a menção dos Papebrock, o sangue de Roche congelou. Afinal, ele estava indo justamente para lá. Pretendia deixar Anais aos cuidados de Brigida, que havia cuidado da menina em sua estadia no Castelo dos La Valette. Por mais que Brigida o odiasse agora, ela aceitaria Anais. E para o temeriano, era isso o que o importava, embora ele já soubesse que seu ato implicaria em um último adeus à menina.

—Não. Estava em Dorian, trabalhando. Acabei de chegar e soube do ataque.

—Pois perdeu um grande acontecimento, meu amigo. Finalmente acabamos com a raça daqueles nobres metidos à besta.

—Mas me diga: mataram toda a família?

—Nem todos, só os mais odiáveis morreram primeiro, e dolorosamente. As mulheres... Ah, pobre delas. Tem muito camponês que está se divertindo com aquelas putinhas.

Roche fechou seu punho, engolindo em seco. Imediatamente lembrou-se de Brigida. Com a confusão de Loc Moinne, ele soube que ela estaria voltando para a propriedade de sua família, agora que não mais morava com os La Valette, mas talvez ela tivesse desistido e estivesse em Vízima. Amedrontado com a possibilidade de imaginar Brigida nas mãos dos camponeses sedentos por sangue e outras coisas mais, Roche começou a traçar, no improviso, um plano de ação.

—Senhor! – chamou a estalajadeira, pela terceira vez, sem que Roche percebesse.

—O que é?

—No momento só tem pés de galinha e restos do pernil. O peixe acabou.

—Traga-me os restos do pernil, então. – disse Roche, nervoso.

—3 Orens por prato. – ela disse. Roche rapidamente depositou mais 6 moedas no balcão. Ao seu lado o tempo todo, Anais seguia firmemente sua recomendação. “Jamais olhe diretamente nos olhos dos estranhos. Se alguém tentar falar alguma coisa para você, não fale. Deixe que eu responda por você. Evite se apresentar. Se for extremamente necessário, diga que você se chama Anya. Apenas Anya.”

Com os dois pratos na mão em uma bandeja, além da jarra com água, Roche subiu para os seus aposentos, com Anais abrindo a porta para si. Deixando os dois pratos na cama, Roche olhou para Anais, que permanecia estática, tentando compreender porque ele parecia tão nervoso. Será que foi algo que ela fez?

—Você não vai comer? – perguntou a menina, inocentemente.

Roche suspirou. – Não. Esses dois pratos são seus.

—Meus? – estranhou a menina. – Mas eu não como tudo isso...

—Coma mais tarde, se quiser. Escute uma coisa, minha Rainha... – disse Roche, pondo-se na altura da menina. – Eu precisarei me ausentar agora.

—Para onde você vai, Roche?

—Não fique preocupada, ainda hoje eu estarei de volta. Só te peço uma coisa. Que você fique aqui dentro e tranque a porta. Não saia desse quarto em tempo algum, por hipótese alguma e, principalmente, não abra a porta para ninguém além de mim. E se eu demorar demais...

Roche inalou profundamente. O que acontecerá a ela se ele não conseguir voltar?

Isso não vai acontecer. Não vai.

—Apenas fique aqui, coma e durma um pouco, está bem? Sei que você está cansada da viagem, por isso quero que descanse bastante. Há uma grande chance de voltarmos à estrada novamente.

—Mas você disse que estávamos chegando. – protestou Anais, desanimada.

—Pois é, eu me enganei. Não poderemos ficar por aqui. Sinto muito.

Ao perceber o semblante triste de Anais, Roche tomou uma atitude um tanto inesperada, ao menos para ele. Deu um beijo na testa da menina. Reconhecendo que foi longe demais, Roche desviou seus olhos. Tão chocada quanto ele com seu gesto carinhoso, Anais sorriu, mas não pode deixar de observar um detalhe.

—Seu beijo é espetado.

Roche não soube o que responder a ela. Preferiu o silêncio. Saiu do quarto, ainda tentando absorver um detalhe que, só agora, o militar estava começando a perceber: ele estava se afeiçoando cada vez mais pela menina. O que seria dele quando chegasse o fatídico dia de dizer adeus, e definitivamente?

Por hora, este dia não é hoje. Um problema de cada vez, pensou o temeriano.

II

Mesmo que não soubesse o caminho do Castelo dos Papebrock, Vernon Roche poderia reconhece-lo de longe: uma cortina de fumaça cortava o horizonte. Em situações assim, fumaça nunca era um bom sinal. Seu cavalo estava cansado, de modo que ele não pode galopar. Não queria que o animal viesse a torcer a pata com um esforço desnecessário.

Pela estrada, Roche cruzou com dezenas de camponeses em carroças carregadas de quinquilharias ricas: vasos de porcelana, quadros de luxo – um deles com o Visconde de Papebrock pintado sobre ele – além de prataria e mesmo mobílias, como cadeiras. Havia também uma carroça abarrotada de livros, boa parte deles caríssimos, que algum camponês usaria apenas para usar para alimentar o fogo, pois afinal, eram todos iletrados. Algumas moças também carregavam caríssimos vestidos nos ombros. Roche sempre foi péssimo em guardar detalhes de vestidos, de modo que ele não saberia dizer se algum daqueles vestidos pertencia a Brigida ou era de alguém de sua família.

Doía ver a ruína dos Papebrock, uma das famílias mais antigas e distintas da Teméria. Mais um sinal do que a falta de um Rei poderia causar em um país. Desordem. Caos. Morte. Teméria estava se tornando uma terra sem lei. Os Barões que não cuidavam de suas terras com mãos de ferro corriam o risco de cair na mesma sorte que os Papebrock: sendo aniquilados por seus próprios camponeses. Nem sempre por mera vingança ou insatisfação, mas apenas pelo gosto irresistível de acabar com um nobre. Ainda que este nobre tenha sempre agido de modo justo, como costumavam agir os Papebrock com seus vassalos.

O cavalo de Roche começou a se aproximar do castelo. Viu dois camponeses conversando. Um deles com uma espada dourada nas mãos que servia como peça decorativa, porque estava longe de ser afiada para cortar alguém. Montado sob o cavalo, Roche ajeitou sua capa, tentando passar incógnito.

—Não sobrou quase nada. – disse um deles, cuspindo em seguida, avisando a Roche.

—Deixe o homem. Deve haver alguma coisa que sirva pra ele.

—Na verdade... – respondeu Roche. – Estava mais interessado em provar das mulheres dos Papebrock. Tem alguma ainda viva por aí?

Os dois camponeses trocaram um com o outro um sorriso safado.

—Tem sim. A mais velha já degolaram. Mas a mais jovem... – os dois começaram a rir. – É bem verdade que ela vai estar um pouco cansada e suja, mas ainda dá para comê-la. Vai até a cozinha. Acho que a essa altura, tem só um camponês com ela. E só esperar sua vez.

Sem desmontar do cavalo, Roche cavalgou até a entrada lateral do castelo, onde ele se lembrava do castelo. Acabou se deparando com uma cena horrível: a cabeça de todos os Papebrock espetadas em estacas. Só faltava uma cabeça ali: a do pai de Brigida, o Visconde de Papebrock. Uma figura que sempre foi detestável a Roche, mas nem por isso o temeriano o desejou morrer de modo tão horrível.

Dando mais alguns passos, Roche pôde entender porque a cabeça dele não estava em uma estaca. A ele, foi reservada uma sentença mais cruel. O Visconde estava com os membros inferiores e superiores amarrados a estacas, cravadas na terra. Tivera mãos e pés decepados e sangrava lentamente, deitado no sol. Seus olhos ainda estavam abertos, mas era impossível saber se ele estava vivo. Apesar do risco, Roche se aproximou do corpo do Visconde, e logo que o fez, foi brindado por um súbito e surpreendente arregalar de olhos do homem, que quase fez o temeriano cair para trás de tão aturdido.

—Puta merda! – exclamou Roche. O Visconde parecia se esforçar em dizer alguma coisa.

—Roche...

—Poupe suas energias, velho. Sou eu mesmo. Infelizmente, não há muito que fazer com você agora. Mas talvez, ainda dê tempo de salvar sua filha, Brigida. Diga-me, ela está aqui?

—Roche... – permanecia a balbuciar o velho. Roche suspirou.

—Eu quero salvar a Brigida. Repetir meu nome não vai me ajudar.

—Perdoe-me.

O temeriano deteve-se diante das palavras do Visconde. Lembrou-se de algo ocorrido há quase 10 anos atrás, quando Roche sequer sonhava em liderar uma Unidade, servindo ao Exército como um simples Tenente. Estava partindo de Vízima, depois de ter participado dos festejos do aniversário do Rei Foltest, quando soube que o Visconde de Papebrock desejava falar consigo. Ele foi ver o nobre na grande biblioteca do Castelo de Vízima.

“Tenente Vernon Roche.”

“Visconde de Papebrock”

“Poupe-me da reverência, soldado, pois sei que é uma farsa. Suas ações mostraram muito bem que não existe qualquer respeito seu em relação à minha pessoa”

Roche estremeceu internamente, mas permaneceu com o semblante neutro costumeiro. Não era bobo e desde o princípio sabia o que o Visconde queria com ele. Decerto já estavam a fofocar que ele e Brigida foram vistos juntos, algo que Roche não poderia negar. Havia acontecido, é verdade, mas ambos sabiam que era tudo uma mísera aventura. Além disso, Brigida foi a primeira nobre que Roche conseguiu se aproximar. Almejando uma carreira na Inteligência da Teméria, Roche sabia que era importante possuir aliados na nobreza. Mas é claro, o Visconde não estava ali apenas para dizer de seu desagrado com o fato. Também queria mostrar quem mandava.

“Pois saiba, seu soldadinho de merda, que possuir um acúmulo de títulos ou um pescoço pesado por medalhas não mudará a essência do que você verdadeiramente é. Entendeu?”

Roche permaneceu a refletir sobre aquelas palavras. Será que aquele homem descobriu sobre suas leves origens élficas? Isso poderia ser o fim de sua carreira militar, e também da leve confiança que, aos poucos, estava construindo com o Rei Foltest, que nutria ódio por não-humanos. E a julgar pelo sorriso demonstrado pelo Visconde, Roche não estava conseguindo disfarçar seu pânico.

“Eu vou acabar com você, Tenente Roche. Vou te esmagar como um inseto.”, disse o Visconde, em um tom ameaçador, saindo dali e fechando pesadamente à porta da biblioteca.

Na semana seguinte, não se falava outra coisa em Vízima senão no fato de que o Rei Foltest convidou para o seu banquete de aniversário um filho da puta. Literalmente, um filho da puta. A notícia se espalhou por toda a Teméria, e se alastrou junto à fama de Roche.

—Eu sempre soube que foi você. – disse Roche.

—Perdoe-me. – repetiu mais uma vez o velho. Ao ver que Roche sacou da cintura uma adaga, o velho assentiu, agradecido. Conhecia Roche o bastante para saber que ele jamais diria nada parecido com “eu te perdoo”, mas ver que o temeriano queria, de alguma forma, dar um fim ao seu sofrimento, era um alívio.

Após cravar a adaga na região abaixo da axila, profunda o bastante para acertar o coração e provocar uma morte rápida e sem dor, Roche recolheu a adaga e se afastou do cadáver. Pôr um fim ao seu sofrimento era tudo que ele poderia fazer – mesmo que aquele desgraçado não merecesse.

Dando seus primeiros passos em direção ao Castelo dos Papebrock, Roche passou perto de um camponês, suando e ainda arrumando as calças. Um único pensamento passava na cabeça do temeriano. “Que não seja a Brigida, que não seja a Brigida, que não seja a Brigida, que não seja a Brigida...”

Os primeiros gemidos masculinos foram escutados ainda no corredor. Roche deu passos vagarosos pela cozinha. O camponês estava com as calças completamente arreganhadas e a dita mulher Papebrock sob uma mesa. Daquele ângulo, Roche não conseguia vê-la. Sem hesitar, o temeriano se aproximou do camponês e o separou da mulher, fazendo o cair inesperadamente no chão.

—Espera sua vez, apressado!

Enquanto o homem caía no chão, o estômago de Roche afundava em desgosto. A mulher que aquele homem estava estuprando, e sabe-se lá quantos outros homens haviam estuprado, era ninguém menos que Brigida Papebrock. Os cabelos loiros de Brigida, outrora alinhados, agora estavam cortados na altura da orelha e numa bagunça só. Seu vestido estava completamente rasgado, deixando-a seminua e com os hematomas visíveis por seu corpo. Seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar. Roche suspirou pesadamente. Esses animais acabaram com ela. Mas ao menos, ele chegou a tempo de salvá-la.

O camponês contrariado tocou no ombro de Roche.

—Ainda não terminei com ela!

—E nem vai terminar. – disse Roche, sombriamente, cortando o pescoço do homem sem hesitar. Observando o homem se afogar em seu próprio sangue, Roche correu para o homem e desatou seu gibão. Brigida olhava fixamente para o chão. Parecia em choque.

—Brigida, sou eu, Roche. Vernon. Fale comigo.

—Vernon... – ela repetia com o olhar perdido. Roche tentava coloca-la de pé. Com dificuldade, conseguiu. Colocou o gibão do camponês sobre ela e também o chapéu do morto. Decidindo que não era o bastante, Roche arrancou também as calças do defunto, vestindo Brigida com ela.

—Vamos embora daqui. Depressa.

Praticamente escorando Brigida, para que ela não tropeçasse em seu próprio andar, Roche acabou por encontrar um camponês carregando tapetes do Castelo. Ao perceber a estranheza nos olhos do camponês com a cena, Roche tentou se justificar.

—O pequeno Fred aqui bebeu muito vinho. Não tá acostumado com bebida de rico.

O camponês riu, claramente aceitando a mentira de Roche. Montando em seu cavalo e tomando cuidado para que Brigida não caísse, Roche a conduziu de volta a estalagem longe das estradas, temendo que algum possível estuprador dela a reconhecesse pelo caminho. Agora, ele precisava sair dali o quanto antes.

Mas para onde?